A Garganta da Serpente
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Como um tropel de cavalos

(Nilze Costa e Silva)

Para Renato Russo (in memorian)

Passo a mão no rosto, na semiescuridão. Aliso a testa, estico a pele da cara procurando retardar uma velhice imaginária que se aproxima com o fim. Deito-me na cama e me cubro com o lençol . Enrolo-me todo como se numa concha. Cerro os olhos o máximo que posso, para que a escuridão caia com mais impacto sobre mim. Ah se eu acabasse agora, rápido, antes que chegasse alguém, hoje que o silêncio está dentro de mim e me circunda todo. Ah se o morrer do meu corpo fosse o deitar nesta cama, o repouso do pensamento na obscuridão, o deixar-se quieto esperando a batida final...

Mas não. Ela já é muito antiga aqui perto de mim. Há tempos que ronda meu quarto, passeia pelos corredores, espreita-me pelo buraco da fechadura, espraia-se por toda a casa como uma música que compus e que não me sai da cabeça.

Lágrimas inundam meu corpo todo, sinto que hoje ela virá, destruindo o tempo em minha vida, não me deixando nada para lembrar, para chorar, para dizer aos amigos.

Espremer o tempo como um limão até retirar dele todo o sumo do passado e recolher ainda o do futuro... Ah, tempo, não fuja, que eu te espero há tanto tempo! Minha música e meu lamento espalhou-se mundo afora. Tão impiedoso que és! Por que não ficas, só mais um pouco, para que eu possa te olhar mais de perto, mergulhar dentro de ti, sorver o teu ar, sentir o teu hálito inebriante de vida, embalar-me ao som da tua música do existir... Que pressa é essa, entra! Eu te acolherei em meus braços e deixarei que descanses, longe do sopro da morte. Façamos amor escandalosamente, na cama, na rede, no tapete...

"Até o tapete sem você voou..."

Ronald, como eu te amava e hoje nem sabes de mim. Ouvíamos o Bob Dylan, o disco rodava, rodava, igual como nós, depois que regressávamos da noite e amávamos como se aqueles fossem os últimos momentos de nossas vidas... Depois anos tantos se passaram... E se não for hoje? Quanto tempo ainda haverá, até que a terra me envolva e me sufoque e me anule a existência?

Quieto! Alguma coisa bate na janela. Será ela? Mas por que se anuncia, por que não vem de uma vez? Levanto e abro a janela, disposto a enfrentá-la.

Era apenas o vento...

Ah, vento, passas tão ligeiro... passas como o tempo. Espera-me um pouco também. A noite está tão escura. Vida de merda por que te vais assim se te gosto tanto? Existir da minha vida, eu tenho bebido todos os dias para esquecer que te vais, depois que me deformaste o corpo e desandaste meu rosto de menino.

Mãe, quando eu parti você chorou. Adivinhou o quê? A gente cresce, se vai, os olhos nublam-se de lágrimas, os amigos passam e passa também a felicidade, trôpega, indiferente a tudo. Para falar a verdade, mãe, a vida não tem disso, dessas coisas que você imaginou para mim. Sabias que eu ria embora um dia, teria que ir. Dissiparia tudo, a névoa atrás de mim, cortando o vento com minhas asas rotas de passado.

Amei muitos homens e fui amado com a mesma intensidade. Muito dancei, ri, chorei de amor, alegria e tristeza. Mas foi tão pouco... Agora a vida se me esvai, despudoradamente. Ouço o barulho da morte aproximando-se, acelerando-se, como um tropel de cavalos. Um barulho que me dói no ouvido, capaz de me explodir os tímpanos. Enrolo-me no próprio corpo e espero a batida na porta, primeiro de leve, cadenciado, pulsando igual ao meu coração: toc, toc, t-o-c, t-o-c, fim...

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