A Garganta da Serpente
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Bagagem

(Mariana Porto)

O caminho de onde eu trabalhava até em casa pareceu mais longo. Talvez, porque meus passos, que lentamente caminhavam por necessidade, hesitavam por medo. Era um dia incomum e eu precisava aceitar a ideia de que, daquele momento em diante, era assim que seria. Pelo menos, até o próximo grande massageador de pés. Quando cheguei ao meu prédio, o único verde da rua São Pedro, procurei nas correspondências, quem sabe, um bilhete. Mas tudo o que encontrei foi a chave deixada com Sr. Josué, na portaria. "Está acontecendo alguma coisa?", ele perguntou. Porteiros têm uma curiosidade pela vida alheia ainda maior que as manicures. Respondi que não e subi. O elevador parecia se arrastar até o 5 andar e meu coração palpitava, afinal, nem ao porteiro eu tinha tido coragem de contar que Marcelo e eu tínhamos nos separado. Abri a porta e encontrei o apartamento aparentemente igual, mas com uma sensação de vazio indescritível. Ainda estavam na estante meus livros de psicanálise e meus discos de bossa nova. Meus quadros estavam alinhados, ele sabia que o quanto eu detestava quadros tortos. Parecia que meus olhos procuravam algo na decoração, ou pendurado, que ainda lembrasse dos últimos 3 anos que tive um cobertor de orelhas e um lençol de alma. Mas não, eu já não me lembrava mais das coisas dele que faziam parte do ambiente. Então, qual seria o motivo de eu achar aquele lugar tão desaconchegante? Fui ao nosso quarto, a grande testemunha do que vivemos.

Achei fotos. Apenas fotos. E as fotos, sem as lembranças, não representam nada. Marcelo não me representava mais nada e isso era algo ainda mais difícil de eu aceitar. Era difícil aceitar que o essencial tinha se tornado dispensável e completamente "esquecível". Como era possível eu estar sofrendo não pela falta que ele me fazia, mas pelo fato de eu perceber que nosso sentimento tinha virado pó? Eu deveria estar feliz e abrir uma cerveja em homenagem à minha independência que não resultou em horas chorando com minha mãe ao telefone. Mas não. Eu estava rondando o apartamento procurando indícios que me convencessem de que eu amava o Marcelo e de que eu não estava feliz com sua partida. Tudo, para não sentir como se renegasse os 3 anos que vivemos juntos - nos amando e nos odiando, repetidas e inúmeras vezes. Procurei uma caixa onde eu guardava todas as suas declarações escritas para mim (como um bom escritor, costumava deixar-me versos na mesa de café da manhã quando saía mais cedo de casa). Reli todas, integralmente, e nenhuma lágrima sequer ameaçou se formar. Quando eu tinha me tornado uma insensível? Quando esses bilhetes tinham se tornado anônimos? Eu era incapaz de dizer. Percebi que a rotina tinha tornado Marcelo uma parte da decoração que eu já não mais enxergava, e que os bilhetes dele me soavam como citações. Eu queria sentir falta dele, mas não sentia. Queria continuar amando, como naqueles tempos onde eu corria para casa, mas não continuava. A única coisa que me incomodava era o fato de ele não ter me deixado um bilhete de despedida, isso parecia ser frio da parte dele. Foi aí que eu comecei a reler, mais uma vez, os bilhetes das mesas de café da manhã e todos eles faziam sentido para mim agora. A cada dia que deixávamos de fazer coisas, até mesmo triviais, nos afastávamos. E, a cada bilhete, ele se despedia sem que eu tivesse percebido: "eu levo comigo tudo o que é meu e que me faz falta em você". Foi aí eu reparei que faltava o relógio vermelho da parede da sala. Sentei e sorri.

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