A Garganta da Serpente
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Negativo

(Marlon Vilhena)

(Dedicado à memória de Franz Kafka)

- O que diria Voltaire se visse algo assim?

Armando não queria argumentar. Não entendia muito de Voltaire. Sabia que era errado. Na verdade, começava a duvidar inclusive disso. Mas, afinal de contas, o que era errado?

- O certo e o errado são relativos, não há nada de absoluto em suas definições. Quem pensa o contrário engana-se. Como escreveu certa vez o filósofo William James, o verdadeiro é só o conveniente em relação ao que pensamos, ao que acreditamos. Portanto, paralelamente, o falso é tudo aquilo que vai de encontro às nossas expectativas mais íntimas, é tudo aquilo que não consideramos em nossos pensamentos. Está acompanhando?

O jovem assentiu com a cabeça. Ainda tinha as mãos ensanguentadas, postas lado a lado sobre a mesa. Mantinha um olhar um tanto distante, embora parecessem mirar os olhos de Osvaldo, estes, plácidos.

- Porém, o certo e o errado não são necessariamente o verdadeiro e o falso, não é? - indagou Armando, um estranho semblante pensativo pairando sobre seu rosto. - Quero dizer, a Verdade é absoluta, enquanto que a Certeza não o é?

- Sim, sim, você aprende rápido. Acho que poderia tornar-se um grande filósofo algum dia. Claro, não fosse tão distraído. O filósofo precisa exercitar a concentração, compreende? Precisa fazer-se solitário durante seu trabalho. Foi assim que nasceram as maiores ideias do conhecimento humano, e por quê? Porque os filósofos adotaram este método extremamente eficiente, e foi da Filosofia que nasceram as Ciências, como você já sabe, e a maior dentre todas é, sem dúvida alguma, a Matemática, a forma mais pura de Filosofia Aplicada, se assim posso chamá-la.

O corpo ainda jazia sob os pés de Armando, aquela poça vermelha espalhando-se pelo azulejo branco no chão da cozinha. O sol batia calidamente pela janela entreaberta acima da pia, e o único som vindo de fora da residência era o canto de dois ou três passarinhos aninhados sobre um galho qualquer da árvore em frente. Pardais? Não parecia muito. Bem-te-vis? Decididamente, não. Beija-flores? Nunca ouvira o canto de um beija-flor, se é que ele canta. O jovem perdia novamente o rumo da conversa, agora Osvaldo falava algo a respeito de Pitágoras - ou seria de Platão? -, e ele não estava interessado em números e repúblicas ideais, o que queria estava jazendo a seus pés, pedindo um destino final.

- ... Mas vamos parar com isso. O que eu queria explicar era a origem da culpa. A culpa também não é absoluta, é como o certo e o errado, são atribuições morais que nos são impostas desde que passamos a entendermo-nos por gente, seres racionais, detentores do grau máximo da evolução animal neste mundo...

- Onde?

- ... e assim perdemos aquele... Como? - por um momento Osvaldo voltou a atenção ao jovem, após ficar andando de um lado a outro, com uma taça de vinho segura entre as mãos.

- Onde vamos colocar o corpo? Ainda temos de limpar toda essa sujeira, e não quero me demorar muito.

Era como se o homem, pela primeira vez, estivesse dando a devida importância ao que ocorrera há minutos ali. Deu a volta à mesa, puxou uma das cadeiras, e sentou-se fitando o doutor Castro imóvel, este próprio como se espantado com sua própria morte, os olhos arregalados. Osvaldo só achava que aqueles braços grandes estendidos acima dos ombros do morto não combinavam de maneira alguma com sua habitual postura, aquela que se espera de qualquer doutor renomado nacional e internacionalmente: sóbria, com um quê de frieza e determinação. Não, aquela posição não lhe dava a impressão de ser determinada. Aproximou-se do doutor e alinhou seus braços ao lado de seu tronco. Fizera-o com uma certa reverência, como se a pedir desculpas por não tê-lo feito antes.

Armando levantara-se e procurava panos no armário sob a pia. Encontrara quatro, muito bem limpos, brancos, e vinha-os trazendo para junto do corpo, quando Osvaldo o deteve com uma das mãos sobre seu antebraço:

- O que fará com isso?

- Enxugar o sangue, o que mais poderia ser?

- Mas ele é o doutor Castro. Era, mas antes de tudo, era um doutor. Isto seria uma grave ofensa à sua imagem.

