Estacionou com certa dificuldade. Não que fosse ruim de roda, é
que estava com a atenção dividida entre o volante e o caminhar
de uma pequena notável que surgira do nada. Baixinha, branquinha, pernas
grossas, e o resto de arrepiar defunto no crematório.
Entrou no requintado Centro Comercial Asa Branca, reduto da elite da capital,
seguindo com os olhos aquele monumento juvenil. Perdeu-a de vista, no entanto,
graças ao passinho miúdo do avô e ao mundão de gente
que por ali circulava.
O Asa Branca não era um shopping, mas tinha cara de. Era lugar
de muito luxo e bom gosto, frequentado por gente sofisticada: por seus corredores
desfilavam os saldos bancários mais bem fornidos, com exemplares de grife
mais requintados e que, no caso das mulheres, eram também verdadeiras
joalherias ambulantes. Além, é claro, de ser a maior concentração
de pequenas notáveis por metro quadrado. Como aquela que ele havia perdido
de vista, pouco antes.
Aqueles mesmos corredores abrigavam, todo último domingo de cada mês,
uma Feira de Antiguidades que Said, o avô dos passos miúdos, não
perdia por nada. De tanto ouvir o avô falar nas delícias do Asa
Branca - delícias gastronômicas e outras delícias também
comestíveis - Diego resolveu, naquele domingo, acompanhar o avô.
Existia uma razão especial - na verdade, uma compra especial - que levara
o velho Said a praticamente exigir a companhia do neto. De maneira geral, o
simpático aposentado vinha sozinho e de táxi, com sua inseparável
boina e a disposição de nada comprar. Mas não comprar não
significava não examinar, não indagar, não sonhar com o
bule de Itaipava, ou com o abajur dos anos 50, ou ainda, com o tapete legítimo
(?) da Pérsia, hoje Irã e quase atômico.
Depois do trabalho, o lazer. Depois de todo o trabalho que dava para os vendedores,
sem importunar a carteira no bolso traseiro, Said dava-se ao luxo - uma extravagância
mensal - de brincar de esconde-esconde com a solidão: ocupava sempre
a mesma mesa do mesmo restaurante e pedia um Don Giovanni Merlot, safra 2005,
que passava a ser o seu parceiro na acurada observação de balzaquianas
passantes por ali, dando preferência às de ancas abundantes. Diríamos
que se tratava de uma discreta paquera, sem presente e sem futuro, mais um bálsamo
para a renitente catarata.
Naquele domingo, todavia, o antigo professor estava a poucos passos - percorridos,
é lógico, miudamente - e poucos minutos de realizar um sonho,
uma vontade que surgiu, de forma irrefreável, quando, na feira do mês
anterior, ele viu um objeto que passou a ser, literalmente, objeto de desejo.
Só ele saberia dizer o quanto se arrependeu de não ter comprado
de imediato, e o quanto se angustiou, durante todo aquele mês, imaginando
que a sua aspiração já poderia estar em outras mãos,
ou quem sabe, em outro corpo.
Temeroso de uma formidável decepção, respirou aliviado
quando o viu ali, na mesma posição, no mesmo lugar, marrom como
sempre, garboso e imponente. Mais do que pegar, ele envolveu com a emoção
do reencontro o bem cobiçado. Para surpresa de seu neto, tratava-se de
nada mais, nada menos que um ancestral uniforme militar, de gala, da Guarda
Nacional Republicana de Portugal. Não foi necessário mais do que
um quarto de hora para saírem dali com a valiosa compra acondicionada
em uma caixa de papel crepom, muito distinta, que valorizava ainda mais a valiosa
relíquia. Said já sabia, de especulação anterior,
que o uniforme pertencera ao general José Manoel Feliz, que vivera no
século 19, e que morrera em terras brasileiras, aqui deixando duas únicas
filhas, uma viúva e a outra carola, uma gorda e a outra excessivamente
gorda, ambas com buço e verrugas constrangedoras. Tratava-se de uniforme
completo, com quepe, túnica e calça, e ainda: ombreiras, punho,
gola, insígnias, botões acessórios e distintivo. Uma pechincha
além de tudo, já que custou a ninharia de quatrocentos e cinquenta
reais.
Ao se dirigirem para o restaurante, que a tradição do vinho e
da paquera teria que ser mantida, Said se sentia como que carregando uma estatueta
do Oscar ou a taça campeã da Copa do Mundo. Não permitiu
que o neto transportasse o tesouro, ainda que para fazê-lo pelos elegantes
corredores do Asa Branca tivesse destruído pelo menos duas escovas feitas
por venerandas senhoras naquela mesma tarde. Proibiu, também, que Diego
abrisse a embalagem no restaurante:
- Em casa você vê. Aqui tem o risco de alguém querer levar.
Ou de nos seguir até o carro para roubar.
- Vô, quem, além do senhor, vai querer este uniforme?
- Não seja bobo, menino. Este uniforme te coloca, pra início de
conversa, dentro da embaixada de Portugal.
- Eu acho que ele vai fazer sucesso mesmo é no carnaval.
- Deixa de ser desrespeitoso, Diego. Que carnaval, que nada. Ainda se você
tivesse dito 'sete de setembro'. Porque é bem possível que, diante
dele, um oficial brasileiro te ponha na tribuna de honra para assistir a parada.
- Vem cá, mas o senhor pretende mesmo vesti-lo? Não é só
pra guardar, não? Será que o senhor cabe nele?
- Olha, eu passei quase duas horas enchendo o saco do pobre coitado do vendedor,
na feira passada. E ele me disse que tem um irmão que é alfaiate,
trabalha por conta própria, e qualquer ajuste que tiver que ser feito,
eu posso procurá-lo que ele me leva até o irmão.
