Na liberdade da infância, Iraquitã e Belson eram donos do domingo.
Acostumados com a mata e os animais não temiam os perigos.
No pequeno distrito de Parintins, onde moravam, eram donos e reis, como cada
curumim e cunhataí tinham seu próprio reino.
De manhã cedinho pegaram a piroga que não iria à pesca
com seus pais e se aventuraram, anzóis e zagaias a bordo, para o grande
rio. Já se achavam homens em seus dez anos. Os igarapés já
não lhes tinham mistérios. Mas os segredos do pará ainda
eram segredos para eles. As ondas altas naturais e as marolas dos rastros das
catraias ainda não conheciam.
Ambos tremeram de receio, não sabiam o que era medo, ao chegarem ao
meio do rio e perceberem que a água que entrava rápido exigia
grande esforço e velocidade nos braços para ser retirada, mas
não passariam por fracos e nada disseram de sua caruara uma para o outro.
A terceira vaga encheu a canoa e suas providências não deram conta
para evitar o naufrágio.
- Nada, Belson, nada!
O instinto os guiava, antes que as palavras combinassem, em direção
à praia de onde partiram, mas não conheciam os segredos da correnteza.
Mais de três quilômetros da margem, as águas os levando rumo
ao mar que não conheciam senão do Atlas Escolar milhares de outros
quilômetros adiante, e teimavam em voltar ao ponto de partida.
Por quarenta minutos nadavam lado a lado, mas o mar doce os separou numa braçada
de Iara.
Iaraquitã desviava dos troncos que vinham boiando sabe-se lá
de onde, tentava avisar o amigo, mas a voz não saía; tentava avistá-lo,
mas as paredes de água que se alternavam não permitiam. Agora,
admitia, estava com medo, medo de nunca mais ver Belson, nome dado em gratidão
ao missionário canadense que ajudara sua mãe no parto. As lágrimas
de Iraquitã aumentavam o volume do rio.
Precisava chegar à margem, à vila e avisar aos adultos para procurarem
o amigo, mesmo que isso lhe custasse uma surra de cipó.
As forças vieram do fundo d'alma. Remava seu corpo desengonçado
com toda a força que seus braços finos permitiam. Imaginava seus
pés serem nadadeiras de cauda do tucunaré e nadava, nadava, lágrimas
juntando-se às águas do pará, nadava, nadava...
Muito tempo se passou até alcançar as tiriricas da beira-rio.
Não havia tempo para descansar, todo o corpo, porém, exigia. Tentou
levantar-se, as pernas se negavam. Nas tentativas frustradas de ir em frente
desmaiou e, postado sobre aquelas folhas que pareciam navalhas quando molhadas,
ficou desacordado.
Sonhava com o amigo perdido nas águas que amava, nas águas que
lhe davam o peixe e as brincadeiras. Não havia mais nada a fazer senão
entregar-se à inconsciência, por mais que pelejasse contra.
Acordou com a mão suave lhe arrumando os cabelos pretos e lisos. Suas
pálpebras pesavam mais que um cacho de pupunha, mas conseguiu abri-los
e viu que já era noite. As dezenas de vaga-lumes aproximavam-se e viravam
lamparinas. A mão que o afagava e o colo que o abrigava eram de dona
Jussara, mãe de Belson.
Olhando os olhos negros de Jussara, mais escuro por falta de estrelas no céu
negro de nuvens, chorou e pediu desculpas. Os aldeões se aproximavam.
Uma lamparina se destacou das demais e veio rápido, à velocidade
de uma carreira de menino.
Belson entregou a lamparina para a mãe e abraçou o amigo que
já tinha como morto.