A Garganta da Serpente
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A Visão

(Marlon Vilhena)

De repente abriu os olhos e levantou-se do sofá. Havia dormido e esquecido a televisão ligada. Procurou o relógio na parede: três e meia da manhã. Desligou o aparelho e foi até a cozinha. A cerveja estava fazendo efeito na garganta seca, precisava de água. Abriu a geladeira e não encontrou nada mais além de outra lata da maldita/bendita bebida. O que fazer? Acompanhado de um natural cinismo, voltou novamente para a sala com uma lata de...

Não, não voltou para o sofá. Abriu a porta que dava para a rua; uma brisa fria animava a árvore moribunda na calçada em frente à casa, seus fracos galhos lhe dizendo que ela ainda vivia, coitada. "E daí", perguntou, "Eu estou fodido, ela que se foda também". Continuou o velho e alcoólico ritual de encharcar seu fígado já saturado. Sim, às três e meia da manhã, por que não? Vigias estão trabalhando a essa hora, ladrões estão trabalhando a essa hora, gatos ficam miando a essa hora, casais estão transando a essa hora, mortos estão mortos a essa hora, por que não?, repetiu.

Abriu o portão e sentou-se à beira da calçada com as pernas cruzadas, a cerveja na mão direita sobre a coxa, observando. Observando o vazio, mais nada. O que há mais para um alcoólatra observar no meio da escuridão e da solidão? Voltou os olhos para a árvore, agora à sua esquerda, e ela como que suplicando com suas mãos clorofiladas um pouco, algumas gotas de misericórdia. O máximo que pôde fazer foi entornar mais alguns goles em homenagem à enferma. A boa ação do dia já estava feita.

Foi quando apareceu.

Logicamente pensou que não passava de alguma espécie de efeito alucinógeno do álcool, também não sabia se isso era possível de acontecer, aquela lata em suas mãos era a sétima desde que chegou despedido, por volta das vinte horas. Aquele patrão filho da puta,querendo economizar seu pagamento, dois salários mínimos, para a mesada de seus quatro filhos, calhorda. "Sinto muitíssimo", ele disse, triste olhar, "Mas a vida sempre tem altos e baixos, você já sabe disso". E seu filho mais velho apareceu na porta do escritório, com um sorriso que não conseguiu esconder ao ouvir essas palavras. Pediu desculpas também. Ao diabo com elas.

Apareceu no breu de um terreno baldio, em frente à casa. Um ponto azul brilhante. "Mas que merda", foi o que conseguiu dizer. A coisa parecia crescer conforme pulsava seus raios de luz que também escureciam à medida que avançavam pelo mato e pelo pequeno monte de tralhas encostado no muro à esquerda. Coçando os olhos para desfazer aquela brincadeira de mal gosto que seu cérebro fazia consigo, levantou-se devagar, mas já um pouco perturbado... certo, nervoso. Deixou cair a lata, o resto da cerveja correu pela sarjeta, e o barulho da queda foi levado pela brisa, agora mais fria. Então aquilo parou. Enegrecido totalmente, pulsando sempre no mesmo ritmo lento. Perto da calçada do outro lado da rua. Quieto.

Olhou em volta. Ninguém. Além dele, somente as sombras eram testemunhas daquela estranha presença. Cerrando os punhos com força, arriscou um passo sobre o asfalto. A coisa não se moveu. "O que é isso, o que é isso, Deus?!?", nenhum outro pensamento, sentindo o sangue acelerar, querer escapar, para onde? Juntou os dois pés firmemente. A boca mais seca do que antes. A coisa ainda na mesma posição. "Tudo passa, tudo passará...", lembrando uma canção mentalmente, o máximo de silêncio. Afrouxou um pouco as mãos, as unhas também queriam esconder-se... na carne.

Respiração profunda, um dois, três... "É só um pré-sintoma de loucura".

Avançou até o meio da rua e foi como se suas pernas virassem concreto, nem se quisesse sair dali o mais rápido possível seu crescente pavor não permitiria. Só esperar. Esperar. Foi então que um zumbido forte atravessou os tímpanos, tão ensurdecedor que seria impossível a vizinhança continuar dormindo. Agachou-se sobre si mesmo, as mãos tentando abafar o som gradualmente estridente, insuportável. Mas afinal o que...? E percebeu que aquilo vinha de seu interior, como se uma abelha gigantesca estivesse ali, dentro de si, mais desesperada do que ele próprio, a essa altura.

E ninguém saiu à rua. Todos ainda dormindo, roncando, de um lado para outro na cama, porém em paz. "O problema é comigo, porra, isso não pode ser real".

A visão pareceu recuar do mesmo modo como cresceu. O zumbido continuava tão alto quanto possível, o bastante para que seus ouvidos não estourassem. Ousou levantar-se ao mesmo tempo em que a esfera desaparecia por detrás do muro. Sem variação de cor, sempre o mesmo negro.

Enfim silêncio novamente. Não pôde conter um estremecimento de alívio. Temeu a volta repentina daquilo, ficou aguardando. Um minuto. Dois minutos. Não vinha. Não veio. Mesmo assim, voltou à beira da calçada sem perder de vista o terreno baldio. Foi então que percebeu que a brisa parara durante... "Durante aquela merda toda", ele terminou a observação. Voltava agora, um pouco mais fria. A árvore parecendo pender mais sobre ele. Proteção? Perdão? Gozação, talvez? Sem comentários.

Voltou para dentro de casa. Passou o cadeado no portão e fechou a porta da frente com duas voltas da chave na fechadura mais dois trincos. A precaução... Lavou o rosto várias vezes, bebeu grandes goles da água da pia do banheiro e foi deitar-se. A princípio, de luz acesa. "Estou voltando à infância de três, quatro anos? Ora..." e apertou o interruptor ao lado da cama. Pois bem, boa noite.



O telefone toca. Espera. Toca. Ressoa pelas paredes, pelo corredor até a porta semiaberta de um quarto onde há um corpo de olhos abertos. Um braço tocando o chão. O mesmo homem. O mesmo espanto. Quieto.

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