(para André)
Eu sou de uma cidade onde pretensiosamente todos são bonitos. Quanto
a isto não há dúvidas, nunca houve. A história não
me deixa mentir: até hoje, passados séculos de nossa fundação,
ainda não se pôde constatar um único caso de feiúra
em nosso território. Pelo contrário, durante o ano, e isso desde
há muito, milhares de pessoas nos visitam justamente para comprovar nossa
condição, e para tentar descobrir o porquê de sermos assim:
portadores de tanta beleza. Á nos, encontrar qualquer explicação
definitiva para o fato nunca nos interessou; diria até que possuímos
certa indiferença quanto ao assunto: somos bonitos e pronto! isso já
nos é o bastante!
Senti-me arrebatado ao conhecê-lo, pois até ali éramos bonitos
sem distinção, desta forma, prova inequívoca da ordem natural
das coisas: privando-nos da feiúra, a natureza exercia sua sincera sabedoria
agraciando-nos com o poder quase sobre-humano da conformidade. ...e então
presenciava aquilo, um insulto ao meu bom senso. Horrorizava-me perceber nele
um jeito invulgar de beleza; ali, em pouco menos que um corpo, toda nossa usualidade
era desafiada; Horrorizava-me, ainda mais, o fato de apenas eu perceber tal
discrepância: bonito, mas não como nós; insuspeito de desejar
sua diferença, mas diferente, e, por isso, culpado! Sim, culpado!
Portanto, muito cedo aprendemos que a beleza, como conceito ou como fato, não
importa, nunca fora, é ou um dia será invariável em nossa
cidade; temos certeza do quanto somos bonitos não apenas porque somos
nós os primeiros a reproduzir isso como verdade, ou melhor, como coisa
realmente existente, incontestável (e nenhuma matéria consegue
ter existência mais incontestável do que este fato), mas porque
também somos levados a reproduzir isso como verdade, coisa realmente
existente por todos que nos rodeiam, por todos que se abismam quando postos
em contato conosco. Em suma, a nossa beleza é um fato porque consequência
do que acreditamos e do que nos fazem acreditar!
Enfim, muito pouca coisa entre meus conterrâneos ganhava o status de anormal.
Racionalmente, poder-se-ia atribuir isso a alguma falha ou distúrbio
de percepção em alguma parte recôndita de nosso inexplorado
cérebro; porém, era compreensível ter tal atitude entre
nós, pois, ao contrário do que dizem, pensamos que o reconhecimento
de si mesmo é anterior ao reconhecimento do outro. A dedução
é simples: como éramos bonitos, todos os outros são excluídos
dessa condição; e isso sempre fora coisa bem resolvida em nossas
mentes: não existia beleza além de nós, tudo era demarcado
uniformemente por ela, inclusive ela própria. ...mas por que ele era
diferente?! E por que apenas eu soube disso?!
Era a única solução, eu sei! Não podia deixar que
minha felicidade, e a de todos os outros bonitos como eu, fosse abalada pela
existência de uma pessoa que nem sequer dava-se conta do tamanho do perigo
que poderia oferecer; era meu dever, quase uma obrigação a mim
imposta; acometera-me exatamente isto enquanto sentia seu sangue (vermelhidão
abusiva seu sangue!), ainda quente, espalhando-se em minhas mãos como
que atestando sua diferença, de modo a aprovar a razão de meu
acometer assassínio. Era a única solução, eu sei!
...e apenas eu soube!
TODOS OS PROBLEMAS DO MUNDO
Eu tenho todos os problemas do mundo
Guardados na gaveta de um armário
Prontos para serem expostos
À minha falsa comiseração.
Mas não!
Nem todos os problemas do mundo
Serão necessários à minha intenção.
Basta que dentre todos
Eu escolha algum sem solução
Para que então
Passe eu a vida inteira a pensá-la
E no final,
Depois de pouco esforço,
Lamentar pelo mundo por não
Tê-la encontrado.