A Garganta da Serpente
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Correspondência entre ti e Amélia

(Maria Vilhena)

Entrei.

Pisei o soalho enegrecido pelo tempo. Teias de aranha brilhando no tecto, parecendo labirintos ofuscantes pelos raios de sol infiltrados no espaço.

Tive medo.

Continuei a pisar o soalho que flutuava à medida dos meus passos. Rangiam as paredes e os cortinados pela ânsia de a conhecer.

Estive em modos de voltar para trás, descer as escadas em caracol, vestir o sobretudo, pegar na mochila, abrir a porta e vir-me embora. O meu peito batia forte, sentia as pulsações do coração incharem o pescoço. Reparei na minha figura no espelho em pó sacudido por dedos trementes.

Fiquei.

Toquei nos livros, toquei nos móveis, no baú em madeira escura, toquei na estátua ao canto, no chapéu de palha, nos vestidos, vi os quadros pendurados, um candeeiro de pé alto sem lâmpada, vi um gira discos e um disco de vinil na surdez da envelhecida melodia por tocar. Não a vi.

Abri a primeira gaveta da cómoda. Vazia.

Abri a segunda gaveta da cómoda. Vazia.

Abri a terceira gaveta e quis abrir a quarta. Trancada.

Tentei forçar, sem sucesso. Achei estranho, pois tinhas dito estarem as cartas numa das gavetas da cómoda. Não me falaste na gaveta trancada. Onde estará a chave?

Procurei pelos móveis, abrindo as portas, revistando o baú, folheando livros, revistas literárias, enciclopédias, dicionários de línguas estrangeiras, fotografias. Vi-te. Reconheci a tua postura.

A chave, onde estará a chave?! Escondeste. Eu sei!

Essa fotografia. Peguei nela novamente. Sentei-me na cadeira de baloiço. Como eras jovem, como eras bonito, homem feito, adulto, um senhor letrado, o doutor, o médico, a esperança estampada no perfil. Abri o álbum de fotografias e outras imagens assolaram, apareceram recordações, momentos, o preto e o branco, o antigo, o pensamento que não volta nos gestos alheios. Por fim, gritaste pelas cartas. As cartas. Descobre as cartas e perdoa-me! Pediste.

Não a vejo, procuro e investigo, quero saber, preciso desesperadamente de a conhecer para te perdoar, para satisfazer o teu pedido, para poder olhar-te nos olhos e descobrir a verdade.

Mataste-a não foi?

Ouço o tilintar de uma chave colocada na fechadura da janela fechada. Muitos anos passaram desde que abriste a janela pela última vez. O vento consegue trespassar a madeira das portadas pintadas de verde, e até hoje desdenhadas por todos.

Abri a janela e através da janela vi o jardim mal tratado, flores velhas, muros destruídos, árvores de folhas caídas, a estátua do leão com o busto perdido algures por entre as folhagens castanhas do Outono vindouro. Pensei em ti.

Por instantes fiquei assim, parada no tempo tal como tu estás agora. Só o grito proferido e silêncio profundo na total solidão.

Basta! Não quero reviver a situação nem descobrir a verdade. Está à vista de todos, só tu não a vês. Fechei tudo, a janela, as portadas, o baú, os livros, o álbum. Esqueci os retratos.

A chave rodou para o soalho e caiu em frente da cómoda. Apanhei-a, quis voltar a rodar a fechadura, não consegui. Mais uma tentativa e outra, mais outra, muitas tentativas.

Sentei-me outra vez na cadeira e baloicei o corpo, movimentei a alma.

Imaginei-te de olhos fechados, o gira discos produzir o som da música e de como seria a sensação de estares aqui, com a minha idade, de seres como eu e eu ser como tu. Escutando a guitarra portuguesa, conversando com ela, amando-a, querendo-a, despindo-lhe o vestido de seda, acariciando-lhe a nuca, humedecendo-lhe os lábios com os teus beijos.

Apercebi-me da minha existência ao baloiçar a cadeira de verga.

Foi numa tarde primaveril, vocês os dois a comemorar a natureza, um amor infinito, ambos num só corpo, numa só vida, a mesma guitarra tocando, duas almas vivas, unidas.

Promessas, sonhos, risos, felicidade ao verem o jardim tão lindo, florido, árvores de fruto, os muros pintados de fresco, as roseiras em flor, as cores.

Ela está a dançar para ti ao som dos teus dedos tocando as cordas da guitarra…pela última vez!

Continuo assim, embalada, como se ainda estivesse em seus braços no amamentar da vida precoce, pequena bebé, pequeno botão de rosa.

Abres a última gaveta da cómoda, como se estivesses a esconder a vida.

A criança acordara de um sono profundo, devagar abre os olhos. Estava deitada sobre a cadeira.

Parou o baloiço, o morno do sonho. Choras muito. Lembro-me de chorares muito.

Paro de baloiçar a cadeira. Abro os olhos e observo a cómoda.

