(ao Nuno Lopes, que me ajudou a escrever este texto)
Despediu-se dele, no aeroporto.
Por um fim de semana, só por um fim de semana, mas parecia uma eternidade,
um breve adeus numa relação pacata, onde na qual não se
previa mudanças de ritmo, onde na qual os dias passavam devagar, chegando
ele do trabalho, jantando, vendo televisão, buscando na Internet sensações
e luzes para um sentimento quase vazio.
Ela, arrumava a loiça enxuta, li umas revistas, relia os contornos do
prazo estabelecido pela editora, os quais tinham de ser cumpridos para que o
livro saísse nas livrarias ainda nesse Verão.
Mas não tinha ideias, sensações, vontade de escrever palavras
bonitas, graciosidades, não conseguia vislumbrar um começo de
texto iludindo o seu pesar de sorriso apagado por beijos fugidios, abraços
curtos, olhares mansos.
Ele, engenheiro, teria de ir coordenar um projecto de uma obra. Um edifício
a ser construído na cidade do Porto. Gestor do projecto, partiria naquela
quinta-feira ao início da noite, trabalharia até sábado
na sede da empresa, descansaria no domingo, visitando a paisagem e regressaria
segunda-feira pela tarde.
Ela ficaria por ali, tentando descortinar uma forma de começar a escrever,
de se embrenhar por completo numa fantasia, num texto, num romance. Sozinha
e em paz.
Afastou-se da partida do avião e na bagagem a leve paixão voou
por um aceno de mão.
Andou a passos miúdos pelas ruas, vendo prédios, pessoas apressadas
tirando a roupa dos varandins, lojas a fecharem num dia terminado, as empregadas
da mercearia conferindo a caixa, crianças adormecidas nos braços
de pais e de mães exaustos, um pôr-do-sol longínquo, tão
longínquo como a sensação de ver desaparecer da sua essência
aquele amor.
Na calmaria das horas a rodarem o relógio pendurado na parede do escritório,
deu por si a atender uma chamada telefónica. Reconhecendo a voz, esboçou
um leve sorriso sem vontade para tal, mas Graça logo a animou convidando-a
a isolar-se consigo numa sala de cinema, numa volta pelos confins da capital,
num clube de jazz, num café concerto. O certo, é que precisava
muito de espairecer e daí lhe vir à mente sem muito se concentrar,
o tal romance por escrever, as tais palavras nada esforçadas, a tal vontade
de ser novamente reconhecida pelos leitores e sociedade literária, e
principalmente ser animada por si própria.
Tomou um banho de imersão, penteou-se na lentidão do secador,
embrulhada numa toalha turca, deslizou os chinelos de quarto para um canto,
abriu o guarda-fatos, observando a roupa de cores baças, escolhendo uma
blusa e uns jeans azuis-escuros, mirou-se no espelho enorme e arranjou a franja.
Graça esperaria por si espavorida no tom adolescente encarnado num ser
adulto, sempre alegre, extrovertida, embalada num telemóvel, namorando
uma conversa de Tango.
A praceta estava iluminada pelos candeeiros acendidos no automático movimento
da passagem de uma hora para a outra, antevendo a solidão em redor, os
renovados bancos de jardim distendidos por espaços alargados dando azo
a que os olhares se encontrassem num gótico bem-estar concentrado na
vizinhança encolhida em lares cheios de nada.
Lá estava a sua amiga sentada num dos bancos, pousando os cotovelos no
tampo da mesa em mármore. Se fosse fotógrafa, parava a imagem,
mostrando o perfil absorvido no espaço e no tempo, ouvindo as tais palavras
- a serem recordadas no livro a produzir - numa imaginação de
dança, criancice de mulher amada, apaixonada, terminando um jogo de cama
ainda com o odor do sexo nas narinas, no pescoço, nos ombros descobertos,
nos lábios húmidos por uma língua fresca, tocando os dentes,
misturando risos com mãos percorrendo os cabelos, relembrando a tarde
maravilhosa, estonteante, interminável.
Tudo isto, Graça lhe contou quando foi ao seu encontro, por entre um
olá querida, estás estupenda, triste, mas estupenda e uma festa
na cara desmaquilhada.
Os seus sapatos faziam barulho no asfalto ao percorrerem a praceta, atravessando
passeios, passando por uma arcada, esperando pelo sinal aberto dando permissão
para os peões passaram na vez dos condutores nos seus automóveis
aguardando expectantes para o semáforo ainda verde.
