A Garganta da Serpente
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Geórgia

(Manilkara)

- Sou capaz de fazer qualquer coisa para que Gaúcho fique comigo, ontem foi me ver na boate, a discoteca como diz a argentina. Tive que fazer o show porque era véspera de Natal e alguns colegas viajaram para visitar seus parentes. Eu gosto quando ele vem assistir o show, me sinto mais segura "você é tão linda no palco, os rapazes tem inveja de mim, dizem que eu tenho a melhor mulher da boate". Mas vejo ele um pouco preocupado ultimamente. Fomos pro motel e consumimos o que tínhamos levado de bagulho, muita droga, depois fizemos amor, ainda assim estava muito pensativo "temos que parar com essa vida", disse, "estamos gastando tudo em porcarias". O que ele não sabe é que eu não gasto tudo nisso, fiz uma poupança, por via das dúvidas a gente for viver juntos, então tem o aluguel, os móveis... "Conheci muitas mulheres", ele diz, e eu acredito, principalmente porque tem uma coisa que não têm os garotos de sua idade, agora anda meio relaxado, mas parece ser de boa família, bem... a aparência é importante, e quando os dois nos retirar-mos desse ambiente, possivelmente a gente possa levar uma vida mais tranquila e fazer alguma coisa interessante para nós dois.

Além de estar trabalhando no salão de cabeleireiro, Geórgia planejava entrar na faculdade e fazer a carreira de advocacia, aí tudo seria diferente.

Eu sei que essa relação não é para a vida toda, mas o tempo que estiver-mos juntos pode chegar a ser agradável, Carlinho sempre diz que o importante num casal é o respeito e até agora nós nos respeitamos. Ele é como um garoto grande, acho que sua mãe morreu quando tinha aproximadamente quatro ou cinco anos e sente muita a falta dela, disse que tem algo para confiar-me, acho que vai ser esta noite depois do show. Será que...? Ah, ovo podre pra ele se é que quer se separar de mim! Com esses bofes é como estar o tempo todo pendente do que resolvem de repente.

Sim, os varões são imprevisíveis.

Quero que esta noite seja sem igual, o traje novo está demais e vou a brilhar como uma deusa.

- Olá querida, tudo bem esta noite? Muita gente?

- Todo tranquilo, e você, tudo bem Geórgia?

- Ótimo, hoje vou usar o traje SEN-SA-CIO-NAL que fez uma costureira que descobri no bairro onde mora minha mãe, claro que para isso faz uma semana que estou de dieta. Tomara que a costura não arrebente!

- Vai dar tudo certo.

- Isso espero. Ah, me dá um rolo de fita adesiva? Você sabe como é, hoje não pode sair-se nada do lugar.

Geórgia sentia certa simpatia da mulher do caixa. Se dizia que era argentina e pelo sotaque era fácil deduzir, e também se dizia que era desquitada e que o dono da boate tinha lhe dado o emprego porque gostava como tratava os clientes.

Tão logo a stripper entrou com esses pensamentos ao camarim, o bulício lhe fez desviar completamente a atenção. Sapatos voavam pelo ar, seus colegas riam e gritavam puxando-se das roupas. As pequenas mesas diante dos espelhos estavam cheias de caixas com maquiagens, esmaltes de unhas, pentes, fivelas... Outra noite mais para armar-se de paciência e esperar que alguém retirasse alguns dos tantos objetos e lhe fizesse espaço para colocar os seus. As vezes se sentia cansada desta e das outras boates da cidade onde trabalhava. Nem todos os colegas eram assim de barulhentos mas não suportava mais ter que ir, noite após noite, de uma boate para outra carregando sacolas pesadas, cuidando para que não estragar os trajes comprados com tanto sacrifício, respirando os maus cheiros desses camarins diminutos. E o assédio dos clientes, impacientes, inconformados com a ideia de que ela não estava sozinha. Quanta coisa para desalentá-la.

- Eu sou diferente. Não vou ficar a vida inteira trabalhando em boates gay. Eu quero progredir e mudar minha vida.

Os primeiros sons de "Geórgia on my mind" fizeram sacudir os cílios postiços, tropeçou com a sandália no segundo degrau que a levavam até o palco, as luzes a deslumbraram, já tinha falado pro iluminador que se enfocava diretamente no seu rosto, quando entrava ao palco, isso a cegava e ela precisava ver a beirada das madeiras quando girava para não cair sobre o público.

- Merda, parece que faz de propósito... Ray Charles está mais afônico hoje? Esta fita já não aguenta mais, será caro o CD?... Não vi Gaúcho, estará entre o público? É estranho, esta noite ele também tem que trabalhar, só espero que o strip saia bem hoje e que ninguém note o ponto corrido da meia.

Ondular os quadris, desfile de sereias no fundo do mar que brincam uma coreografia na frente de um juri exigente. Adiantar-se três passos até o público, girar, perna direita diante da esquerda, roçando suavemente, como se entre as duas houvesse um romance, dobrando-as como se as esfregasse com um bálsamo sensual. Primeiro retorcer a luva direita sobre a pele, com um dedo, o índicador, depois morder a ponta do tecido sobre o dedo e puxar, puxar até que o braço fique nú. Não parar de roçar as pernas, não parar de balançar os quadris, caminhar até perto das cortinas. "¡Uhhhhhhhhh!" Grita alguém desde o fundo escuro, outro bate palmas, vários assobios. "¡Maravilhosa!" Gritam seus infaltaveis colegas.

- Terá vindo Gaúcho? Já deve estar no camarim.

Durante o solo de piano, tirar a última prenda.

- Não repetia mais uma vez?

O lenço de gaze vai e vem entre as pernas, perto do púbis. "Geórgia, Geórgia, no peace I find, just this old sweet song keeps Geórgia on my mind, just and old sweet song keeps Geórgia always on my mind, la- la- la- la- lalá- lalá- la ...laaaa".

Aplausos.

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