Moira olhou ao seu redor. Apesar de não causar espanto, a destruição
a deixou nauseada. Procurou pela bolsa onde estavam os estimulantes comprimidos
azuis que não conseguira encontrar antes do caos. Engoliu logo cinco.
Pior do que estava não poderia ficar. Sangue dos corpos feridos espalhava-se
pela estação do metrô. Procurou por Roque até onde
a extensão do seu olhar conseguia alcançar. Nem sinal dele, muito
menos de Ronaldo ou das lobas. As lobas! Afinal por causa delas estavam ali:
ela e Roque em busca de Ronaldo. Para tentar localizar o amante programado pelo
sistema e sequestrado por uma das mulheres transformistas.
Sentia-se mais forte. Pediria conselhos à Loira, a mulher do Roque. Ela
saberia o que fazer. Sempre sabia. Apesar de serem diferentes, (Loira era do
século anterior, ainda possuía cabelos e seus dedos eram separados),
davam-se bem. Isto é, quando Roque não estava por perto, então
o ciúme a vencia e ela se revelava.
Encaminhou-se por entre os escombros procurando achar a saída para a
rua. Era sexta-feira, dia dos estupradores. Mas teria que se arriscar. Não
deveria ter retirado o seu cinto de castidade- a única proteção
das mulheres pertencentes à Organização.
Os estupradores que se conformassem com as mulheres da ralé das periferias.
Afinal haviam nascido para isso. E clonadas quando o estoque estava se findando.
O clone era rotina pois o custo de reprodução por provetas era
alto, só acessível às mulheres da Organização.
O fato do preço nem era importante, uma vez que reproduzir já
não estava no esquema de vida das mulheres de classe dominante. Havia
sistemas menos trabalhosos, como os conjuntos embrionários. Vendidos
em qualquer laboratório de manipulação e por tipos: loiros,
amarelos, morenos. Os loiros eram os preferidos. a população estava
mais clara, mas...
Depois das revoltas com a consequente destruição das igrejas
e seitas pelo povo insatisfeito com o não cumprimento das promessas de
riquezas, os cientistas ficaram mais à vontade para usar métodos
científicos para controle da população. Dr. Nonez era um
desses.
Apesar das regras, algum bandido mais ousado tentava sempre atingir as mulheres
proibidas. Como ela. Que agora se sentia completamente desprotegida. Desamparada
como a cidade. Como o aumento de clones, de bandidos, e de mendigos, o círculo
da periferia aumentara o número de habitantes e pasmem! fechando os membros
da Organização num círculo cada vez menor. Os meliantes
cresciam em número e apareciam nos bairros proibidos em busca de água
e alimento desidratado.
Cautelosamente deixou o caos do terminal. Encontrou entre colunas em ruínas
e entulho empoeirado, o seu carrinho blindado, modelo ovo, com escotilha à
prova de balas, incólume, abandonado no meio da confusão.
Sentia falta física de Ronaldo. Quatro semanas, e nem a Organização
havia conseguido localizar o seu homem. Roque, um dos chefes, nada pudera fazer.
Na verdade o plano falhara. As lobas não poderiam ser menosprezadas.
Como sociólogo do século anterior Roque conservava o resquício
dos correligionários que teimavam em estudar os fenômenos da época.
As lobas entretanto, não faziam parte de nenhuma ideia programada,
e portanto, fugiam ao controle do sistema.
Como explicar as mutantes? As lindas mulheres angelicais que todas as sextas-feiras
se transformavam em lobas e saíam à cata dos engenheiros de solo,
suas vítimas prediletas? O pior foi Roque se apaixonar por elas. Por
todas. Tanto, que aquela noite no metrô, ele ficou tão excitado
quando percebeu uma delas se transformando ao seu lado, que não se conteve
e saiu à caça abertamente.
E aconteceu o caos. A destruição. O sangue. Nada de novo.
Encontrou Loira fazendo seu pó de múmia. Desta vez pegou-a em
flagrante.
- Oi, Loira, fazendo seu creminho de beleza?
Sempre era cínica com Loira. Essa era a base da relação
das duas. Sem contar o ciúme doentio que Loira sentia de Moira, desde
que esta começara a trabalhar com Roque nas campanhas de proliferação
de ódio entre a população, os párias contra os privilegiados:
mate seu inimigo antes que ele o mate!
