"Um belo dia, hoje será o passado,
e falarão numa grande época e nos heróis anônimos
que criaram a História.
Gostaria que todo mundo soubesse que não há heróis anônimos.
Eles eram pessoas, e tinham nomes, tinham rostos, desejos e esperanças,
e a dor do último de entre os últimos não era menor do
que a dor do primeiro, cujo nome há de ficar. Queria que todos esses
vos fossem tão próximos como pessoas que tivésseis conhecido,
como membros de vossa família, como vós mesmos."
(Júlio FUCHIK. Testamento sob a Forca, 1980.)
1967. Tempos bicudos que já duram três anos. É proibido
pensar. Como viver sem pensar? Toda liberdade é tirada das pessoas certas.
Todo poder é dado às pessoas erradas. Muito, muito difícil
a luta para pensar e não ser pego pensando. Mais difícil - e cruel
- agir e não morrer. A ordem é matar, não sem antes tentar
arrancar tudo de quem ousa ser livre. A tortura se transforma num esporte divertido.
Luta entre o medo de ser e o medo de deixar de ser. Para ser, é preciso
coragem, muita.
João opta por ser. Foram anos de estudos, leituras apaixonantes, reflexões
profundas. O processo de gentificação não tem volta. O
amor cultivado não deixa espaço para a covardia. Temer, sim, fugir
nunca. Ir até o fim é a mais consciente das decisões. É
preciso deixar as quatro paredes protetoras, o quase aconchego dos esconderijos
e a intimidade do grupo para ir às ruas, levar luz e calor para gente
carente de saber, gente angustiada diante de fatos ainda não entendidos
ou mal digeridos.
1968. Na praça onde o grupo se encontra, João se exalta, sobe
numa mureta e vomita dor, revolta, consciência. Vai juntando gente, gente
nova e pouca, mas interessada. Imprudência? É preciso se expor.
Fala, gesticula, incita. Olha cada um nos olhos. Sente que convence a maioria.
Cumpre seu papel.
A coragem de ser.
Por puro acaso Maria passa ali. Pára para ver. Maria jovem, bonita,
alegre. Espanta-se com o que ouve. Seu mundo é pequenino: uma família
classe média - mais baixa que alta... -, tranquila, estável;
um pai severo mas compreensivo; uma mãe muito amiga, muito doce, que
a ama gostoso, não escondendo a alegria que ela trouxe ao nascer depois
de três meninos igualmente amados. Mundo pequeno e equilibrado, sem sobressaltos,
sem grandes conflitos. Ouve aquilo tudo e pensa que não vale a pena se
envolver, perder sua paz acomodada. Política... não é o
que quer. Mas quer ouvir. A palavra de João a confunde, seu olhar penetra
fundo, mais fundo do que ela deseja. Tudo muito complicado: renúncia
de Jânio Quadros, deposição de João Goulart, revolução,
Atos Institucionais, AI-5, repressão, linha dura militar, conflitos no
Mackenzie, verdadeira guerra na Rua Maria Antônia, UNE, os estudantes
em ebulição no mundo todo, França, China, EUA, Luther King,
Robert Kennedy, gente morta, gente presa, gente desaparecida, gente torturada,
Doi-Codi, porões do Doi-Codi. No meio desse embaralhado de informações,
a mais impressionante: a morte violenta de Edson Luís Lima Souto, 17
anos, estudante de medicina, o primeiro a tombar. Mesmo assim, irreal: não
estamos em guerra. Tudo muito complicado. Não mesmo, política
não serve para nada, só perturba.
Ao terminar sua mensagem, João passa, apressado, por Maria. Pára,
volta, olha-a mais fundo ainda, pergunta seu nome. Conversam.
Em casa, Rosa, a mãe sempre atenta, percebe Maria confusa. Diferente.
Parece alegre. Parece angustiada. Uma conversa quase acaba em discussão.
Sim, é certo que Maria encontrou o amor. Sensação angustiante
- não sabe por que - de que esse amor não tem volta. Maria foge
de seu colo, não engatinha mais; passos firmes, segue em busca da vida,
constrói a sua história. Política não é para
ela. João é para ela.