Tenho a chave entre os dedos.

Num impulso, ponho-me de joelhos em frente da cómoda, tal como a lembrança do teu corpo pesado e cansado.

Rodo a chave, abro a gaveta e vejo as cartas…a guitarra também lá está, descansando.

Fico a saber da doença, dos infortunados resultados das análises, dos exames, das dores.

Ela escreve-te do sanatório, sente a tua falta, deseja voltar para ti, que a deixes regressar.

Tu respondes não ser possível de uma forma muito subtil.

Minha adorada esposa, começas por escrever.

Mais algumas linhas. Tudo está bem. Cá estaremos para te receber. Anseio por ti.

Terminas. Teu para sempre.

Noutra carta a mesma súplica, a nossa menina. Tenho saudades. Não sentirei o sofrimento a teu lado.

Continuas a teimar em deixá-la ali, junto dos outros enfermos. És médico, mas o colega é teu amigo, olhará por ela, tratar-te-á com carinho e admiração. Teu para sempre.

Leio vezes sem conta. Teu para sempre. Os pedidos, as rezas, as saudades.

Por fim, vacilas, não aguentas mais.

Contratas uma enfermeira para o dia e para a noite. Preparas o quarto de hóspedes.

Não convém estares perto. Ficarás doente, aconselha-te o amigo.

Regressas às cartas, comunicas com ela através das cartas. Dormes com ela quando lhe escreves.

Sentes a vida a escapar-lhe quando a enfermeira sai a correr direito ao lavatório com a arrastadeira ensanguentada. Passou a noite neste desespero, afirma num pranto.

Vejo-te passar os dedos por entre os nós dos cabelos.

Espreito-a pela frincha da porta. Chama por ti, ouço o teu nome na repetição da palidez dos olhos encovados.

Assustado, afastas-me, pegas-me pelos braços.

Durante anos não a vês, só lês as palavras tremidas, a letra sem rumo.

A menina está na primária. Brinca muito, aprende depressa. Está tudo bem. Teu para sempre.

Outra vez.

Aparece a primeira revolta. Quero vê-la, conhecê-la, sentir-lhe o cheiro.

Ela responde numa outra carta. Pergunta por mim.

Exclamas não poder, eu estou bem, fui numa excursão escolar. Estou na segunda classe.

Irrita as palavras, afirma estar presa. Já não tosse, sente-se bem. Exige a tua presença.

No fundo da gaveta, uma folha brutalmente amarrotada, a tinta borrada. Pedes perdão…

Estavas embriagado. Chegaste a casa dando pela minha falta. A menina? Perguntas.

Fugi de ti para a ver. Aguardei junto do reposteiro. Estava a preparar-se na casa de banho para me receber. Só sentia o cheiro a rosas e a sua sombra.

Não esquecerei as tuas feições ao entrares furioso no quarto.

Mandaste-me embora, empurraste-me e cai no corredor.

Ela pressentiu o marido inconsciente. Apareceu aflita e deu contigo parado, de cabelo desalinhado, gravata torta numa camisa tresandando a perfume feminino.

Estava bela. Parecia uma deusa da mitologia da antiga Grécia.

Loira, de cabelos longos apanhados por um gancho prateado contrastando com a brancura do vestido comprido e das sandálias transparentes.

Descreveste nesta carta o esbofetear a situação com brutalidade.

Durante anos amaste uma desconhecida. Estava doente, morria lentamente.

Trataste-a como uma vulgar cliente no teu consultório caseiro. Não havia esperança.

A menina era só tua. Dela não havia resto de nada. Uma hóspede num hotel de serventia.

Mas sempre e para todo o sempre teu marido até que a morte nos separe.

Bateste com a porta e ela nada disse.

Devolveu esta carta amarrotada, sem aceitando o teu perdão do dia seguinte.

Mais cartas lhe escreveste, explicando que não podias mais aguentar a separação. Todos aqueles anos sofrendo na distância de um corredor.

Procuraste outra mulher, outros perfumes, procuraste a tua esposa, a tua doce e pura esposa, muitos beijos, muitas carícias, muito teatro. Rejeitaste todas as mulheres, declinaste os perfumes, os colares, os convites. Também tu vivias numa prisão. Estava sempre no pensamento o seu amor e dedicação, sofria por ela, contentava o olhar em mim, mas não me via.

Todas essas cartas vieram devolvidas, até a enfermeira não entregar mais nenhuma correspondência.

Em estado de coma ficou durante semanas.

Acordou numa noite de chuva intensa e de trovoada assustadora.

O tempo tinha-a acordado para se lamentar. Sofria e gritava por ti. Chamava pela menina de dez anos.

O lamento da morte, disse por fim a enfermeira.

Mataste-a, não foi? Perguntei-te na ambiguidade do cinismo e da irónica situação, de te ver encolhido a um canto, olhando para o vazio.

