A Garganta da Serpente
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O Amor de Mariano

(M.P.Haickel)

Primeira Parte

Relampeava, alumiando os cantos das construções na velha cidade. Vez por outra era tão forte que dava pra ver os arrabaldes da igreja do Desterro: a solitária torre. O vento sibilava em rajadas que badalavam o sino, no ocaso. Mariano sentado na praça olhava pro mar, o vai-e-vem devagar dos barcos, absorto da paisagem, à procura de uma órbita... Sim, porque sempre gravitara sob o domínio do amor. E parecia não entender sua nova rota: teria que seguir um novo destino, sua vida saíra fora de prumo, compreendia mas ainda não aceitava os novos rumos: da mão pendia a faca, na bermuda branca, o sangue talhado de Dadá. Uma cena marcante: seus gritos, a morte do cúmplice a golpes de faca, uma tragédia de amor para as páginas do periódico; toda a sua estória de 15 anos se passara em menos de 3 minutos, como um filmezinho, no lapso de 9 segundos... Atirou fora a faca, o coração comprimiu como quem se conserva impassível sobre tal acontecimento. Sim, o coração, o amor, essas coisas faziam com ele uma espécie de querer traduzir em razão: infeliz do que não cumpre com seu destino de um dia amar.

Mariano conheceu Dadá ainda nos seus tempos de praça da Marinha, quando fora destacado para trabalhar na orla da beira-mar, convivendo com os caboclos pescadores na área do Desterro. Naquela manhã tinha tomado um café quentinho, acendera um cigarro e nas primeiras baforadas deparou-se com uma cena inusitada: um homem do povo, carroceiro, espancava o pobrezinho do burro, ao mesmo tempo que chorava sua condição, se mal dizendo de amor. Desesperado, ameaçava matar o burro, que não tinha mais condição de atravessar com a mercadoria da praia até as casas de secos e molhados, armazéns que viviam abastecidos de pescadas graúdas, doiradas.

- Vombora Rodrigo, assim eu não vou juntar pra ter com a Dadá! - e a chibata estalava no lombo do burrico, que se vergava com tamanho peso: a carroça tava tochada.

Foi então que o venderim Zeca interferiu, dizendo:

- O bicho não aguenta mais, Dico!

- Eu quero ela, Zeca! Se é dinheiro o que ela quer, Rodrigo vai me ajudar! Se não ajudar, eu acabo com a raça dele - e desembainhou a peixeira.

- O que é isso, Dico? Não faça asneira...

O burro já fatigado de viagens intermináveis carregando o peixe, desde às quatro e meia da madrugada, desabou com o peso. O carroceiro gritou pro burro levantar, berrou e chicoteou para logo em seguida dar umas panadas no animal e voltar ameaçá-lo de morte:

- Levanta, burro filho de uma égua! Levanta que mais tarde eu tenho encontro com Dadá e não pode faltar dinheiro. Levanta filho de uma égua!

Quando Mariano interveio, dando uma gravata no braçal e lhe tomando a faca, com a qual agredia o asno, já era tarde pro animal e ainda cedo para agitar o mercado; e as pessoas gritavam para ele:

- Prende, prende esse louco!

- O burro é meu, eu vou dar cabo dele! Ele não me quer com Dadá! - Dico gritava respostando.

Desse episódio ao exato instante em que sentava novamente na praça, fugido, já se iam passados quinze anos. Desde a primeira vez que ouvira pronunciar aquele nome: Dadá, justamente quando efetuara sua primeira detenção. Prendera aquele que matava um pobre burro indefeso, ocasião que viera a saber que Dadá era uma linda mulher, que fazia a alegria e desgraça dos barqueiros e estivadores, num quartinho modesto no sobradão do Desterro.

Três dias de efetuada a prisão por perturbação da paz pública, Dico foi solto. Durante esses dias a imprensa noticiou o caso: "Burro morre por amor de homem."

A matéria noticiosa contava tão-somente que o carroceiro, de alcunha "Dico", esfaqueara, em pleno Mercado do Peixe, o seu burro, causando reboliço, além de cenas de terror ao matar o pobre animal, desferindo-lhe golpes certeiros, até que foi impedido pelo praça da Marinha, Mariano Alcantarino, que lhe aplicou uma gravata, imobilizando o oponente.

Quando interrogado pela reportagem qual o motivo que o levara a cometer o tresloucado gesto, foi titubeante na resposta: "Eu fiz por amor... por amor a Dadá! O burro não queria me ajudar a ficar com ela..."

