A Garganta da Serpente
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Amor de gato

(Nádia Dias)

A mulher levantou a vista para o sol forte, onze da manhã, o calor não ajudava a pensar.

- Também! Quem pode pensar as onze da manhã? - disse ela em voz alta para o cachorro, que latia e pulava aos seus pés - É impossível, Totó!

O cachorro a olhou com seus olhos castanhos e expressivos concordando, por que sempre concordava com sua dona, em tudo.

O gato a olhou de passagem com seus olhos oblíquos e misteriosos, como se definitivamente seus dramas não o interessassem. Quem teria olhos assim? Pensou a mulher observando o bicho que se estendia na poltrona favorita, batida de sol àquela hora.

Gostava do cachorro, pensou, mas ele lhe dava uma certa agonia. Exigia atenção demais. Diferente do gato que, majestoso, passeava pela casa, ignorando-o, e ignorando a dona também, cheio da dignidade indiferente dos gatos.

A mulher entrou no correio com o cachorro - seu companheiro de caminhadas - era proibido, mas como sempre tinha um grande volume de correspondência e a agência do bairro era pequena, o gerente permitia.

Nas mãos da mulher um pequeno volume tremia, com o tremor de suas mãos pequenas e bonitas. O livro ainda cheirava a prelo, apesar do pacote muito bem feito, e da embalagem de papelão. Recordou a capa - um grande gato amarelo, dormitando, sobre um fundo azul.

- Bom dia! - saudou o gerente entusiasmado - é o livro novo?

- Sim - disse ela sorrindo seu sorriso bonito - vou envia-lo a um amigo, antes do lançamento.

- Deve ser então um amigo especial! - disse o homenzinho rindo maliciosamente - um privilegiado!

Ela apenas sorriu de volta concordando. Sim, um amigo muito especial!

Um amigo com quem partilhara a cama por algum tempo. Um amigo a quem quase chegara a amar. Um amigo, a quem entregou boa parte de seu carinho, com quem riu e teve prazer. Um amigo por que não dera conta de ser um amor, um amigo a quem ela fizera medo como mulher. Um amigo por quem arriscara tudo, apostara alto e a quem havia perdido. Apenas um amigo que, como um gato, estava na sua vida de passagem, deixando marcas de unhas em seu orgulho, agora arranhado.

Por isso agora mandava o livro e não o entregara pessoalmente, na noite de autógrafos a qual, certamente, ele não compareceria, por que teria medo de se comprometer. Por que o marido dela estaria lá. Ou por que sabia que o livro havia sido escrito no auge da dor e do desespero da separação?

- Bem, as lembranças são inevitáveis - pensou alto - mesmo depois de tanto tempo.

- O que disse? - perguntou o gerente.

- Nada, estava pensando alto - respondeu ela de volta, já saindo.

Em casa, a mulher tomou suas providencias para àquela hora da manhã.

Entrou em contato com as pessoas que tinha que contatar, fechou as reuniões dos grupos que tinha de fechar, ligou para a amiga que convidara para almoçar. Depois foi tomar um banho, sempre seguida pelo cachorro, que a seguia por toda à parte, numa adoração muda e irritante.

A imagem do amigo não lhe saia da cabeça e nem a carta que enviava, numa folha a parte e que colocara dentro do livro.

Meu bem,
Esse livro fala um pouco de mim, um pouco de nós, um pouco da vida que eu levei, um pouco da vida que vi e ouvi passar.
Não sei se vai agradar alguém. Não sei se ele quer dizer alguma coisa ou se traz, em si, lições aproveitáveis de existência.
Alguns trechos são escritos no sabor da vontade, da raiva ou do desejo, alguns escritos para atingir alguém, alguns para salvar meu coração da dor.
Ai, meu bem, e quanta dor eu senti, e quantas lágrimas chorei sem ninguém ver ou se dar conta, quantas vezes eu tive que engolir o choro por que ninguém permitiu que eu chorasse ou me deu um ombro amigo, cheio de calor humano e compreensão!
Você é uma pessoa rara, meu bem, me deu esse ombro sem perceber, me deu essa compreensão sem sentir e um alento que nunca mais havia sentido. Ainda que por tão pouco tempo!
Te dar esse livro assim é a única forma que tenho de dizer o quanto você é especial para mim e uma maneira de ficar contigo, para sempre, mesmo depois desse "cio" que nos atingiu passou e entre nós só restou uma vaga saudade de alguém, na tua memória, na minha memória.
Mil beijos, meu bem, destes teus, que beijam e desbeijam tão gostoso, que me levaram ao delírio e me levaram à saudade.
Com todo carinho da tua,
Linda


O que será que ele faria quando lesse? Certamente teria medo de suas palavras.

Era uma criatura que tinha medo de sentir qualquer coisa que não fosse segura e simples, não dava conta de desenvolver os sentimentos mais fortes. Gostava da sua vida como estava, exatamente como um gato a quem uma cadeira confortável ao sol, um pires de leite e uma tigela de ração garantiam a felicidade.

No fundo, ela sabia, ele apenas era um egoísta bem intencionado, de um egoísmo felino, que fazia com que rejeitasse carinhos mais fortes, por pura agonia, por puro desejo de ser dono de si mesmo. Mais uma vez a mulher pensou nos gatos, observando o seu que dormia um sono pesado num recesso sombrio do sofá.

- Este sem vergonha dosa até a quantidade de sol que deseja tomar a cada manhã! - riu-se ela tristemente, acarinhado a orelha do bichano, que espreguiçou-se contente.

O cachorro pulava atrás dela, em busca de atenção.

Foi para a sala ler um pouco e esperar a amiga, que não a entendia bem, mas devotava-lhe grande amizade. O gato estava no sofá e o cachorro a seus pés, como sempre.

Ao sentar-se, o gato a olhou de modo azul, e encaminhou-se para sua direção. Subiu no seu colo e ronronou baixinho, num carinho raro e inaudito. Numa inconfundível demonstração de amor. Como se uma flecha houvesse atravessado o coração dela, a mulher começou a chorar, de súbita compreensão.

Viu que o amor que havia tido era um amor de gato - raro, mas cheio de surpresas e sensualidade - e que o marido lhe devotava um amor canino, constante, porém igual, cheio de festinhas e agrados não solicitados.

Chorava por seu amor de gato, tão exclusivista, tão egoísta! Entretanto tão raro e perfeito - o gato ronronou com suavidade e enquanto dava cabeçadas felinas em sua barriga - tão lindamente egocêntrico! A seus pés o cachorro a olhava, enciumado, latindo e pulando na sua constante busca de atenção.

Friamente compreendeu que toda aquela atenção canina, não era fruto de amor ou devotamento e sim medo de ficar só, que aquelas festas todas eram uma bajulação e que aquela fidelidade era um suborno.

Um raio de sol atravessou a sala. Rezou para que o marido ficasse preso em compromissos e só chegasse à noite, por que não suportaria, hoje, o suborno do seu carinho.

(2000)

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