- E Roque? Respondeu ela fingindo não ter ouvido a pergunta. Nem ao menos
olhou para Moira.
- Temos que percorrer os hospitais. Aconteceu novamente. As lobas atacaram no
metrô.
- Meu Santo! Você está horrível... Venha aqui. Vou lhe fazer
umas pomadas. O que houve com a sua cabeça?
Mão prodigiosa de Loira! Ela sabia lidar com aquelas plantas As únicas
remanescentes depois da última descarga dos meteoritos e que ela conservava
como ouro num pequeno jardim. A pele da cabeça de Moira recuperou-se
logo e os pequenos tufos pilosos brilharam limpos novamente. Loira e Roque,
graças às maravilhosas poções preparadas por Loira,
adiavam a velhice e a senilidade, sistemas de extinção de vida
do século anterior, do qual eram os únicos remanescentes. Sua
face era lisa como bunda de santo. Sem uma única ruga. Esticada como
uma múmia. E Roque, pujante e viril. Qual seria a idade real de cada
um?
Na rua, painéis eletrônicos brilhavam suas frases subliminares:
Não beba Cola. O ódio vencerá os fracos. Não ultrapasse
seus domínios. Não saia à noite.
Música indiana invadia os bairros deteriorados. Das calçadas o
vapor quente subia atormentando os que se aventuravam pelas ruas. Chuva ácida
caía em intervalos regulares.
Os hospitais estavam abarrotados. Doutor Nonez, o único médico
do hospital e cientista da Organização, a atendeu prontamente.
- Moira! Que bom vê-la sã e salva.
- Graças aos potinhos de Loira. Estamos procurando, além do Ronaldo,
agora também o Roque.
- Ambos estão aqui. Quase mutilados, mas ficarão bem. A nova programação
para regeneração dos tecidos, especial para os membros da Organização,
ficou pronta. Eles serão os primeiros a usar.
- Quero ver o Roque. Falou Loira, já se dirigindo hospital adentro saltando
sobre as inúmeras macas espalhadas pelo chão. Pela amostra a última
sexta-feira deveria ter sido braba!
- Quanta gente ferida...
- É sempre assim Moira. Toda sexta-feira. Metade é ralé.
Nem vale a pena. Alguns serão clonados. Precisamos de trabalhadores para
limpar os campos calcinados e procurar por água, cada vez mais escassa.
- E a água dos cactus? Não está mais sendo extraída?
- Escassa. Já começamos a reciclar urina coletada nos subterrâneos
onde os párias se escondem.
- Moira, venha cá, gritou Loira acenando de uma das macas.
Ufa! Roque estava horrível! Em carne viva.
- Corra pegar minha maleta de unguentos.
Dr. Nonez não queria acreditar. Aquilo era melhor que o programa de pele
fetal! À medida que o unguento fervia sobre a pele queimada, nova
pele surgia clara e limpa.
- E o Ronaldo?
- Na última maca. Delirando.
- Ronaldo, sou eu, Moira.
- Ah, o sexo sem programação. Que maravilha! Angélica sabe
das coisas. Que pele, ou melhor, que pêlo! Que hálito!
- Precisamos esperar. Ele está em estado de choque. Vou transportá-lo
para que descanse. Apertou o botão de ignição do capacete
de acrílico radioativo sobre sua cabeça e ele desapareceu. Milhões
de focos de luz iluminaram o ambiente.
- Quando retornar estará ótimo e não se lembrará
de nada
- Não há problema, querida. Peça à Organização
para programar um novo companheiro. Ou clonar Ronaldo se você prefere
o seu tipo.
- Não é uma questão de sentimento e sim de adaptação,
Loira. Esta programação foi perfeita. O casal ideal.
- Até para procriar?
- Ora, Loira, caia na nossa realidade. Procriar é palavrão.
Angélica estaria quase feliz se conhecesse sentimento humano. Regozijava-se
com o resultado da noite anterior. Se não fosse a confusão no
metrô teria sido mais uma noite de sexo sem comer literalmente o parceiro.
