A Garganta da Serpente
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En passant

(Nilza Amaral)

Seu nome era Severino.

Poderia ser Macabeu, Filisteu, Jovelino, Ivanovitch, Polanski. Mas era Severino.

Nômade, errante, sem pátria e sem rumo, Severino vivia de déu-em-déu, jogado aqui e ali, entre outros nômades suicidas, que como ele, saíram um dia em busca de sonhos.Catava papel, latas de cerveja e refrigerantes, papelão. Aproveitava a chuva, e na falta desta procurava a água do esgoto que corria a céu aberto, para encharcar os papelões e conseguir um dinheiro a mais no peso. Descendentes dos conquistadores da terra, Severino buscava parentes desaparecidos. Adormecia chamando pela mãe. O álcool fazia o resto. Colocava-lhe armadura de cavalheiro, lanças quixotescas nas algibeiras e escudos amarrados nos pulsos. Lutava contra os fantasmas de seus delírios. De onde ele era?

Se perguntassem, ele diria que não se lembrava mais, que não era de lugar nenhum. A terra que ele amara um dia desaparecera sob espirais de poeira e traição de Judas.Por isso mudara de nome.Fora francês, mas acreditava no Alcorão e rezava beijando o chão todos os dias às seis horas da tarde, pedindo a Alá que o ajudasse na busca dos parentes. De umbanda e candomblé não tinha conhecimento.

Havia horas de lucidez. Então chorava muito e clamava pelo perdão dos deuses do chão.O pronto socorro aliviava as suas aflições com uma dose de morfina e o jogava na estrada dos alucinados. Nessas horas se autoidentificava como um morfinômano. Durava há muito tempo. Os deuses não levam os que sofrem. Portanto ele ia restando.Viadutos apareciam sobre sua cabeça, avenidas ante seus olhos, florestas e bosques eram devastados, rios secavam.Tudo mudava, mas ele permanecia. Á espera. Unhas longas, cabelos rastafalia, piolhos.Eram seu carma.

O catre duro, de madeira ressecada, coberta por colchão esfarrapado, lar ambulante sob um dos viadutos, dava-lhe algum conforto, uma vez que sobre esse equipamento de faquir, tendo como alento o trânsito enlouquecido sob a sua cabeça, ele conseguia sonhar. Se algum psiquiatra se aventurasse a interpretar o significado dos momentos oníricos, diria que ele procurava por sua mãe. Mas eu sei que ele buscava sua origem, desesperado nessa caça infrutífera. Eu sei porque sou um deles. Um dos alucinados em busca do nada. Menos sensível, pois não sei cantar seu canto, nem sei desatar o nó de seu sofrimento. Somos companheiros de albergue e de alucinações. Apenas eu o identifico, apenas eu o sigo. Sei que nas vezes em que ele desaparece procurando o horizonte infinito onde se encontra a sua terra e os seus parentes, está feliz. Então reconhece mágicos contornos, reflete-se em espelhos imaginários descobre-se cavalheiro de bem.Senta-se à mesa farta, usa talheres de prata, é gente novamente.

Volta esfarrapado, cobertos de trapos, deixa pistas pelos caminhos do nada. Eu sei, pois eu o aceito. Ele retorna do paraíso para o inferno onde os milhões de demônios não abandonam os fracos. Reforçam a existência dolorida e os atiram às chamas do sofrimento.

Quem passa sobre os viadutos em carros de luxo, ou segue pelas alamedas dos condomínios do fausto, não imagina que o mundo subterrâneo logo dominará a orbe. O olhar de indiferença en passant faz parte, nos estimula a ficar e a degradar.

Hoje seu olhar está ausente, pois só eu o conheço. Então já não está mais em si. Se partir, apenas eu saberei que ele existiu. Eu e os diabos dos infernos. Mas os diabos não dominam a linha do horizonte infinito. Eu domino.

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