A Garganta da Serpente
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Dostoievisqui

(Márcia Ribeiro)

Numa de minhas visitas à Favela do Galozé, melhor dizendo, à Comunidade do Galozé, de novo consigo me surpreender com aquilo que não causaria mais espanto aos menos atentos e raros visitantes daquelas redondezas.

Andei de cá pra lá, de lá pra cá, claro, acompanhada do restante do grupo e, a uma certa distância, pelas "autoridades" locais, mas minha intenção neste dia era reencontrar Jeskla Sebastiana Dominick da Silva.

Jeskla Dominick, como fazia questão de ser chamada, era uma negra de olhos amendoados e que pareciam dois faróis. Tinha um corpo de causar inveja às mulatas passistas de sua área, só perdia mesmo na altura, pois Jeskla Dominick não media muito mais do que 1,50m. Até confessava para os mais íntimos que o fato de ser "nanica", apelido dado pelos irmãos, era uma das coisas que a incomodavam e muito.

Acredito mesmo que incomodava, pois Jesckla, envolvida na vaidade de seus 16 anos, ainda não sabia da grande mulher que existia dentro do corpo "nanico".

Mas a necessidade de reencontrar Jeskla deu-se por ocasião de uma carta que recebi através da Associação dos Moradores do Morro do Galozé. Nesta carta, tímida e cheia de autoridade, Jeskla denunciava a menina por quem eu iria me apaixonar e querer trazer no colo, tentando oferecer o que é dela por direito,

Trechos da carta de Geskla

"...eu vi que a cenhora brigo com meus irmão porque eles fica rindo de mim porque eu recramo dos funk que eles bota toda ora...
...a cenhora não entendi porque não mora aqui e aqui agente não pode escolhe e é isso que agente aprendi...
...a cenhora deve gosta dos outro que cantam mais bonito mas o funk tem música bonita é so a cenhora presta atensão...
...eu não gosto muito do funk porque eles repete muito a mesma coisa - entendi aqui que o ritmo é repetitivo - e tem umas coisa que fala e que não são boas pra gente. Só que tem gente boa que que canta funk e não pode...
...acho que eles precisa conhece outras coisa. Quando eu vo na casa da patroa da minha mãe a dona Tiana ta sempre ouvino umas musica muito boa pra ouvi so que da tristesa. Eu fico quereno sabe quem é que canta tão bonito.
Minha mãe ri e dis que isso é coisa de gente fina e pra madame...
...se a cenhora pude eu quero conhece os cara que toca aquilo. Eu lembro dos nome so de um pouco porque conversei com a filha da dona Tiana.
...é Dostoievisqui - Ba - Gouguim - Betovem - Mosar - Isaque Carabichevisque - Rebram - Salvadordali - Chiangui Desessete. Não sei se é tudo canto porque ela falo tudo junto de musica de livro de quadro das parede da casa dela de coisa pra enfeita casa. Eu so escrevi esses que eu diçe pra cenhora...
...a filha da dona Tiana me deu um livro bonito que tem uma cabeça de boi rocho na capa mas o chifre é de ouro - entendi aqui que deveria ser a tal Cabeça de Touro cravejada de pedras semipreciosas, utilizada em rituais religiosos em Creta - e um outro que tem um monte de igreja de todo mundo e que ela escreveu assim { Barroco e Rococó }. Achei engrassado porque tudo minha mãe fala que é do tempo do rococó...
...quando meu irmão ganha dinhero bastante com os negoços que ele tem eu vou conhece um monte de lugar e quero entra em todas as igreja do livro que eu ganhei...
"

A carta de Geskla foi escrita em quatro folhas de caderno espiral A4, frente e verso. Eu não sabia se ria ou se chorava. Portanto, ri entre lágrimas.

Entre a data de elaboração desta carta e a data em que ela chegou às minhas mãos houve um espaço de tempo de quatro meses. Tempo longo demais e, ao meu entendimento, desnecessário, já que nossas visitas à Comunidade eram quinzenais, passando a ser, no mínimo, mensais, dadas as circunstâncias nas quais, "por ordem superior", deveríamos ser mais cautelosos no movimento proporcionado ao Morro do Galozé.

Éramos teimosos e nosso lema sempre foi "Manda quem pode e obedece ao pé da letra quem não tem juízo". Nem precisaria mencionar que este lema era "S.E. - Segredo de Estado" do nosso grupo, pois acreditávamos, ou melhor, acreditamos que há várias formas de se fazer a mesma coisa, ora em saltos de uma gazela, ora em passos de formiguinha, mas nunca, jamais, em tempo algum, deixar de fazer.

Enfim, nesse meio e eterno espaço de tempo, onde Jeskla sentiu-se, com certeza, desmerecida, haja visto a completa falta de competência para que uma simples carta chegasse às mãos do destinatário, ocorreu mais uma "limpeza" no Morro do Galozé. Umas das famílias expulsas foi a de Jeskla, pois seu irmão "abriu" falência nos "negócios", mas a dívida com as "otoridades" não foi perdoada, mesmo quando o rapaz foi encontrado num

esconderijo qualquer, arrastado e morto à frente de sua casa, às 12:52h de um dia de sol à pino.

A família de Jeskla, até onde consegui apurar, foi entregue para um abrigo e logo depois, por pura sorte do destino, encaminhada de volta ao sertão da Bahia, de onde a mãe de Jeskla saiu ainda menina, cheia de sonhos e esperanças.

Hoje reli a carta de Jeskla. Nem ri, nem chorei. Apenas pedi a Deus que a abençoasse e que a fizesse descobrir o quanto ela é grande dentro do corpo de um pouco mais de 1,50m.

Desci para o asfalto e andei tempo demais em busca de um diamante chamado Jeskla. Não. Não encontrei. Diamantes assim não nascem no asfalto. Os do asfalto são diamantes lapidados nas oportunidades variadas a que todos tem direito, porém, só os que ali estão é que conseguem, salvo as raríssimas exceções, usufruir. O que eu procuro é o diamante bruto, é o verdadeiro diamante Jeskla Sebastiana Dominick da Silva.

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