Estive até aos vinte e um anos num colégio interno, sem nada saber de ti.

Tal como Amélia, recusei todas as palavras vindas de um estranho.

Tal como a minha mãe, recusei o teu arrependimento de pai e marido.

Guardaste as recordações nesta gaveta, fugindo do mundo e do jardim circundante dos teus sentimentos.

Fui dar contigo deitado entre cobertores rotos e caixas de papelão a servirem de colchão num aconchego de fim de tarde numa rua refinada da cidade. Estavas encolhido pelo frio que se fazia sentir. Pediste-me uma esmola, uma carcaça, uma sopa.

Parei no passeio. Não pare, menina, é um sem abrigo, é para a roubar. Vá trabalhar como os outros. É um fantasma citadino.

Na confusão da mulher que não parava de falar, reconheci a tua voz, mas não reconheci a tua cara. Estás velho, meu pai!

Mastigavas um pedaço de pão sem miolo, agarravas o pão com ambas as mãos imundas, unhas nojentas. Uma garrafa de vinho a teu lado, vazia…bebias pela garrafa, sorvendo o líquido inexistente, fingias engolir o desconforto de quem passava por ti, de quem te igualava com as paredes envidraçadas da estação de comboios, a ignorância do desdém. O evitar uma situação conhecida por todos, mas que ninguém quer ver.

As pessoas exprimem pena pelo coitado do homem, outras tal como esta mulher mandam-te trabalhar, és um vagabundo, um mal feitor, um parasita da sociedade.

Não te conhecem, não me conhecem, não se apercebem do teu sofrimento.

Chega um agente da autoridade para te prender. A tal mulher não compreendeu a minha aproximação, o toque das minhas mãos na tua cara envelhecida. Pegaste na garrafa para voltares a beber o inconsciente. Olhaste por fim…Viste a tua filha.

Tocaste-me também, beijaste a palma das minhas mãos. Choraste outra vez.

A tua sujidade percorreu o meu rosto, o meu pescoço, a minha roupa.

Estávamos os dois de joelhos em cima do papelão estendido, a mirar as nossas caras, os nossos corpos, os cabelos. Puxaste com carinho os meus cabelos loiros. Tentaste acalmar as lágrimas que escorregavam sem parar qual fonte de água.

O polícia algemou os teus pulsos atrás das costas, puxou o teu corpo para a frente, pediu reforços, a mulher telefonava para o marido, aflita. Estava em estado de choque, tremia-lhe as mãos, pestanejava muito. Um roubo vê lá tu, tentou violar a rapariga, obrigou-a a ficar de joelhos, tentou apertar-lhe o pescoço. Vem buscar-me, não consigo ficar aqui. Se calhar temos de ir à esquadra testemunhar.

Não consegui chamar por ti, chamar pelo pai, dizer o teu nome esquecido.

Levaram-te num empurrão, não tiverem pena de ti, não te respeitaram.

Tiveste culpa por ainda me amares como filha.

Após explicações provadas com documentos, o juiz deu-te liberdade, na condição de ficares a viver num lar, vigiado por um técnico da assistência social.

Quis muito ter-te comigo, mas a sociedade não deixa. Afirma a justiça do testemunho da tal mulher, que és um perigo, uma violência para o consumo social, uma verdadeira obstrução ao bem-estar público. Tens de estar preso.

Neste sótão não consigo ouvir os teus gritos, tapo os ouvidos, enlouqueço e choro muito por ti.

Julgo ver um papel rasgado, está dobrado pelo meio, nunca chegaste a abrir esta carta, ainda tem o selo intacto.

Violo a tua correspondência.

Uma única palavra escrita pela minha mãe.

Perdoo-te.

Ai, meu pai. Meu pai vagabundo, meu pai maltrapilho. Já não me proteges da tuberculose, já não me consegues proteger do perigo.

Nunca a prendeste, salvaste a Amélia, quiseste a sua lembrança perto de mim, mesmo à distância de um corredor.

Sai a correr, não me lembrei da janela, da gaveta aberta, da guitarra guardada e esquecida.

Fui ter contigo, escancarei as grades da tua prisão, beijei-te como não te tinha beijado antes, abracei-te, chamei por ti. Pai. Pai. Meu querido pai.

Estava a dormir, parecia feliz. Já lhe reconhecia as feições.

Perdoo-te, pai. Eu perdoo-te, meu pai.

Chegou o técnico, chegaram as empregadas, veio ao meu encontro a responsável pelo lar da Santa Casa da Misericórdia. Aproximaram-se os idosos.

Num tombo repentino, separaram-me de ti.

Tinhas falecido, chamando pela Amélia. A menina está bem. Teu para sempre.

Perdoas-me?

Sim, pai, eu perdoo-te.

Agora vou ter com a tua mãe, vamos ao sótão, eu vou abrir a janela e enquanto eu toco guitarra, a tua mãe irá dançar e juntos vamos ver-te a brincar no jardim.

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