Era apaixonado por ela.
Pudera. Linda, morena, alta, olhos amendoados e cintilantes, negros. Ou castanhos.
Talvez cinzas
ninguém sabia ao certo. Mas eram olhos amendoados,
cintilantes, belos.
Era apaixonado por ela.
E todos sabiam.
Principalmente o amigo, o melhor amigo: Clóvis.
Confidente fiel, amigo para todas as horas - farras, festas, tristezas, viagens,
bagunças. Tudo. Tudo. Irmãos, como se fossem irmãos. Até
melhor, pois, cada um em sua casa, podiam deixar de conviver em fases difíceis.
- Tem festa hoje! - veio Clóvis convidar.
- Maravilha. Hora e local
- Vinte e duas horas, no Catharina.
- Humm
Festão!
- Quinze anos. Amiga minha.
- De onde?
- E te interessa? - brincando.
- Enfia, fê da puta!
- Tô enchendo. Menina amiga de minha prima. Bonitinha.
- Amiga da sua prima?! Quer dizer que
-
a Clarinha vai também.
Caiu sobre o sofá. Estavam na casa dele. Clóvis sentado na cadeira
giratória do computador.
- Ela vai também?! Me arruma um convite, me arranja!
- Ô cara, não vai dar
Ele levantou rapidamente; um raio. Agarrou a gola de Clóvis com as duas
mãos e quase o levantou do chão.
- Brincadeira, brincadeira! Já arrumei, já arrumei por conta.
Voltou a cair no sofá, o olhar sonhador. Via o semblante de Clarinha
desenhado no teto, como em filme, seus cabelos negros, os olhos amendoados,
cintilantes. Negros?
- Passo em sua casa às dez horas da noite pra te pegar. Esteja pronto!
-ainda com Clarinha nos olhos.
As horas custaram a passar depois que Clóvis foi embora.
Buzinou o código habitual. Em poucos instantes, Clóvis apareceu
na porta do edifício, empertigado em seu terno novo.
- Que coisa mais meiga. - tom de mofa.
- Cala a boca!
A música que saía dos alto-falantes do carro ajudava a empolgar.
Ele só pensava no instante de rever Clarinha. Talvez fosse aquele o dia
em que a timidez o deixaria livre para se declarar à moça. Linda,
alta, olhos amendoados
chega! Chega de sonhar com ela. A hora chegava.
Quase chegando.
Ela estava maravilhosa! Um vestido todo negro, realçando ainda mais o
moreno de sua pele e cabelos. Olhos também. Por que não? Talvez
não
Ele quedou-se boquiaberto, babando, admirando-a, enquanto a timidez não
saía de seu pé.
- Vai lá conversar com ela e traz ela pra cá. - mais súplica
que sugestão.
Clóvis foi. Amigo é pra essas coisas.
Foi e ficou. Demorou-se bastante.
E as bandejas passavam, e Clarinha pegava cada hora um copo com uma bebida diferente.
E Clóvis bebia também. Sem parar. Consequentemente, ele também.
Incessantemente. Brindando à timidez. Um contra-senso.
Lá pelas tantas, Clóvis largou o copo de vinho em uma badeja vazia.
E beijou Clarinha. Na boca, com o fogo de uma paixão enclausurada.
O copo de Clarinha caiu no chão. Grata surpresa.
O copo dele caiu também. Chata desolação.
Como Clóvis pudera fazer aquilo com ele? Roubar-lhe Clarinha - a paixão
de sua vida?
A festa já quase acabava quando Clarinha foi embora.
Clóvis, a boca vermelha de beijo, veio em sua direção,
os olhos arrependidos.
- Sinto muito
Sinto muito
Silêncio.
- Desculpa, cara! Foi mais forte que eu. Nós bebemos muito e o papo tava
rolando legal e
quando fomos ver, já tinha acontecido
Desculpa,
cara!
Silêncio. Olhos catatônicos.
Ante o silêncio opressivo do amigo, Clóvis se desesperou:
- Vai, fala alguma coisa, faz alguma coisa! Me xinga, me bate, me esmurra!
Silêncio.
Como que desperto por uma força interior, ele olhou bem nos olhos de
Clóvis. Olhos negros. Ou castanhos, talvez.
Segurou o rosto do melhor amigo com as duas mãos e beijou-o. Na boca.
Com o mesmo fogo com o qual Clóvis havia beijado Clarinha. Para beijá-la,
mesmo que por tabela.