Seu nome era Severino.
Poderia ser Macabeu, Filisteu, Jovelino, Ivanovitch, Polanski. Mas era Severino.
Nômade, errante, sem pátria e sem rumo, Severino vivia de déu-em-déu,
jogado aqui e ali, entre outros nômades suicidas, que como ele, saíram
um dia em busca de sonhos.Catava papel, latas de cerveja e refrigerantes, papelão.
Aproveitava a chuva, e na falta desta procurava a água do esgoto que
corria a céu aberto, para encharcar os papelões e conseguir um
dinheiro a mais no peso. Descendentes dos conquistadores da terra, Severino
buscava parentes desaparecidos. Adormecia chamando pela mãe. O álcool
fazia o resto. Colocava-lhe armadura de cavalheiro, lanças quixotescas
nas algibeiras e escudos amarrados nos pulsos. Lutava contra os fantasmas de
seus delírios. De onde ele era?
Se perguntassem, ele diria que não se lembrava mais, que não era
de lugar nenhum. A terra que ele amara um dia desaparecera sob espirais de poeira
e traição de Judas.Por isso mudara de nome.Fora francês,
mas acreditava no Alcorão e rezava beijando o chão todos os dias
às seis horas da tarde, pedindo a Alá que o ajudasse na busca
dos parentes. De umbanda e candomblé não tinha conhecimento.
Havia horas de lucidez. Então chorava muito e clamava pelo perdão
dos deuses do chão.O pronto socorro aliviava as suas aflições
com uma dose de morfina e o jogava na estrada dos alucinados. Nessas horas se
autoidentificava como um morfinômano. Durava há muito tempo. Os
deuses não levam os que sofrem. Portanto ele ia restando.Viadutos apareciam
sobre sua cabeça, avenidas ante seus olhos, florestas e bosques eram
devastados, rios secavam.Tudo mudava, mas ele permanecia. Á espera. Unhas
longas, cabelos rastafalia, piolhos.Eram seu carma.
O catre duro, de madeira ressecada, coberta por colchão esfarrapado,
lar ambulante sob um dos viadutos, dava-lhe algum conforto, uma vez que sobre
esse equipamento de faquir, tendo como alento o trânsito enlouquecido
sob a sua cabeça, ele conseguia sonhar. Se algum psiquiatra se aventurasse
a interpretar o significado dos momentos oníricos, diria que ele procurava
por sua mãe. Mas eu sei que ele buscava sua origem, desesperado nessa
caça infrutífera. Eu sei porque sou um deles. Um dos alucinados
em busca do nada. Menos sensível, pois não sei cantar seu canto,
nem sei desatar o nó de seu sofrimento. Somos companheiros de albergue
e de alucinações. Apenas eu o identifico, apenas eu o sigo. Sei
que nas vezes em que ele desaparece procurando o horizonte infinito onde se
encontra a sua terra e os seus parentes, está feliz. Então reconhece
mágicos contornos, reflete-se em espelhos imaginários descobre-se
cavalheiro de bem.Senta-se à mesa farta, usa talheres de prata, é
gente novamente.
Volta esfarrapado, cobertos de trapos, deixa pistas pelos caminhos do nada.
Eu sei, pois eu o aceito. Ele retorna do paraíso para o inferno onde
os milhões de demônios não abandonam os fracos. Reforçam
a existência dolorida e os atiram às chamas do sofrimento.
Quem passa sobre os viadutos em carros de luxo, ou segue pelas alamedas dos
condomínios do fausto, não imagina que o mundo subterrâneo
logo dominará a orbe. O olhar de indiferença en passant
faz parte, nos estimula a ficar e a degradar.
Hoje seu olhar está ausente, pois só eu o conheço. Então
já não está mais em si. Se partir, apenas eu saberei que
ele existiu. Eu e os diabos dos infernos. Mas os diabos não dominam a
linha do horizonte infinito. Eu domino.