A reportagem encerrava com especulações de quem seria Dadá, o que aguçou ainda mais a curiosidade de Mariano.

Segunda Parte

Seguindo Dico, ele bateu nas portas do sobradão antigo. Viu quando ele encheu a cara e começou a falar besteiras. Resolveu acompanhá-lo no intuito de salvar a donzela. Dico não tardou a gritar de baixo para que ela aparecesse na janela:

- Agora que eu não te quero mais, Dico! Por que matastes o pobre burro?

- Por amor, Dadá!

- Que amor, que nada, Dico! Por que me atribuis esta morte... Não, Dico, vai-te embora daqui, não me causes mais complicações na vida!

A rapariga era muito linda. Dico diminuía diante dela:

- Foi para realizar teus caprichos, Dadá! O burro tava empacado! Eu acabei com ele... porque te queria dar mimos...

- Nada disso, Dico! Bendito o pracinha que te impediu de cometer mais besteiras! Não te revoltes contra ele, que o pior evitou! Vai-te embora, Dico! Não me tragas mais problemas...- aconselhava do beiral da janela, no andar de cima. Tinha cabelos longos feitos os de Iemanjá.

Escondido estava Mariano e escondido ficou, encantado com a beleza de Dadá, que se referia a sua pessoa como "bendito pracinha". Como era boa a sensação que experimentava de amor à primeira vista. Dico, ainda zonzo, buscava caminho de cabeça baixa e andar bêbado, rumando ladeira acima, na direção da antiga fábrica de sabão.

Mariano apaixonara-se tão perdidamente por aquela mulher, ela era linda de levar um homem à loucura. Sentiu vontade de apresentar-se fardado para ela, como herói; raptá-la daquele sobrado para um outro lugar, onde pudesse fazer amor com ela e possuí-la como amante até onde não desse mais; onde o mundo os estreitasse no impossível da vida. Naquele dia abandonou a ronda mais cedo e foi ter no mar: mergulhou, afastou-se nadando da praia, ficou boiando por horas, depois que passara a arrebentação até adentrar no mar alto, para só depois voltar, no entardecer, com a sensação da alma lavada e mergulhada no desejo de um elo eterno com aquela diva, para quem entregaria seu coração.

Na boca da noite estava barbeado e arrumado para se divertir no sobradão da Rua da Palma. Saiu à paisana. Ao entrar na antiga construção, passou pelo pórtico e foi sentar-se ao lado do piano, que executava uma cantiga de marinheiro. O ambiente guardava um cheiro de gardênias. Uma senhora roliça lhe ofereceu algo de beber, aproveitando para piscar-lhe o olho. Não tardou, alguém o reconheceu como o samaritano que tanto fez mas não conseguiu evitar a morte do pobre animal. Grande foi o alvoroço que surgiu então, tirando Dadá dos aposentos para lhe agradecer de todo o coração, em pleno salão decorado com móveis antigos. Ele, por outro lado, anunciava mais uma rodada para todos, tocando o sino pendurado no balcão do bordel. Durante toda a madrugada se amaram perdidamente no mirante, onde corria suave a brisa que vinha do mar...

Sim, já havia transcorrido quinze anos, desde quando tudo começou. Agora ele fechava os olhos e as imagens do amor se configuravam num pesadelo. As mãos tremulavam, a órbita dos olhos saltava, o corpo transformava o amor em traição e ódio.

Logo que se apaixonou por Dadá, frequentava todos os dias o antigo sobrado da Rua da Palma. Era tão certo lá quanto foi ficando relapso no convívio. Começou a beber mais do que devia, vivia a realizar seus devaneios amorosos, pouco se importando pro que os amigos diziam. Não foi por falta de conselhos que anos mais tarde teve que desertar da Marinha. Já não conseguia mais se afastar de Dadá, e não queria ir à guerra. Foram morar juntos na Rua da Saúde. Ela abandonou o mirante, a condição de amante. Dadá também por ele se apaixonou perdidamente. Parecia mais bela, com o amor a reluzir nos olhos, a trazer na mão uma aliança de ouro e anéis com pedras ametistas e safiras, colar de madrepérolas, pulseiras, correntes de prata, tudo a torná-la mais bela e desejada pelos homens do Portinho.

