Cheguei tarde. Como sempre havia de chegar. Procurava uma posição
cômoda, onde não desse a entender que estaria em alguma fila. A
cidade se mexia. Formigas incansáveis e exploradas a ir ao trabalho.
De bengala, suspensórios, topo grisalho (quase branco) trouxe seu corpo
até o local. Ensaiava, fingia testar a resistência da madeira ao
batê-la no chão.
Eu não havia dormido durante a noite, angustiado com o desfecho da avaliação
que, afinal, poderia mudar minha vida. Talvez .Nem ficava preocupado com o relógio,
instrumento antiliberdade.
Funcionário público, 20 anos, alto, imbecil. Funcionalismo serve
para que, senão vegetar às custas dos contribuintes? (minoria
entre sonegadores). Todos funcionalizavam publicamente, então porque
também não poderia eu fazer o mesmo? Me enquadrei contra minha
vontade a esse regime especial de trabalho. Portanto os atrasos para mim eram
supérfluos. Que diferença faria uma horinha a mais?
O velho veio com o olhar em minha direção com uma cara de interrogação.
Olhou por muito tempo. Disfarcei. Ele pregou os olhos no chão.
- Tá morto?
- Não sei. Acho que não. - respondi desinteressadamente.
Não satisfeito tocou-o, a princípio de leve, duas ou três
vezes. Tocava e se voltava a mim. Progressivamente cutucava com mais força,
e com mais força. E ele lá , sem se manifestar, ficava simulando
sono. Aquilo estava se tornando um massacre, uma covardia. Estava me enervando
a tal ponto que não puder continuar com minha simulação
de indiferença.
- Tá morto! - convicto disse.
Comecei a acreditar no velho, agora de olhar sério, fixo. Era verdade.
Notei que a pele do animal estava opaca, a orelha ereta. Mas parecia dormir
tranquilamente. Engraçado é que não havia moscas,
mosca alguma. Se é normal encontrá-las em vira-latas vivo, imagine
morto. As moscas também se emocionaram.
Uma mão tapou a viseira do garoto que espiava perto. Já se podia
sentir o suave cheiro sepulcral, demonstrando a proximidade do falecimento.
Teria sido na noite passada, na madrugada talvez.
Sua morte foi natural, pois não apresentava marcas daquelas comuns a
um guerreiro, que luta contra a fome e sede todos os dias. Queria acreditar
que não havia sofrido.
Eu lá e ele cá. Como doía! Aquele chão frio, aquela
armação de cimento paupérrima que provavelmente ele teria
usado para fugir do sereno. Papéis de balas e bitucas de cigarros baratos
forravam seu leito lúgubre e silencioso.
Nesse momento um garoto de bermuda e mochila atravessava a rua; lembrei de Marquitos,
o campeão da nossa gente, a esperança de um povo sedento por medalhas
de ouro e de prata. Marquitos esportista se acidentou depois de um treino. UTI:
coma dos graves. Paralisado como a flor de plástico que a mulher banguela
vendia na rodoviária. Tive vontade de chorar.
O idoso já havia se afastado. Eu não, pelo contrário, tinha
vontade de me aproximar, acudi-lo, enterrá-lo. Queria poder carregá-lo
no colo, dar-lhe um bom banho, uma refeição de restos de arroz
com feijão. "Vai brincar, Totó!" Covardemente o deixei
lá. Não era nojo, não, bem que eu poderia tê-lo ressuscitado.
Dizem que aquilo que a gente quer muito acontece. Mas não. Larguei o
coitadinho lá.
Entreguei o bilhete e avisei ao motorista. Tratei-o de "cão morto
debaixo do banco". Antes do ônibus partir, dei uma última
olhada. Já eram oito horas e o povo se aglomerava na lotérica
e nos bares. E a mulher banguela vendia flores de plástico.