Depois do flagelo os sobreviventes vão pouco a pouco restabelecendo a
normalidade. Reorganizam os lares como podem, voltam ao trabalho e à
rotina em geral. Se preenchem os vácuos. Os que morreram se foram. Os
outros têm uma vida para viver. A vida sempre continua, como Albert Camus
nos faz lembrar em "A Peste".
Fui introduzido a esse axioma quando era criança. Ensinado pelo amigo
de sempre. Com a sua experiência de homem maduro, me explicou e mostrou,
com exemplos do cotidiano, que a morte de alguém não interrompe
a vida dos demais. Como todos acabamos por aprender. Mas o meu amigo não
me deu tempo de descobri-lo através da minha própria vivência.
Com frequência me falava do assunto. Sem qualquer intenção
definida, mas sim porque falava muito, a respeito de qualquer assunto, com todo
mundo. Ele era assim, por temperamento. Muitas vezes, ao se referir à
morte que para nós foi a mais dolorosa, repetia o verso de um tango argentino:
"Seus olhos se cerraram e o mundo seguiu em frente..."
Não acerca da atitude do homem em face da perenidade da vida, mas sobre
quase tudo o que é importante no campo da nossa conduta existencial,
cresci e amadureci divergindo do meu amigo. Enquanto eu ia passando de menino
a homem maduro e ele de homem maduro a velho, nossos desacordos foram multiplicando.
Até a sua partida. Porém jamais deixamos de nos querer.
Um dia ele sofreu um acidente. A sua robustez física permitiu que resistisse
umas duas semanas. Durante esse período conseguimos conversar muito pouco,
já que ele passava longo tempo inconsciente. Não obstante chegou
a me dizer que breve iria morrer.
Poucos dias depois do seu falecimento acordei uma noite e o vi no meu quarto.
Estava sério mas tranquilo. Não se aproximou de mim. Olhamos
um para o outro, sem nos falar. Imediatamente compreendi que tinha ido me ver
pela última vez. Antes de desaparecer definitivamente. Voltei a dormir.
A vida continuava, como ele mesmo me ensinara.