A Garganta da Serpente
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A ratoeira

(Poeta dos Acordes)

- Não! Você não quer comer isto! - gesticulava o pobre garoto, fazendo pose de guru cabalístico.

- Isso! Isso! Empurra... empurra pro canto do prato! - insistia eufórico, enquanto do outro lado da vitrine, olhares estupefatos engoliam forçosamente um pedaço de vitela ao molho.

- Não! Não!... Caramba! Não funcionou desta vez!

Com as mãos espalmadas e o nariz colado na vitrine, o menino conversava como se estivesse falando com alguém, mas apenas ele ouvia a própria voz. Quase ninguém o notara desde então.

- Isso! Chama o garçom! Paga a conta! Deixa tudo! Vão embora! Vocês estão cheios! Já tá fazendo bico! E não lembre do cachorro! Não lembre! Não! Não! Isso... Isso... tchau... adeus... Ufa! Consegui!

Dentro do restaurante, todos se deleitavam , ruminando, em fartos pratos, uma ração de capricho francês.

- Droga! - rosnava o garoto - Eu estou com fome - e apertava o seu mirrado ventre sujo com as mãos.

Cada pessoa que largava um garfo ou empurrava um prato para o lado lhe enchia a boca d´água.

- Isso! Deixa pra mim, mano véio! - Seu corpo vibrava toda vez que uma família deixava uma mesa.

De repente um garçom entra com uma enorme travessa cristalina, cheia de arroz temperado. O guri acompanha todo o trajeto, até que subitamente uma criança cruza a frente do serviçal, desequilibrando-o. Na queda, o arroz e a travessa formam uma única massa, que é acrescida por fios de cabelo, pedaços de palitos e guardanapos que são varridos para dentro de uma pá, por outro serviçal que estava de plantão para este tipo de contratempo.

- Ô olho desgraçado! Precisa puxar! Não dava pra esperar! - resmunga o menino decepcionado consigo mesmo.

A ansiedade lhe roia as paredes do estômago. Tentara outrora, burlar a segurança e entrar para pedir, mas sem resultado. Antes que pudesse obter qualquer êxito, os bruta-montes do estabelecimento o arrastavam para fora e longe dos olhos alheios, os hematomas afloravam. No escuro e na miséria não existe diferença entre homem e menino. É tudo igual. E quando as luzes vermelhas e azuis refletiam na vitrine, prudente é quem corria e não olhava pra trás. É, o jeito era esperar.

Pouco a pouco as mesas foram se esvaziando e os pratos foram lentamente sendo levados para a cozinha. O músico já parara de tocar a horas e agora tomava uma cerveja e fumava o seu cigarro. Os funcionários começaram a sair e a trancar tudo.

- A hora é agora - balbuciou o garoto, desgrudando-se da vitrine e dirigindo-se para os fundos do estabelecimento, onde permaneceu escondido, durante um certo tempo, próximo a caçamba, na qual depositavam os detritos do jantar.

De seu esconderijo, o menino observava o pessoal que levava os últimos sacos de lixo. Esperou que as luzes do restaurante se apagassem e, então, mergulhou entre os detritos como quem mergulha em um oceano. Suas mãos trêmulas, tateavam e rasgavam os sacos com voracidade. Não demorou muito para encontrar comida.

Na cegueira que a fome lhe impunha, toda a comida que identificava, devorava, semelhante a um suíno a chafurdar na lama de sua miséria imunda. Nem sequer se dera conta dos perigos daquele banquete. Foi quando começou a sentir a garganta arder e a queimar. Seu corpo se ensopara em um líquido, proveniente da comida, que ardia e inflamara todo o seu corpo. A dor aumentara com fisgadas e contrações convulsivas por todo o corpo numa dança macabra e mortal.

Lentamente a dança fora diminuindo a medida que a vida se esvaía. Da boca e do nariz brotavam uma espessa espuma, que era um misto de sangue e vômito. Enfim, matara a fome com a sua morte.

Encontraram o corpo no dia seguinte e a polícia foi acionada. A autópsia revelou cacos de vidro no intestino, porém a causa da morte fora a ingestão demasiada de uma substância muito usada em veneno de rato.

O dono do restaurante chamou os policiais para uma sala particular e explicou-lhes que a caçamba guardava todo o lixo do restaurante sem distinção nenhuma. Também afirmou que nunca tinha visto mendigos naquela parte da cidade e que sequer poderia imaginar que eles sondavam o lixo de seu estabelecimento. Terminada a pequena reunião, todos saíram da pequena saleta rindo e conversando como se fossem amigos de longa data.

O caso foi arquivado como suicídio, pois alguns "laudos" provaram que seria praticamente impossível não perceber a presença letal da substância nos alimentos.

Como a família não fora encontrada, o corpo foi enterrado em uma vala comum para indigentes do cemitério local.

Meses depois, o dono do restaurante mandou que se colocassem algumas hastes no gramado, em frente à vitrine. Nestas colunas prenderam uma rede de arame e rente a esta plantaram vários pés de Primavera, planta bonita e muito espinhenta. A planta cresceu rapidamente e encobriu a vitrine, enfeitando-a com seus vistosos espinhos.

Tudo voltara a sua normalidade e ninguém mais lembrava do incidente com o menino. A aristocracia da cidade voltava a chafurdar nos pratos finos do restaurante. Os garçons iam e vinham da cozinha. E da sala da gerência, o dono do estabelecimento ordenava aos seus serviçais:

- Silvério! Vá armar mais ratoeiras no depósito e nos lugares suspeitos! Não podemos dar canja pra estes ratos.

- Ta certo, chefe!

- E não se esqueça de trocar a isca. Estes ratos são persistentes e espertos. Mas, não mais que nós. Não mais - dito isto voltou-se para a televisão da saleta, onde uma câmera mostrava a frente do estabelecimento e um pedaço da praça escura em pleno inverno.

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