Cada uma bebeu uma chávena de café ao balcão da cafetaria
situada no primeiro andar do centro comercial, deram uma vista de olhos pelas
montras, cumprimentaram o segurança e saíram sob a golfada de
ar fresco vinda da porta giratória. Ainda tiveram tempo de ir à
livraria uns metros mais à frente em busca de folhetins e revistas especializadas
em letras e escritos, afim de dar ideias para o bloco de notas. De nada valeu
o esforço, mas nunca desistindo, Graça passou o braço no
dela, empurrando-a delicadamente ao som da melodia ouvida na loja.
Chegaram à entrada da sala de cinema, verificando ambas pela primeira
vez em muitas vezes as luzinhas rodopiando o anúncio do nome da sala
de cinema.
"Londres enfeitada pelas luzes da Brodway".
Descendo a meia dúzia de degraus, deram com a bilheteira. Compraram o
filme a estrear na sala principal. Uma sala em tons avermelhados, quase esquecida
pelo modernismo da arquitectura cinematográfica, fiel à história
do espaço e dos amantes da arte, numa avenida movimentada, enriquecida
de prédios cinquentenários, damas e cavalheiros em porte quase
principesco, de olfactos farejando o diferente e a morosidade baixa dos sons
saídos de bocas entreabertas.
Um rapaz em farda azul, direccionou-as a dois lugares na segunda fila perto
da porta.
As cadeiras baixaram perante o peso dos corpos, ao som das molas preparadas
para o jeito a dar ao assento confortável por duas horas de filme.
Na penumbra da escuridão descoberta pelos anúncios filmados na
tela, começou a ver a chegada de mais pessoas, de caras à espera
pelo moço de farda azul, dando conta de alguém falando baixinho
num riso de intimidade, descansando um beijo longo na testa feminina, mostrando
carinho na mão a vaguear pela delgada cintura e um aproximar de sentimentos
novos, a cada investida de juntarem ambos os lábios num outro beijo terno.
No conforto dos pensamentos, ficaram a ver a fita a passar na tela.
Um conto de dois casais, não sabendo ao certo o pretendido do rumo a
dar às suas vidas trocadas. Separações, virtudes, belezas
naturais, empregos másculos. Também ele queria ser escritor reconhecido,
ao ser fotografado num atelier simples, em que uma súbdita paixão
o assola, esquecendo-se por completo da jovem esposa, querendo esquecê-la
pela vez de um estado de alma consagrado, por uma pétala, uma réstia
de amor correspondido no receio da mentira da vida.
Fê-la recordar de um passado ainda encoberto, mas depressa colocou essa
vaga nuvem de parte num intervalo de dez minutos num corredor alcatifado e enfeitado
por cadeirões em pele branca, transparecendo cinzeiros altos envoltos
pelas restantes personagens reais, fumando e criticando a vista parte de um
filme a continuar.
Acabando isto, levo-te a casa e amanhã pela manhã vou-te buscar
e radicalizar a tua imagem.
Quero-te um bem incrível, minha linda amiga. Chega de amarguras.
Nem conseguiu ridicularizar as frases ouvidas, sendo de novo levada para a sala
de tons avermelhados.
O sol ia alto no horizonte, quando Graça tocou à campainha sem
avisar num telefonema, no hábito já estabelecido.
Vinha perfumada, numa vestimenta desportiva, cabelos desalinhados por uma espuma
posta à pressa. Encontrou-a no escritório, deitando para o caixote
do lixo folhas em branco amarrotadas, numa tentativa matinal em pôr letras
com tinta, sem sucesso.
Táxi. Chamou, mostrando a covinha na face, decidida a concretizar a surpresa
ao gosto da cortesia de personalidade desvairadamente culta.
Abre os olhos, querida. Assombra-te com o espectáculo da tua figura esbelta.
O corte tinha ficado fenomenal. Curto e aloirado por madeixas de vários
tons claros, o cabelo transbordava alegria, num rosto a maquilhar na sala contínua
a esta e numa outra loja, vestiria a modernice da moda escolhida por Graça.
Nessa noite de sexta-feira levá-la-ia a ver um espectáculo de
rua, de cores, de sensações, outra surpresa preparada e agraciada
por amigos, estranhos seres navegantes pelo saborear a vida com outros olhares.
Tenho a certeza das tuas palavras borradas em papel branco. É agora ou
nunca, querida!