- Pior do que tê-lo esfaqueado no pescoço?

Osvaldo voltou a cabeça para cima da mesa, onde a faca de cozinha havia sido largada. Aquilo foi um lapso de emergência, pensou consigo. Entretanto não precisava recordar ao companheiro aquele detalhe. Suspirou. Sentia uma leve decepção. Não podia fazer nada para corrigi-la.

- Relembrando Maquiavel pela décima vez: "os fins justificam os meios". Pena que tenha sido assim. Era um grande homem o doutor Castro.

O jovem abaixou-se e segurou o corpo no chão pelas axilas. O companheiro prontificou-se a ajudá-lo, erguendo as pernas inertes, e ambos carregaram o defunto até o banheiro que ficava no corredor à esquerda, logo após a porta da cozinha. Tiveram dificuldade, o doutor era um bom apreciador de culinária, adquirira vários quilos experimentando pratos diversos pelos restaurantes afora, junto com sua esposa e colegas de trabalho. Quase não comia carne, o que Armando achava estranho: não acreditava que alguém pudesse engordar tanto alimentando-se basicamente de vegetais e sopas. Mas sabia que suas contas com comida eram altas. Isso punha um ponto final naquela questão.

O sangue já se havia espalhado bastante pelo azulejo, o que lhes faria perder mais tempo limpando-o. Entretanto seria um problema a ser resolvido mais tarde: primeiro deveriam encher a banheira com água e depositar ali o morto, depois de tirar-lhe a roupa. Deixariam a seu lado uma garrafa de uísque, juntamente com um copo. Tentariam fazer com que o ambiente fosse o mais normal possível. À exceção de toda aquela vermelhidão líquida, obviamente. Ninguém chegaria à casa naquela hora, tinham certeza. Conheciam a rotina daquela família: Marília de Castro, socialite de colunas do jornal mais lido da cidade, praticava caridade para com crianças portadoras de HIV num hospital, enquanto a sobrinha Lídia - não tinham filhos, e um casal sem filhos não era visto com muito bons olhos; convenceram a sobrinha do interior a morar com eles enquanto estudava na faculdade - estaria na academia de ginástica e, logo mais, nas aulas.

Ainda era manhã. Era um bairro sossegado, de pessoas sossegadas, embora Armando suspeitasse de que tamanha calma era somente aparência. Era o que sabiam fazer de melhor, manter as aparências. À mente do jovem voltou a frase de Maquiavel. E pensou que o mundo era o que era devido àquelas palavras, cruéis por um lado, sensatas por outro.

- ... me ouvindo?

- O quê?

- Pelo visto, você anda muito aéreo hoje. - ironizou Osvaldo. - Não deixe a cabeça do doutor muito caída para o lado, coloque-a sobre a borda da banheira como se ele estivesse admirando o teto.

A água quente aberta na torneira já tomava conta da metade do volume da banheira, e começava a diluir todo o sangue restante sobre o tórax e os braços do corpo. Armando via aquilo como uma pequena maravilha que quase todos não dão importância: o fluido vital sendo devolvido ao ambiente primordial de toda a existência animal, como a querer voltar ao seio de onde surgiu há muito e muito tempo. A Evolução era um ramo da Ciência que lhe despertava um enorme interesse, uma tentativa de autoconhecimento num labirinto escuro, onde a única coisa que se pode utilizar para escapar desse lugar é a razão. Quanta besteira, pensou sacudindo a cabeça, tenho ainda de limpar a sujeira que fizemos.

Voltou à cozinha, umedeceu um dos panos na pia e agachou-se ao lado da mesa de jantar, esfregando e apagando aos poucos a poça rubra à sua frente. Pensava que, se o doutor Castro não tivesse reagido daquela maneira, não estaria naquele momento de joelhos na cozinha: estaria, com Osvaldo, a caminho de sua casa. Tranquilos. Bem, ao menos assim se sentia, o que tomava por um bom sinal.

Ouviu uma canção agradável. Vozes entoando uma melodia simples. Já ouvira algo parecido antes, mas não sabia o que era. Viu Osvaldo voltando pela porta da sala; resolvera ligar o aparelho de som.