João sabe, mas confia, ama e se entrega. Maria é inteligente,
compreensiva, meiga e sonhadora. Tem um sonho que é maior: ter um jogo
de quarto. Não uma mobília qualquer: um grande guarda-roupas,
com maleiro, calceiro, gavetas para as roupas íntimas, repartições
para roupa de cama e banho; uma cômoda grande com sapateira conjugada;
uma penteadeira com gavetas para maquiagem, com um grande espelho redondo e
uma banqueta estofada em veludo; uma cama enorme como as de cinema. Não
precisa mais nada, a realização do grande sonho basta. Maria simples,
ingênua, encantadora.
João cultiva o amor em meio à correria do seu dia a dia. Reuniões
e reuniões, horas e horas de estudo e reflexão, discussões
repetidas com o grupo, sempre sob o comando de Carlos Marighella, o sábio
e decidido lutador, o homem rígido, doce e amigo. Admira, quase cultua
Marighella, o grande Marighella.
O país cambaleia. Um fantasma está solto e se chama AI-5, promulgado
a 13 de dezembro de 1968 pelo Presidente Costa e Silva, iniciando o período
mais sombrio da ditadura. O Congresso é fechado por tempo indeterminado,
as garantias constitucionais são suspensas. Os opositores são
calados ou exilados. A participação popular na política
é cada vez mais tolhida. Os ideais democráticos sofrem pesados
golpes. A censura prévia é estabelecida em todos os meios de comunicação,
tendo sido apreendidas diversas edições de jornais. A informação
é pouca, muitas vezes mentirosa ou distorcida. Direitos e mandatos políticos
são cassados. A cultura e a arte são mutiladas através
da proibição ou de cortes em filmes (vários deles queimados
inteiros), em peças teatrais, em letras de música, em programas
de rádio, em livros. A suspensão do habeas corpus agrava a situação
de presos políticos, detidos sem flagrante delito e mantidos em cárcere
de forma arbitrária e desumana. O AI-5, diversamente dos Atos anteriores,
não tem prazo de vigência. A situação é de
risco. A treva se instala.
Mas a luta cresce e não dá tréguas. As decepções,
as perdas de companheiros mortos ou desaparecidos, a dor constante e contundente,
tudo que parece tão negativo é o tônico que incita, aumenta
as forças, anima mais que desanima, alimenta a esperança.
O amor cresce e exige. João e Maria, tão diferentes, tão
unidos, tão sintonizados. O noivado é uma decisão festiva
e cheia de planos. O presente de João: um lindo jogo de quarto.
Um grupo mais ativo se reúne com Marighella. "Vocês estão
muito vulneráveis. É hora de pensar na clandestinidade."
"Acabo de ficar noivo..." "Qual o problema? Leva a noiva..."
- Maria, corro perigo. Tenho que partir para a clandestinidade. Vem comigo.
- Clandestinidade... Não posso ficar sem você. Quero ir, mas tem
uma condição: levar meu jogo de quarto.
João teme. Será que Maria não pensa? A gente vai para a
clandestinidade com pouco mais que a roupa do corpo. A gente não tem
muito rumo. A gente troca de nome, quase perdendo a própria identidade.
Caberia um jogo de quarto na clandestinidade?
- Falei com Maria, ela topa ir. Mas impõe a condição de
levar nosso jogo de quarto, um velho sonho que só agora se realizou.
- Pois leva o jogo de quarto. - Marighella, o político-poeta, o lutador
sábio e sensível; experiente, conhece muito bem a importância
de um sonho.
Madrugada de janeiro, 1969. Uma caminhoneta estaciona e nela embarcam João,
Maria e o jogo de quarto. Destino incerto. Rosa teme, mas não chora.
Sabe, em sua sabedoria inata, que Maria encontrou o amor e que esse amor não
tem volta, que João ama Maria e acredita. Não chora. Respeita.
Os caminhos da clandestinidade são tortuosos, imprecisos. Quando se
pensa estar firme num chão, um perigo se anuncia, é preciso mudar
de chão, e mudar outra vez, e outra vez tentar se firmar num chão
novo e inseguro. Os caminhos dos sonhos são mutáveis, vacilantes.
A luta é árdua para João. O amor é dolorido para
Maria. A fé de João é contagiosa. Maria, no convívio
estreito do companheiro, descobre os meandros da política e entende a
exigência da luta. A política já não é tão
supérflua. Maria se apaixona novamente. Lutar é preciso. Vencer
nem importa tanto. Lutar é presente, vencer é futuro. A luta não
se esgota no lutador, prossegue, tem amplo alcance, além do tempo e do
lugar, além da vida.
