A Garganta da Serpente
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Passam os dias
Conto paragrafado em cinco movimentos

(Paulo Henrique Moraes)

(para André)

Eu sou de uma cidade onde pretensiosamente todos são bonitos. Quanto a isto não há dúvidas, nunca houve. A história não me deixa mentir: até hoje, passados séculos de nossa fundação, ainda não se pôde constatar um único caso de feiúra em nosso território. Pelo contrário, durante o ano, e isso desde há muito, milhares de pessoas nos visitam justamente para comprovar nossa condição, e para tentar descobrir o porquê de sermos assim: portadores de tanta beleza. Á nos, encontrar qualquer explicação definitiva para o fato nunca nos interessou; diria até que possuímos certa indiferença quanto ao assunto: somos bonitos e pronto! isso já nos é o bastante!

Senti-me arrebatado ao conhecê-lo, pois até ali éramos bonitos sem distinção, desta forma, prova inequívoca da ordem natural das coisas: privando-nos da feiúra, a natureza exercia sua sincera sabedoria agraciando-nos com o poder quase sobre-humano da conformidade. ...e então presenciava aquilo, um insulto ao meu bom senso. Horrorizava-me perceber nele um jeito invulgar de beleza; ali, em pouco menos que um corpo, toda nossa usualidade era desafiada; Horrorizava-me, ainda mais, o fato de apenas eu perceber tal discrepância: bonito, mas não como nós; insuspeito de desejar sua diferença, mas diferente, e, por isso, culpado! Sim, culpado!

Portanto, muito cedo aprendemos que a beleza, como conceito ou como fato, não importa, nunca fora, é ou um dia será invariável em nossa cidade; temos certeza do quanto somos bonitos não apenas porque somos nós os primeiros a reproduzir isso como verdade, ou melhor, como coisa realmente existente, incontestável (e nenhuma matéria consegue ter existência mais incontestável do que este fato), mas porque também somos levados a reproduzir isso como verdade, coisa realmente existente por todos que nos rodeiam, por todos que se abismam quando postos em contato conosco. Em suma, a nossa beleza é um fato porque consequência do que acreditamos e do que nos fazem acreditar!

Enfim, muito pouca coisa entre meus conterrâneos ganhava o status de anormal. Racionalmente, poder-se-ia atribuir isso a alguma falha ou distúrbio de percepção em alguma parte recôndita de nosso inexplorado cérebro; porém, era compreensível ter tal atitude entre nós, pois, ao contrário do que dizem, pensamos que o reconhecimento de si mesmo é anterior ao reconhecimento do outro. A dedução é simples: como éramos bonitos, todos os outros são excluídos dessa condição; e isso sempre fora coisa bem resolvida em nossas mentes: não existia beleza além de nós, tudo era demarcado uniformemente por ela, inclusive ela própria. ...mas por que ele era diferente?! E por que apenas eu soube disso?!

Era a única solução, eu sei! Não podia deixar que minha felicidade, e a de todos os outros bonitos como eu, fosse abalada pela existência de uma pessoa que nem sequer dava-se conta do tamanho do perigo que poderia oferecer; era meu dever, quase uma obrigação a mim imposta; acometera-me exatamente isto enquanto sentia seu sangue (vermelhidão abusiva seu sangue!), ainda quente, espalhando-se em minhas mãos como que atestando sua diferença, de modo a aprovar a razão de meu acometer assassínio. Era a única solução, eu sei!



...e apenas eu soube!



TODOS OS PROBLEMAS DO MUNDO

Eu tenho todos os problemas do mundo
Guardados na gaveta de um armário
Prontos para serem expostos
À minha falsa comiseração.
Mas não!
Nem todos os problemas do mundo
Serão necessários à minha intenção.
Basta que dentre todos
Eu escolha algum sem solução
Para que então
Passe eu a vida inteira a pensá-la
E no final,
Depois de pouco esforço,
Lamentar pelo mundo por não
Tê-la encontrado.

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