- Canto gregoriano. Sinceramente, foi a coisa mais perto de Deus que a humanidade conseguiu produzir: não igrejas, não conventos, não livros sagrados. - vinha com os olhos semicerrados, maravilhando-se com os ouvidos e acompanhando a música com as mãos levemente balançadas de um lado a outro. - Cristãos dizem que a Bíblia é a Palavra de Deus. Estão errados. Fomos nós que a escrevemos, Deus não teve nada a ver com tudo isso, que não passa de imaginação, fantasia. Se me permite dizer, até mesmo diversão de alguns. A música é a marca mais sublime, e por isso, divina que há em nós. Schopenhauer já que dizia que a música é...

- Desculpe-me interrompê-lo, mas você deveria me ajudar aqui para acabarmos logo.

- Sim, claro.

Aos poucos a cozinha voltava a ser como antes. Os monges entoavam uma nova canção, e ambos sentiam uma espécie de conforto pairar naquele silêncio ensolarado. Armando não sentia nada mais além daquilo, e pôde notar o mesmo em seu companheiro, que até sorria. Por fim, levantaram-se, jogaram os panos dentro de um saco plástico e o jovem levou-o para trás da residência. Voltou segundos depois. Osvaldo sentara-se novamente, e novamente com as pálpebras abaixadas. Armando ficou a admirá-lo por um breve instante, então sentou-se à sua frente.

- Uma pergunta.

- Adiante. - disse Osvaldo.

- Para que tudo isso, toda essa limpeza?

O homem baixou as mãos, pegou a taça de vinho que havia deixado sobre a mesa, sorveu-o num gole rápido e encarou o companheiro com um olhar um tanto surpreso.

- Mas não é claro para você? Aparência, meu amigo, aparência. Há que se manter a aparência de tudo, como se não tivéssemos estado aqui.

- E como fazer isso com aquele corpo sangrando na banheira? - indagou Armando, fitando Osvaldo fixamente.

- Ora, foi um detalhe que não nos foi possível controlar para que não acontecesse. Não somos perfeitos, meu amigo. A perfeição não existe no plano material, nunca há de ser alcançada em meio à matéria. E isso até que é bom para todos nós. Veja, se tudo se realizasse apenas como queríamos, estaríamos então vivendo em perfeição. Não harmonia, que é outra história, embora seja tão frágil quanto a perfeição a qual todos imaginam, ou esperam alcançar. A perfeição não pede para ser modificada, ela existe por si só. Como o homem, com todos os instintos que lhe são inatos, e imperfeitos, ainda que sendo uma criatura racional, poderia viver em perfeição? Aquele homem deitado na banheira vivia na harmonia, sim, vivia na harmonia, como você mesmo pôde comprovar: uma boa esposa, bons amigos, uma boa carreira profissional que lhe proporcionava uma boa vida. Mas essa harmonia era válida apenas em seu próprio mundo, e ainda assim era deficiente: o que ele queria para torná-la perfeita? Uma filha. Não conseguiu ter uma filha, mas manteve a aparência da perfeição - em seu mundo, relembrando - com uma sobrinha. A aparência era o que contava. Não pudemos evitar o que se sucedeu aqui esta manhã, porém não foi de todo um mal. Se você raciocinar um pouco mais, acabará concordando comigo. Não pudemos evitar o que houve, lamento, e sei que você também lamenta. Mas, sendo os responsáveis por isso, temos a obrigação de continuar esta aparência do melhor modo que está a nosso alcance, pois nela também vivem a esposa e a sobrinha, assim como todos os outros direta ou indiretamente ligados a esta família.

Armando mantinha-se fixo no olhar, e Osvaldo não era capaz de discernir o que ele queria dizer-lhe com aquilo. Provou mais do vinho e prosseguiu:

- Volto à questão da culpa. Ela é fruto da vida social, um artifício criado para tentar manter a ordem, ou seja, a harmonia no convívio entre os homens civilizados. Você esperaria que um ser qualquer, desprovido da noção de sociedade, soubesse o que significa a culpa? Não, não faria sentido para ele. O que lhe faria sentido seria a vontade de sobrevivência. Não é o que todos procuram preservar, a sobrevivência? E acredito que Maquiavel pensasse mais ou menos igual ao que acabei de explicar-lhe. Quando disse que os fins são justificados pelos meios através dos quais foram conquistados, possivelmente estivesse querendo fazer-nos esquecer a culpa dos atos causados, quaisquer que fossem estes. Você pode talvez imaginar que isto fosse adequado para a política monárquica da época de Maquiavel, porém eu lhe digo que isso pode ser aplicado a qualquer época. Pense bem. A sociedade busca a sobrevivência da espécie, e por conseguinte a sua própria sobrevivência. De acordo? Basta olharmos por aí. O que faz um cachorro ao revirar latas de lixo? Ele tem consciência do ato que pratica? Por que os pássaros migram? Por que trabalhamos, vendemos nossos braços, mãos, pernas e cérebro para outros? Nós podemos responder a esta questão: por causa do instinto de sobrevivência. E o instinto de sobrevivência nada tem que ver com a culpa implantada em nossa conduta.