5 de novembro de 1969. O grupo ouve o noticiário, no pequeno rádio
de pilha. Todos ansiosos por notícias mais detalhadas do jogo da véspera:
Santos e Coríntians no Pacaembu. Uma noite terrível a de ontem,
com notícias desencontradas sobre perigos à vista, não
sobrou tempo para o futebol. De repente, a notícia menos esperada, ou
menos desejada: Carlos Marighella foi morto pela polícia, numa emboscada,
enquanto o povo gritava e torcia no estádio paulista. Assassinado sem
chance de esboçar defesa. Difícil acreditar. João conhecia
muito bem aquele homem forte, corajoso, terno como uma criança. Fora
um grande lutador, um grande brasileiro. Como ele, estivera tantas vezes em
situação clandestina em seu próprio país. Sabia
ser leal: preso em várias ocasiões, torturado cruelmente, nunca
cedeu, nunca entregou um companheiro; sua bravura era admirada até por
seus torturadores. No íntimo de João, muita dor, muita revolta.
"Não está tão fácil amar este país que
tortura seus filhos, exporta suas maiores inteligências, mata tresloucadamente
seus mais cônscios patriotas." Difícil acreditar. Mas é
fácil, e cada vez mais gratificante, amar Maria. Só Maria, sofrendo
tanto nesta hora, é seu lenitivo. Maria-apaixonada, forte, vibrante,
surpreendente. Sonha ainda, mas outros sonhos, sonhos que produzem esperanças
e renovam forças. Maria-sonhadora que foi perdendo cada peça do
seu jogo de quarto pelas esquinas da clandestinidade. Sobrava só a banqueta
da penteadeira... um pedacinho do velho sonho, agora tão pequeno.
A dor da perda de Marighella gera coragem, aumenta em João e Maria a
garra de lutar.
Um aviso, cifrado, mas claro para os interessados: é preciso buscar
outro chão. Era tarde. A mão repressiva os alcança e Maria
é ferida mortalmente. "João, amo você, amo essa vida
que passamos juntos... Você ainda vai vencer, ainda vai sorrir... Prossiga
na nossa luta. Vale a pena amar o Brasil. Porque nós lutamos, porque
nós morremos, muita gente vai ser livre e feliz, e só isso importa.
Nossa luta nos projeta no futuro, quando este tempo for passado e os homens
forem livres porque nós lutamos e morremos. Anonimamente, estamos fazendo
a História, a nossa, a deles, a de nossa Pátria. Não esqueça:
só o amor importa, na vida e na morte."
João vacila, desespera. O que era sonho transformara-se em pesadelo.
Deseja tombar também, num desânimo solitário pior que a
morte. Mas prossegue, de chão em chão, agora João-sem-Maria,
mergulhado em sua dor. A prisão não dói tanto. Sofre a
tortura com valentia, sabendo que poderiam tirar-lhe tudo, até mesmo
a vida, mas ninguém lhe arrancaria a liberdade interior que fora construída
a duras penas, ninguém poderia impedi-lo de amar Maria, tão viva
em seu coração. Chegada a hora do exílio, já nem
se importa. Para espanto de todos, parte levando um pequeno banco de madeira...
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979. Dez anos passados. Ainda o Governo Militar. O Presidente Ernesto Geisel
revoga o AI-5.
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O Presidente João Batista Figueiredo inicia o processo de abertura e,
com isso, o retorno dos direitos políticos no país. É concedida
a anistia que, embora restrita, é o primeiro passo no sentido de devolver
a liberdade aos presos e a Pátria aos exilados. Vão chegando aos
poucos as primeiras turmas dos mais de quarenta mil brasileiros injustamente
expulsos de sua terra. O retorno é glorioso.
João e Rosa se abraçam. Rosa, hoje politizada justamente pelo
terrível engano que foi a ditadura. Chorando e rindo, João e Rosa
se entregam às lembranças, umas alegres, umas dolorosas, entre
estas algumas até divertidas, como fugir na madrugada levando uma mobília
de quarto para lugar nenhum.
"Eu agradeço à vida. Ela me deu muito sofrimento, mas também
me deu Maria e me deu você e me deu o amor e me deu a crença nesse
amor." - Rosa fala, sentada no banquinho da penteadeira...