A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Lobisomem!

(Nilza Amaral)

Que era lobisomem descobri por acaso. Não que isso me incomodasse ou a alguém nesse século vinte e um pleno de aberrações humanóides. Mas foi naquela sexta feira sangrenta que o cheiro de carne humana despertou meu apetite.Afinal o cardápio estava alucinante.Corpos de todas as idades, alguns ainda conservando os adornos da juventude há pouco perdida, outros imbuídos das características da morte, formas variadas para agradar ao gosto do gourmet mais exigente. Jovens donzelas de carne fresca, apetitosos garotos ainda impúberes, velhos gastos com ossos à mostra, enfim uma seleção atraente para gourmet algum reclamar, exibiam-se na bandeja de asfalto. Naquela noite de carnificina, o desejo inexplicável daquelas carnes sangrentas, desencadeou o primeiro surto do que seria não a minha maldição mas a iniciação de um prazer incontido. Descobri que não precisaria ser necessariamente um assassino. Não haveria o desconforto de matar a vítima escolhida.A polícia local providenciaria o farnel a serviço da lei, e às sextas feiras durante o passeio noturno pelo centro da cidade, o banquete estaria pronto. Percebi, no entanto, que haveria uma exigência dos meus sentidos. O sangue deveria estar fresco e quente. E então todas as sextas, à meia noite, hora dos mistérios e da lua maior, e da incógnita o uivo aparecia. Vigoroso, exigente. Sentia que meus pelos se eriçavam ao desejo, e o meu corpo franzino se avolumava.Meus braços cresciam e meus caninos se alongavam.Um mistério fascinante da natureza. E eu, que há bem pouco tempo, aceitava qualquer convite para deixar a cidade desvairada no fim de semana, agora ansiava pela sexta feira, pela noite, pelos tiros de metralhadora, ribombar extasiante que prenunciava delírios noturnos. O que há com você, diziam as namoradas ocasionais, resolveu se esconder no apartamento?

Lógico, argumentava, tentando ser convincente, quem ser atingido pelas balas perdidas? Mais um motivo para fugirmos daqui, pegar uma bela praia, um bom motel. Criaturas ingênuas não suspeitavam de que suas vidas corriam perigo em minha companhia às sextas à noite.A ansiedade era tanta que esses diálogos impertinentes aqueciam o meu interior, os pelos se eriçavam, e a transformação se anunciava precoce. Depois eu ligo se mudar de ideia, respondia apressado, ansioso pelo prazer que só a solidão me proporcionava. Beatriz, a mais exigente. Exigia a minha presença, compromissos, não era mulher de ficar. Diante dela o medo aparecia. O temor de atacá-la, de devorá-la aos poucos, de saborear a carne apetitosa e perfumada. Beatriz, segunda conversamos, tenho trabalho extra me esperando. Fim de semana? Prometo que será o último. Promessa repentina, gotas de suor aflorando, sexo exigindo, não a consumação do ato carnal, mas a consumação da fome voraz que me transportava à dimensão do orgasmo jamais experimentado por um ser humano. Ah, Beatriz, se o desejo de amor me impele ao seu encontro o apetite voraz me faz recuar. Ora, que sentimento louco é esse nada peculiar a um mutante filho da lua? Aos poucos a sanidade e a memória se diluem. E a fuga para o nada se inicia.. Misturo-me aos mendigos de rua, era fácil, afinal um mutante das sextas que se cobre de pelos surgidos do nada e mostra caninos alongados não é surpresa nesse mundo de aberrações. As abandonadas da sorte, adolescentes assexuadas aproximam-se curiosas, que dentes grandes para o que servem? Ah, o cheiro daquele sangue quente e novo, afinal elas pedem, querem conhecer o lado do sexo abnormal e inconsequente, nada tinham a perder e eu, tudo a ganhar. Para te comer minha chapeuzinho, e entre suas risadas, o roçar dos dentes em sua pele fina, a vibração de seu corpos novos, o acarinhamento de meus pelos longos, de unha compridas rasgando a carne, se não as levam ao delírio, levam-me à mais completa satisfação orgástica já provocada por um adulto mutante.Que venham as sextas feiras, esse dia glorioso em que até a lua se transmuta para encantar com seus raios prateados os escolhidos da sorte.

Acordar na minha cama de lençóis de cetim prateado, limpo e lavado do ritual da noite anterior excita a minha imaginação a ponto de querer declarar ao mundo a minha felicidade. Mas como felicidade só cabe aos pobres de espíritos, decido que conservar, sem elucidar o mistério, transformará minha pacata vida de executivo na mais alucinante aventura. Jamais, entretanto, poderei prescindir de Beatriz, do seu cheiro de mulher, das suas formas roliças, o fator desencadeante da minha transformação. Ah, hoje é sábado. Meus caninos descansarão, meus pelos se acalmarão e eu serei por mais uma semana o cavalheiro esperado. Mas as sextas continuarão no calendário. E a lua no céu, brilhará mais nessa noite de evocação, de chamamento.

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br