Enquanto o homem discursava, o jovem pôs-se de pé e caminhava com um ar compenetrado da porta da cozinha para a entrada da sala de visitas, e de lá para o corredor, então voltava e repetia o trajeto, não na mesma ordem anterior. Quando o outro calou-se, parou ao lado da mesa e provou do vinho diretamente do gargalo da garrafa. Osvaldo fez uma expressão indignada, porém manteve-se quieto, desviando o olhar para sua própria taça.

- Você quer me convencer de que o que aconteceu, simplesmente teve de acontecer. Naturalmente. Já entendi. Faça o que veio fazer e vamos logo embora. - disse Armando, consultando o relógio que trazia no pulso.

O companheiro levantou-se e foi até o final do corredor. Abriu a porta que dava para o quarto do casal. Logo mais retornava com um pequeno punhado de papéis enrolados numa das mãos.

- Ações. Títulos bancários. O doutor Castro era uma boa pessoa, porém demais desconfiado, até mesmo com os bancos. Por isso preferia guardar toda esta fortuna junto a si, no quarto. - explicou Osvaldo, sorrindo de um modo juvenil.

Armando espiou pela janela, certificando-se de que ninguém os veria saindo da residência. A rua parecia deserta. Voltou, pegou a garrafa de vinho, e então ambos passaram pela porta que dava acesso à varanda, pondo-se a caminhar tranquilamente pela calçada. O jovem provava aos poucos da bebida distraidamente, detendo os olhos sobre as mansões que os cercavam, enquanto o companheiro examinava com atenção os papéis.

- E agora?

- Agora trataremos de vender estes títulos, depois veremos o que fazer com as ações. - respondeu Osvaldo.

- Não vai ser fácil.

- Conheço algumas pessoas que podem ser-nos úteis.

O sol já ia alto, havia poucas nuvens, um azul intenso espalhava-se pelo céu. Um bom dia para o descanso, pensou Armando, um bom dia para esquecer todas as preocupações e aproveitar o tempo. Entretanto não se sentia capaz para tal. Havia matado há quase uma hora. O que não significava que fosse ficar atormentado por aquilo. Uma pequena perturbação, sim, uma pequena perturbação, nada mais. O suficiente para impossibilitá-lo de terminar aquele dia de bem consigo mesmo. Pensou que fosse a culpa que trabalhava em sua mente. Lembrou-se da culpa, de todo aquele palavrório proferido pelo homem a seu lado. Voltou-se para ele, e este não parecia incomodado com qualquer coisa, inclusive podia reconhecer um sorriso discreto em seus lábios.

- O que foi? - quis saber Armando.

- Só estou pensando...

- O que está lhe agradando nesses pensamentos?

- Só pensando.

Armando empurrou o companheiro, derrubando-o sob um monte de sacos de lixo por que passavam. Osvaldo deixou os papéis caírem de suas mãos, enquanto tentava apoiar-se no chão, evitando bater a cabeça no muro da casa em frente. Virou-se profundamente surpreso para o jovem, e este não estava com uma expressão de brincadeira no rosto.

- Conheço esse sorriso. E não é de coisa boa. A não ser exclusivamente pra você. Diga logo o que é.

- Não é nada de mais!

- Se não é, diga logo.

