A Garganta da Serpente
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Dançar para esquecer

(Maria Vilhena)

"- Conheces a história do bairro da Bica?" - perguntou.

Ele não soube responder. Disse apenas ter falado com o guarda-freio do eléctrico. Ficara a saber o seu dia de trabalho, tomou-lhe confiança na conversa, apenas isso.

Sentiu Lisboa fora da pressa pedestre dos seus habitantes de bairro histórico. O caminho íngreme deu-lhe vontade para conhecer a alma do típico e apaixonado fado.

"- A nossa alma!" - retorquiu por fim.

Subiam o passeio muito juntos, os vários grupos de pessoas amontoavam-se formando uma barreira de sardinhas assadas, sangrias, cerveja fresca engolida num calor humano.

Ela entendia a noite como uma turista. Olhou os edifícios com admiração única, ouvia as conversas num som abafado pela música popular. Fascinou-lhe os rostos desconhecidos.

Travessa da Portuguesa!

Prestava atenção no seu discurso. Aliás um monólogo, sim, prestava antes atenção ao monólogo. Ouvia-o não sentindo as palavras, por vezes o contexto não era apropriado. A sua alma vagueava por entre encontrões, risos, imagens reflectidas nas paredes dos prédios baixos.

Alguns dançavam…outros abraçavam-se.

Estavam à frente um do outro, ambos encostados a uma esquina.

"- …o cinema precisa de se libertar da literatura…"

Sim. Ela precisava de libertar os sentidos. Sentia-se apertada. Lembrou-se de alguém lhe ter dito que a tal personagem era enigmática, um tanto perdida, não sabendo que rumo tomar numa direcção. Ouvia Carlos Paredes na imaginação dos nomes ao serem por tantas vezes repetidos perderem o significado, a essência.

"- …David Lynch faz uma desconstrução da narrativa nos seus filmes…"

Acendeu um cigarro vendo o fumo da primeira baforada desaparecer por entre o vento nocturno da madrugada. Ali estava ela querendo desaparecer como a nuvem espessa, esvoaçar como o vento, partir num comboio de banda desenhada e recordar, voltar a ser menina, mudar o destino da pessoa.

Sentaram-se à porta de uma das várias casas históricas. Um ao lado do outro.

Duas crianças brincavam com um balão transparente. Mais acima um casal de namorados. Nas escadarias separadas por um ferro apoio pintado de verde, várias pessoas trocavam impressões. Pareciam alegres.

Olhando para baixo, o amontoado de gentes formava um mar intransponível. Pensou conseguir passar, juntar-se a eles, passar despercebida. Ser como aquele mar.

"- …Conheço pessoas que gostam de viver sozinhas e sentem-se bem, outras mesmo estando no meio de uma multidão sentem-se sozinhas…"

A sério? Ele soube adivinhar-lhe os pensamentos.

Ali estava ela, pensando na terceira pessoa, sendo uma outra pessoa, tentando apagar da memória um pico de saudades repentinas.

Julgou ser uma boneca colocada num móvel. Junto a ela estavam outros brinquedos. Uns mais caros outros mais baratos. Ficava feliz quando a iam buscar, pentear-lhe o cabelo de estopa, vestir-lhe uma roupa nova, brincar com ela. Quando a criança escolhia outro brinquedo, a boneca sentia-se apática, de olhos vidrados no horizonte do quarto infantil. Assim durante algum tempo ficou perdida por entre o pó acumulado. Já não tinha graça o laço na cabeça de louça, as cores das tintas no rosto tornavam-se invisíveis. Soube mais tarde que alguns dos brinquedos tinham desaparecido. Voltou a ser recordada, mas outros bonecos vieram, outros brinquedos substituíram os anteriores e voltara a ser colocada na prateleira do móvel.

Numa noite rebolou e caiu para o chão. A criança acordou sobressaltada ficando aflita. Abraçou muito a boneca, beijou-lhe a testa.

"- …Não tens de sentir ciúmes porque é de ti que gosto…"

A caminho de Santa Apolónia falaram de outros realizadores de cinema. Lado a lado esboçavam opiniões, passavam por eles mais rostos desconhecidos em formas aliviadas de fim de semana a terminar numa noite de feriado municipal abençoado pelo santo padroeiro dos casamentos. Tomando exemplos de cinema teatral, interpretaram por brincadeira uma cena tomada de impulsos amadores. As feições dele ficaram muito sérias, disse a sua fala num tom categoricamente ensaiado. Ela não conseguiu conter o disparate de uma gargalhada querendo por sua vez discursar no ensaio. Por momentos ficara feliz assim, naquele modo de estar a rir muito alto.

"- …Porque só falas com rapazes?"

Continuava a não conseguir esquecer a noite anterior.

Não havia motivo para a lembrança tão pouco para o esquecimento.

Voltaram atrás no caminho porque ele se esquecera de pedir o troco da cerveja.

De novo subiram o bairro da Bica. Na confusão da tempestade de tantas pessoas, o passeio tornara-se num funil, mas ela subiu a rua na rapidez de um piolho saltitante. Ele seguia-a com esforço, apoiando-a quando notou um pequeno deslize na calçada.

No restaurante o troco foi devido. Ele ficou aliviado na sua alta figura de simpatia instante.

Reapareceram na rua, já com um ambiente mais fresco.

Uns metros mais à frente, notaram o som de melodia estrangeira.

Os acordeons tocavam polka.

"- As pessoas bebem para esquecer. Seria engraçado dançarem para esquecer."

"- Achas?" - perguntou ela.

"- Acho…consegues ver a alegria estampada nos seus rostos?"

"- Consigo ver. Parece um título de um conto."

"- Qual?"

Por um minuto, só por um minuto desejou ser a boneca. Rebolaria novamente para o chão. O material de que era feita partiria com o contacto no soalho. A criança choraria pela falta, sentiria a prateleira vazia. Talvez…talvez se lembrasse!

"- …Não te quero perder, perdi tantas pessoas que se foram afastando…"

"- …Não te deixarei."

"- …Sinto não te dar a atenção que tu mereces…"

"- …Não te deixarei agora e na pura amizade…"

Ouviu a música e desejou dançar. O seu corpo tomava balanço na melodia estrangeira.

Naquele minuto não se lembrou.

"- Dançar para esquecer…é um bom título!"

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