Ao largo do Martim Moniz, já poderiam ouvir os barulhos de longe, de
fogos de artifício, gentes apinhadas afirmando a liberdade conquistada
na nocturna lua, bandeiras rubras batidas no vento da maresia do rio aclarado
pela água de fogo trazida de gargantas em gigantones mascarados.
Tambores glorificavam o ambiente em danças estranhas, músicas
mexidas, trapezistas voando por cordas presas num palco em ferro, cavalos, cães
galgos, fitas caindo do céu em arco-íris faustoso, bolas e massas
rodopiando em monociclos, balões assoprados pelo hélio, palhaços
de narizes coloridos, os trapos em cena nas ruas decoradas pelas estátuas
fixas a um passado glorioso, vestidos esvoaçando pelo ar, crianças
brincando, malabaristas, mágicos, caricaturistas desenhando feições,
homens sombra em andas, mimos sacudindo o ar na luz negra do material luminoso,
barracas ambulantes de farturas adocicadas, chocolate a transbordar beiços
gulosos, acrobatas nas alturas do circo monumental, mulheres quietas em posições
extraordinárias, poesia e rodos pelos cantos, marionetas em bonecos de
madeira num teatro tradicional, domadores de animais exóticos, flautistas
tocando melodias a ratos escondidos, um urso amestrado, elefantes mostrando
destreza em patas gigantes, bailarinas egípcias, contorcionistas em trupe,
saltimbancos em roupas medievais, magia em cartolas fantásticas, fantoches
chineses em língua abstracta, pintores descobrindo a harmonia em peitos
fartos, funâmbulos e cavaleiros, actores e jogos espirituais, anões
e panteras negras, bebidas exaltando o deus do vinho escorriam em banda pela
comunidade em festa, vozes cantando ópera agraciada pela mistura dos
sons de vários instrumentos musicais, não faltando a beleza do
Carnaval de Veneza, no mistério das pessoas disfarçadas.
Andavam de mãos dadas, apertadas pela multidão, procurando Graça
o seu grupo de pares, brindando a alegria da juventude nunca esquecida.
No Terreiro do Paço, lá estavam reunidos, em calorosa conversa
divertida.
Abraçaram-se como se estivessem estado afastados durante largos anos,
em gargalhadas púrpuras de paixões alucinantes.
Fizeram um círculo e dançaram todos ao som da lareira imaginária,
comemorando o reencontro tal como índios fora das tendas, sugados pelo
prazer do barulho.
Renasceu a madrugada num amarelado sol resplandecente, bravo calor trazido num
dia alaranjado e quente.
Graça e Leonor tomavam o pequeno-almoço na Brasileira, tendo alugado
todas as mesas e cadeiras, comprados todos os bolos, sandes, sumos, fatias de
pão ainda quentes, trazidos pelos empregados, não tendo nada a
medir para concretizar os desejos do grupo familiar ali reunido.
Casa cheia na memória de todos. Nem daqui a cem anos voltariam a ver
o ajuntamento, o grupo, a multidão nas conversas, do falar, na tertúlia
animada.
O teu livro como vai?
Muito bem, vou para casa, tenho a cabeça cheia de ideias novas.
Óptimo. Ainda bem que contribui para a tua escrita. Agora vai, pisga-te.
Na mesma rua pisada tantas vezes, Leonor mirou as mensagens no seu telemóvel.
Uma delas dava por terminada a relação. Apesar de Gaspar não
ter tido coragem para lhe falar pessoalmente, deu-lhe a virtude de ficar livre
novamente para gostar de alguém. Sentiu-se bem.
No caminho pelas Avenidas Novas, assistiu aos flashes tirados a árvores,
a objectos estáticos, à paisagem matinal, às ervas, às
pessoas, a ela, sem o saber, através de esverdeados olhos misteriosos.
Durante essa semana e durante todas as semanas saia de madrugada para comprar
pão quente, croissants, para depois regressar a casa, sentar-se na cadeira
e escrever sem apagar o texto, sem se arrepender das palavras usadas, até
que, numa dessas madrugadas, abriu a caixa de correio e de lá tirou um
envelope contendo a sua figura estampada numa fotografia singela, adornada pela
roupa festiva, de cabelos ao vento, rindo perante as restantes pessoas em canções
mornas, de vidas fugidas, de pesarosos fados.
Um bilhete junto à fotografia completava a mensagem.
Gostaria muito de te conhecer
estarei no pequeno jardim renovado.