Com Ronaldo estava dando certo. A próxima sexta-feira será a décima
terceira noite e a profecia será cumprida. Onde estará Ronaldo?
- Como está Ronaldo, doutor?
- Novo em folha, mas mudo, Moira. Deprimido e sem vontade. E não se lembra
de uma vírgula do acontecido. Essa descarga a laser sempre funciona.
- Não falou nada sobre a loba?
- Só repete um nome: Angélica.
- Angélica. Deve ser o nome dela enquanto mulher. Precisamos voltar ao
terminal do metrô na próxima sexta-feira. Roque está inteiro
novamente. O senhor não sabe nada dessa programação sobre
as lobas, sabe doutor?
- Esse fato foge ao nosso controle. O número delas aumenta em progressão
geométrica. É um enigma! Não entendemos que tipo de embrião
elas se implantam.
- Não poderia ser dos engenheiros? Talvez eles cedam sua cota.
- Mas por que meio? São espécies diferentes.
- Uma relação normal?
- Impossível. Sem programação?
Ronaldo continuava macambúzio em seu cubículo refrigerado.
- Ronaldo, você está bem?
- Angélica?
- Não, sou eu Moira.
- Moira.
E emudeceu novamente.
Nada havia a ser feito. Somente esperar.
Moira foi para casa, amarrou-se nas correntes pendentes do teto para não
se ferir durante as costumeiras convulsões noturnas e ligou o aparelho
de notícias.
O ataque foi de madrugada. Mulheres em casacos de pele e botas de cano alto,
uivando alucinadamente, atacaram o hospital levando o engenheiro Ronaldo e despedaçando
vários enfermeiros. Doutor Nonez nos deu a entrevista hoje de manhã:
- Que mulheres são essas, doutor? A Organização está
escondendo algum novo perigo?
- Bem, agora não é mais mistério. São mulheres mutantes
que se transformam em lobas todas as sextas-feiras às seis da tarde em
ponto.
- Mutantes? E como se pode reconhecê-las?
- São todas iguais enquanto mulher. Angelicais. Cabelo sedoso, olhos
claros. Unhas quadradas e limpas.
- Quer dizer, umas gatas...
- Cuidado, elas não fazem miau. Estraçalham suas vítimas.
Algumas delas ficam desaparecidas por treze sextas-feiras. Quando são
encontradas, nenhum programa as salva. São muito raros os casos de recuperação.
Instantaneamente Moira entrou em convulsão. Desmaiou pendendo-se pelas
correntes.
Angélica preparou a bebida de ervas para Ronaldo. Afinal precisavam comemorar.
Era a décima terceira sexta-feira e quem sabe não seria a última?
O quarto refrigerado os esperava na imundície do lugar. Ratazanas enormes
fuçavam o lixo da região, e lobas uivavam freneticamente tentando
fazer amor com os engenheiros sequestrados. Um barulho infernal.
- Angélica!!
- Pensei que não fosse acordar mais, queridinho.
- Angélica, outra vez com esse casaco de peles nojento?
De repente ele percebeu. As unhas quadradinhas transformavam-se em garras. Os
olhos redondos estavam cada vez mais oblíquos. A pele escurecia debaixo
de tantos pelos. A fera debaixo da bela! Como ele não percebera antes?
Angélica-loba aproximou-se. O bafo quente asfixiou Ronaldo.
- Ronaldo, venha, me faça mulher, murmurou entre grunhidos e uivos. Sou
a sua Angélica. Livre-me da profecia.
- O que é isso, Angélica, onde está você?
Não houve tempo para respostas. O abraço apertado quebrou as costelas
de Ronaldo. A saliva quente afogou-o e ele se viu preso debaixo daquele corpo
forte. Sem saída. Sentiu o sangue quente empapando suas roupas. E desfaleceu
com o nome de Angélica em seus lábios e a figura angelical de
mulher em sua mente!
As sirenes enchiam a noite perigosa. Os estupradores gritavam na noite rondando
suas vítimas. Os hospitais lotavam-se de feridos.
A música indiana sobrepunha-se ao barulho. Painéis eletrônicos
brilhavam feericamente.
Findava-se mais uma sexta feira na cidade mais que desvairada.