A Garganta da Serpente
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Medo!

(Nilza Amaral)

Com trinta e oito anos todos lhe diziam que era a melhor idade. Porém, nada estava dando certo. Os amores findaram, os ódios permaneceram, os medos principiaram. Serpentes traiçoeiras invadiam sua cabeça. Consultava tiradeiras de sorte, jogadoras de búzios: é inveja, você causa inveja nas pessoas, precisamos limpar seu corpo e mente.

Meu corpo, meu templo, minha cabeça minha sorte.

Fobias contemporâneas: medo de elevador, claustrofobia, medo do trânsito, dos transeuntes, das mulheres. Travas especiais nas portas do carro, vidros à prova de balas, as de açúcar e as de aço. Temor de assaltos com portas abertas. O terror encorpava-se. Deixara de dirigir.

No último assalto o motorista o deixara nu. Nu sentiu-se renascido. Mudaria para o campo, sem poluição, sem bandidos, sem nada.

Instalou-se no chalé rústico. Eliminou os vestígios do último morador.

Manhãs de sol, água de cachoeira, mata virgem, como ele na nova vida. A solidão recompensada, nova chance de chegar à velhice. As fobias desapareceram, com o cheiro de comida caseira vindo do fogão a lenha, preparada pela mulher de lenço na cabeça. Aromas perturbadores.

O sexo o incomodava. A mulher também. Agricultores usavam as cabrinhas. Serviam para todos os apetites. Integração com a natureza. Precisava de mais tempo. Depois, quem sabe?

A mulher continuava vindo todas as manhãs. Seu pescoço era cilíndrico, suas pernas, roliças. O restante escondia-se sob os panos. Então foi picado na virilha quando dormia sob árvores repolhudas: à mostra dois pequenos furos. A partir daí, olhos vermelhos e virilha inchada, o medo voltou imperativo. Alucinações.

Sorrateira, a mulher de lenço na cabeça o analisava. A floresta aniquilava os últimos sinais de urbanidade dentro dele. Feridas instalavam-se. O sol queimava. O vento fustigava. Um dia viu a mulher sem lenço, sem nada, seu corpo viscoso e branco vestido com o véu de água da corredeira. A virilha cada vez mais dilatada impeliu-o ao ataque do desejo. Lançou-se sobre a mulher arredondada e a felicidade instalou-se. Acordou nu envolvido pela sertaneja sensual. Ao lado o banquete cheiroso. Fatias gordas de peculiar salame branco, salpicadas do verde da floresta. Perfume de carne inundando o bosque encantado. O alimento acalmou o pavor. Então percebeu a virilha desinflada. E horrorizado descobriu que se já não era mais urbano nem um selvagem poderia ser. A mulher de pescoço cilíndrico despojara-o de sua identidade. Não tivera forças para defender-se ao ser arrastado para a caverna sob a cascata. O clec da porta da jaula misturou-se ao burburinho das águas. Ela despediu-se com um agora teremos alimento. E o deixou ali à mercê da natureza.

Num dia lindo de céu azul, de espetacular brilho nas plantas, fracamente divisado do fundo da jaula pelo seu olhar já opaco, ela aproximou-se ondulante e traiçoeira. A última coisa que sentiu foi a forte picada na axila esquerda. Mas ainda pode distinguir com os olhos embaçados a grande serpente branca transmutando-se na mulher de pescoço cilíndrico e pernas redondas. No ar o doce aroma de carne.

(Conto publicado na coletânea Sabores Macabros; edit. e:Veredas)

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