- Ah, bom. Mas mesmo assim: o senhor pretende usar esse uniforme aonde?
- Ah, isso eu ainda não sei. Mas não vai faltar oportunidade.
Eu pensei em usá-lo no casamento do seu irmão.
- O quê?! A minha mãe manda internar o senhor no mesmo dia. E o
senhor me avise, hein, que é para eu não ir. Já pensou
o mico?
- Que mico! Você não sabe que eu tenho alma de militar?
- Militar português?
- Não, militar.
E era verdade. Said, desde menino, era encantado com uniformes e desfiles militares,
carros de combate, hinos militares, quartéis e filmes de guerra. Quando
passou para o Colégio Militar, sentiu, ao transpor os seus portões,
que se encaminhava para algo que transcendia uma simples profissão. Era
muito mais do que isso, era uma missão, para a qual acreditava possuir
vocação. Como um sacerdote. Era isso! A carreira militar, para
ele, equivalia a um sacerdócio. Por isso, chorou como um joão
de barro traído quando recebeu o veredicto do departamento médico:
"inapto para atividades militares", ou coisa semelhante. O problema
é que exames de rotina detectaram um sopro no coração.
A mãe entrou em pânico. O pai, ignorante, levou-o a um urologista.
Feita a correção, a palavra final do cardiologista: o sopro tende
a desaparecer, mediante medicamentação, na fase adulta. Mas o
Colégio Militar não viu por que correr riscos. E assim, sequer
serviu o Exército.
Rejeitado pelas Forças Armadas, nem por isso Said deixou de amar a corporação.
Tornou-se professor, pai e cidadão de hábitos castrenses. Emocionava-se
a cada parada que assistia. Sempre ao vivo. Cantarolava e assobiava hinos militares,
frequentava a Igreja de Santa Cruz dos Militares, casou-se na capela do Colégio
Militar, o mesmo que o havia excluído. O filho chamou de Osório.
A filha, de Gal, abreviatura de general. Fez questão que a festa de quinze
anos da filha fosse no Clube dos Sargentos e Sub-tenentes do Exército.
Influenciou o filho para a carreira militar, como resgate de sua frustração,
mas este preferiu o empreendedorismo: abriu um sex-shop.
Bebeu mais do que o de costume e nem viu passar as ancas avantajadas. Foi com
o neto numa felicidade só para casa, agarrado ao pacote dos sonhos. Satisfez
a curiosidade do porteiro: "É o vestido de noiva da minha santa
mãezinha".
Se assim pensou, assim fez. Só faltava o bigode espesso para encarnar
o General José Manoel, de sobrenome Feliz. Julgava que este tivesse bigode
preto, espesso e retorcido. No mais, uniforme devidamente ajustado, comparecia
de gala ao casamento do neto. Para espanto de todos e desespero de Diego. A
filha Gal foi taxativa: "Pai, desta vez você se excedeu!". Ela
sabia do que falava: no casamento da neta, Said insistia que a marcha nupcial
fosse substituída pelo Hino dos Dragões da Independência.
O fato é que, durante a festa, ele deu explicações sobre
a Guarda Nacional Republicana, revelou intimidades do General Feliz e quase
enfartou quando uma obesa convidada por pouco não desabou sobre o quepe,
momentaneamente esquecido no sofá.
Entretanto, o que mais incomodou Said, além dos protestos e das ameaças
da filha, que ficou de confiná-lo num asilo, é que, envergando
o vistoso uniforme, sentiu uma súbita e indômita tendência
ao autoritarismo. Reagiu com inusitada arrogância à proposta do
motorista de táxi, no sentido de que buscassem caminho alternativo ante
a interdição da via; assustou o porteiro com uma reação
também extravagante quando este, inocentemente, perguntou-lhe quantas
batalhas havia ganho; por fim, foi agressivo com o gato Balaústre quando
este se retesou diante da farda. Lembrou-se do fim da conversa com o neto, quando
a segunda garrafa de Merlot 2005 ameaçava acabar:
- Vô, o senhor não tem medo de ser, digamos assim, acompanhado
pelo espírito do general ao vestir seu uniforme?
- Bobagem, Diego. O general, sem trocadilho, deve estar feliz por alguém
se interessar por seu uniforme e usá-lo com orgulho.
- Não sei não, vovô. Ainda acho que essas coisas que tiveram
um grande valor para as pessoas, despertam-nas quando trazidas para o plano
concreto das ambições.
- Diego, eu estou achando você muito superticioso, mas tenho que admitir
que a figura quase literária que você construiu é muito
bonita. Como vocês dizem... desencana!
Bom, o que importa é que Said estava realmente preocupado com suas reações
e, por isso, resolveu tirar logo o uniforme naquele início de madrugada.
Além do que, estava cansado e com sono: tinha sido pródigo em
explicações sobre o significado de seu traje e havia, decididamente,
bebido tanto quanto a filha implicara. Dormiu como um general português
feliz, ou seja, com a inocência de um parvo. Pareceu ter escutado um barulho
incômodo durante o sono. Não deu maior importância. Acordou
no dia seguinte com uma sensação de perda. Intrigado com o desaparecimento
da farda, deu busca geral. Em vão. Três dias de busca minuciosa,
muitas lágrimas, espanto, incredulidade. Nunca mais encontrou o uniforme
de gala do general Feliz. Profundamente infeliz, agarrou-se, até que
a magérrima senhora de foice em riste viesse lhe buscar, aos quatorze
botões acessórios que restaram guardados no criado mudo.