Osvaldo começou a balbuciar algo, gaguejou, levantou-se lentamente, olhando nervosamente de um lado para outro da rua, procurando ganhar tempo. Armando percebeu isso e cerrou os punhos, pronto para o que pudesse vir daquele homem. Conhecia-o muito bem, há mais de seis anos, podia prever algumas reações suas. E aquele comportamento significava uma tentativa de fuga. Ou de agressão. De qualquer modo, resolveria o que fosse naquele momento. E, naquele momento, concluiu que nunca gostara de sua companhia, por minuto algum. Não sabia como o aturara por tantos dias, tantas noites de vinho, tantos finais de semana, tantos encontros na biblioteca municipal. É verdade, possuía uma certa simpatia por filosofia. Apenas por isso teria andado com Osvaldo por todos esses anos. Contudo, ele era mais prático do que o outro. Não sabia como se deixara escutando toda aquela baboseira, tantas teorias, tantos enfeites acerca da condição humana, tanta pompa, uma imensa verborreia vomitada que, afinal, não fazia qualquer sentido. Nenhum sentido. Para quê? Já devia ter feito o que estava prestes a fazer há muito tempo. Bastava que então ele, Osvaldo, desse o menor dos motivos.

- Por que você fez isso? - reclamou o homem, buscando os papéis com os olhos.

- Já estou cheio de tudo. O que você está planejando dessa vez?

Armando ouviu uma risada um tanto desajeitada escapar da boca daquele homem. Diria até que um tanto insana, dada a situação.

- Jovens. Nunca conseguem visualizar o todo, apenas um ponto ou outro que lhes interesse para satisfazer o que tiverem em mente. Sempre foi assim, e agora perdi as esperanças de que isso pudesse ser mudado.

- O quê?

- Você não foi capaz de apreender o potencial daqueles papéis - apontou Osvaldo para os títulos e ações, e Armando viu que era a primeira vez em que via aquela mão tremendo daquele jeito -, e não acho que será! Por que vim trazer você junto comigo? Falhei na escolha.

- Para fazer a parte mais suja do trabalho, para a qual você é um fraco. De que adianta ler tanto, se não é digno de agir como pensa?

O homem arriscou correr pela sua direita, porém foi agarrado pelo braço e arremessado contra o muro às suas costas. Gemeu de dor. Ainda tentou pegar de volta os papéis ao alcance de sua mão, e esta foi prensada no chão pelo pé do jovem.
- Você não vai mais precisar disso.
Osvaldo, atônito, ergueu a cabeça para encarar o companheiro. O que viu foi um cano mirado para si.
- Não, eu p...

- Um fraco. Sempre foi um fraco.

Um estampido ecoou pela rua calma naquela manhã. Armando abaixou-se, recolheu os papéis, enrolou-os cuidadosamente, guardando-os no bolso de trás de sua calça. Não sabia, por enquanto, o que fazer com aquilo, tampouco se importava. Por enquanto. Olhou em volta: numa mansão mais atrás, uma senhora tirava um carro da garagem, entretanto não parecia estar ciente do que acabara de ocorrer ali, pois logo seguiu na direção oposta à dele. Voltou-se para o corpo estendido na calçada. Manter as aparências, recordou-se das palavras. Era algo sensato a ser feito. Arrumou os grandes sacos de lixo sobre o morto, encostado ao muro. Seguiu adiante.

Estava certo? Por que não se sentia mais incomodado, ainda mais com dois corpos sangrando em sua consciência? Pensava. Para que saber a resposta, enfim? Tudo era relativo, um tal Einstein já dizia algo parecido, não? Certo e errado, tudo relativo. Bom e mau. Feio e belo. A natureza é feita de pares. Feminino e masculino. Paraíso e inferno, vejam só! Positivo e negativo. E a culpa, onde entrava em tamanha miscelânea? Falando-se no ato em si, naquelas mortes que causara. Pensava - e viu que não era tão fácil quanto supunha. Moral, moral - onde guardar aqueles papéis? -, a sociedade baseia-se na moral. Vejamos. Mortes são perdas. Perdas e ganhos, novamente um par. Perdas e ganhos. Positivo e negativo. O que seria positivo para a sociedade? Ganhos. Ganhos são positivos, sempre. E nos atos em geral, o que é positivo? Pensava mais. Era complicado. O que era positivo?! Relativo, tudo relativo, sempre. Porém, o negativo, o que seria o negativo? Essa era mais fácil: culpa. A culpa é o lado negativo de um ato. E onde estava esse lado negativo no que cometera há pouco?

Não sabia. Também não queria saber. Mas até que levava jeito para filósofo. Osvaldo não era de todo um inútil. Tinha seus bons momentos. Isso não importava mais. De um só gole terminou o vinho, jogando a garrafa por sobre o ombro. O vidro espatifou-se na calçada. Não importava mais.

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