Porém, eis que a desgraça lhe bateu na porta. A dificuldade e a miséria se arrastaram pela cidade. Os armazéns não tinham mais pesca, uma crise na economia foi abalada com as trincheiras da 1ª Guerra Mundial, planos desastrados rondaram pelos países do mundo; em São Luís foi decretado estado de calamidade pública, com a peste que proliferava. Houve paralisação, greve nos serviços públicos, surgiram epidemias, Mariano caiu doente sem poder trabalhar. Nessa época, Dadá começou a desfazer-se das joias e as reservas rápido se esgotaram. Corria à boca miúda que ela estava de volta ao antigo meio de ganhar a vida, no sobradão da Rua da Palma. Os motivos: primeiro por necessidade, manter-se viva e a Mariano; depois, com a separação, que transformou a dificuldade da vida em coisa natural de sobrevivência em tempos de guerra.

Parte Final


mais creditava sua vida àquele amor. Mesmo separados, Mariano tentou aprumar sua estrutura vencida: amava ainda mais Dadá. Nos encontros às escondidas, entregava-se às carícias de uma profissional. Embriagava-se no cheiro dela e não demorava a cidade toda sabia do seu xodó. Não lhe bastavam os adjetivos de galhudo, relutava contra tudo e contra todos para satisfazer-lhe às vontades... Muitas vezes implorou para que ela voltasse para casinha deles, na Rua da Saúde; ela, como antevendo, dizia não, sempre que podia. Assim viveram os últimos longos anos. Um amor clandestino, louco, infernal, que por último atormentava-lhe o juízo.

Era tarde demais pra voltar atrás, o vermelho do sangue misturava-se ao ocaso. O sinistro ocorreu com a chegada de um gringo. Viera num catamarã, velejando da Europa até atracar no Portinho; levado a conhecer a cidade pelos pescadores, bebera muito no sobradão da Palma, onde, deslumbrado, acabou adormecendo no quarto de Dadá, que sonhava se libertar; velejar pra longe daquela ilha, onde amargava tanta desventura, com amores malfadados por toda cidade. Arrumava os paninhos depois de uma noite de transa.

Quando entrou Mariano porta a dentro no mirante:

- Vais me abandonar, Dadá?

Distraída, vestia ainda as peças de roupa íntima:

- Eu nunca vou te abandonar, Mariano!

- É esse que quer te tirar de mim, Dadá? Por quem ouço dizer que estás doida...?

O gringo levantou sem muito perguntar nem entender, tentou acertar uma pescoçada em Mariano, que, de esquiva, sacou da peixeira na cintura e cortou-lhe a barriga, deixando à mostra as tripas.

Dadá correu para ajudá-lo, quando Mariano com a faca na mão gritou:

- É com ele? Então preferes ele a mim?!

- Que loucura é essa, Mariano? Estás louco?

- Louco de amor por ti, Dadá! - e logo em seguida com várias facadas lhe cravou o peito antes de sair correndo porta a fora, embalado para o banquinho do porto. Ali chorou horas, depois feito criança sentiu calafrios, amor, ódio, desespero, angústia e medo. Todo o seu amor era agora uma mistura de sentimentos que não sabia mais distinguir. O sino da torre solitária do Desterro badalava o juízo final. Dadá parecia flutuar, vinha do mar, sua veste alva arrastava na areia da prainha, que vinha dar na praça, a perguntar-lhe:

- Por que, Mariano, se tu bens me conhecia, sabias de tudo?... que ficava com outros homens!... por que Mariano que tu me matastes?

Mariano parecia em alto mar. Sentia vontade de entender! Chorava e ria com os flashes que lhe vinham da memória: tinha matado seu único e verdadeiro amor. A pergunta estalava em seu cérebro, martelando: "Por que tu me matastes, Mariano?". Respirava fundo, fechando os olhos e nada mais via. O sangue na mão lhe causava torpor. O crespúsculo tingia tudo de rubro. A maré enchia com ondas que formavam banzeiros. Mariano, como que caindo em si, lhe disse em voz alta, mas já para o nada:

- Queres saber, Dadá, o por quê? Os outros te possuíam. Mas este último era diferente, queria-lhe a alma! Isso eu não podia deixar! Foi por isso, que eu o matei! Ele queria roubar-me tua alma... eu não podia deixar, Dadá...

Mariano sabia que seu amor tornara-se por fim uma loucura, uma obsessão. Foi então que, levantando-se do banco, saiu direto pro mar. Mergulhou fundo, nadou atrevessando a arrebentação e seguiu firme pro meio da baía; lá boiou por horas, sempre buscando aquela sensação de quando viu Iemanjá na sacada do sobrado antigo da Rua da Palma, linda; nadou ainda por horas, debalde, sempre entrando em alto mar, e diferente daquela primeira vez, não mais voltou.

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