A Garganta da Serpente
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Cartões Russos

(Priscila Miraz)

O coração apertava quando parava no canteiro central da avenida e as quatro pistas de carros correndo, duas para a ida e duas para a volta, lhe comprimiam o corpo, aquele corpo tão pequeno. E o que era o estar ali parada sem mais, sem saber pra onde, e ainda comprimida, ou sabendo, e a diferença não era essa, não existia diferença entre os motivos que languidamente desconhecia, falando ao deus-dará, para o que ia além daquela sensação de fracasso entranhada, de ossos moldáveis que já não estalavam mais, e pronto, de novo a existência da boca do estômago, do estômago que gostava de esquecer que existia por razões plausíveis. Impulsivamente fechava os olhos com força. Quando abria o sinal de pedestres, corria trocando os passos com firmeza, um frente ao outro, e já do lado de lá, os olhos calmos, compassava o andar, a cabeça bem segura pelo pescoço esguio sustentava o olhar decidido de quem ignora ou finge e de quebra o balançar dos brincos. Foi até o banco que informaram ficar em algum ponto entre a Corrientes e a Florida. Fez o câmbio de dinheiro e seguiu. Seguiu também o marulho lá guardado na cabeça, que pensou que desapareceria depois de algumas horas. Essas pequenas esperanças divertidas, mas que rapidamente perdem a graça.

Sentou-se pro café em qualquer lugar coberto que lhe protegesse da chuva que começava. Na rua, pessoas com e sem guarda-chuva, com e sem pressa, passavam, paravam, falavam, guardavam-se de quê. Coisas que fazia sem querer. Pensava nessas coisas que fazia sem querer e que, quando queria repetir não podia, porque vieram de antes: quando acertou a bola de tênis no interruptor, apagando a luz sem ter que se levantar da cama tão cômoda. Quando dizia sem ter entendido previamente o que diria. Quando esteve com os cartões postais do sebo do centro velho de Curitiba, todos estampados com alguma pintura famosa e com o que julgou ser comentários sobre as pinturas, escritos em russo no verso, em um cinza claro e que ocupava todo o lado esquerdo do cartão. Alguns estavam em branco. Outros chegaram a ser enviados, cheios de histórias, de línguas diferentes. Gostava de olhar os cartões. Achava engraçado não ter lido nenhum. Ficou tanto tempo lá, mexendo na caixa como se procurasse alguma coisa certa, mas só olhava as letras, as cores das canetas, os remetentes e os destinatários. Lembrava-se do nome de uma rua de São Paulo: Rua das Flautas Transversais. Algumas ruas de São Paulo são inscritas do lado de lá. É como se quisessem contar em duas palavras uma história fora do hábito dos moradores, fora do tempo porque indefinido. Trazer pra dentro daquelas vidas algum encanto dos que pairam, planam e evocam em nós as invenções tão necessárias para se viver. Uma cidade é sempre uma invenção tão pessoal quanto as vidas que comporta. Lembrava-se da cara que fez, de Carmen ouvindo a música do destino nas cartas ciganas, quando encontrou os versos de Tarkóvsk no emaranhado das cartas-cartões, lívida e corajosa. Duas linhas em caneta tinteiro, em letras similares ao que já havia visto talvez um dia quem sabe onde perdido no seu tempo que foi prolongando-se.

Pediu a informação ao garçom. Sério e solícito, ele disse que não sabia dizer, mas iria ligar para o serviço de informações da cidade. Da mesa onde estava, através da grande janela de vidro fosco, cheia de cartazes e adesivos e cardápios (: El Rincón Del Cacique, Savarin Turismo compromiso por el servicio de calidad, Super Mila huevo frito ensalada 2,99, Fiesta Gaúcha, Hotel Europa a metros del obelisco, ponga línea celulares tajeta de 80, La Perla café-bar-minutas, Tango show Humberto 1º 489), pode observar o homem ao telefone. Voltou minutos depois com um pequeno papel: colectivo 28 + Maipú. Ainda gesticulando como quando ao telefone, com os olhos muito escuros mantidos baixos no papel, e com o movimentar interrompido e várias vezes brusco do bigode tão longo que lhe escondia a boca, disse que deveria descer na segunda parada, dobrar a esquerda logo no fim da mesma quadra. Poderia ver o prédio na esquina. Entregou o troco do café, agradeceu, mal ouviu os agradecimentos pela informação e voltou-se em direção à porta estreita do café, sempre vago, fugidio, sem paciência, cansado.

No limite entre o toldo do café e o céu nublado, as pontas dos sapatos de pequenos saltos começavam a receber a fina garoa, que ia se espalhando e descendo pela superfície até fazer a volta do solado, e isso fez com que ela parasse. O ar daquela cidade a confundia. Podia estar chovendo ou fazendo sol, sempre perdia a direção do tempo e sentia-se nas horas da manhã. O café preto e forte lhe deu ainda maior consciência de suas entranhas e consequentemente daquela sensação que não definia bem. Preferiu participar do grupo das pessoas sem guarda-chuva e sem pressa. Possuía de mais palpável naquele dia, um mau humor excepcional que se confundia com as duas malas que carregava com dificuldade. Da janela do ônibus pôde ver uma mulher sentada no canteiro de alguma avenida. Sentada com os pés descalços na rua movimentada, sorrindo e brincando descontraída com sua orelha esquerda. Ria a dobrava a cartilagem da orelha para todos os lados que conseguia com seus dedos nervosos, e ria de novo para alguém que passava de carro e lhe xingava por estar onde não devia. Sorriu de dentro do ônibus, pela janela fechada, quando passou por ela, resmungou qualquer coisa que não lhe sai da cabeça desde que tomou a decisão, com a certeza de que aquela mulher riria com a consciência de seu ridículo levar-se a sério que maior só poderia ser a dela mesma. Quis descer, mas quando se deu conta já estava longe e a vontade havia passado assim.

Na esquina viu o prédio cinza e não muito alto. Contou as janelas e precisou que devia ser a primeira do segundo andar, com os gerânios vermelhos plantados nos vasos de barro sem pintura, ainda os mesmos, menos os dois que se quebraram numa manhã já longe. Depois de alguns minutos de conversa com o porteiro, além de lhe mostrar as chaves que recebeu pelo correio, foi necessária a identidade, porque não disse quando chegava, não foram avisados de sua chegada em plena tarde de segunda-feira, quando não tem ninguém em casa. O síndico subiu ao seu lado e só a deixou depois que havia aberto a porta e um retrato estratégico, provavelmente posto depois do telefonema da semana passada, lhe mostrou o mesmo rosto anos mais moço. Sozinha ali em meio aos antigos cheiros deslocados, eles e ela, do velho lugar de origens múltiplas e seguras, ajeitou a fita de cetim preta do vestido sem mais porque e tirou os sapatos. Pela janela pouco aberta entrava torturante, a sirene de um estacionamento logo em frente, carros entrando e saindo. Antes de deitar-se tomou o cuidado de deixar visível na mesa da sala, em pé, encostado à bolsa pequena e preta, um dos cartões russos, roubado, obviamente, com uma pintura de Tintoretto e os dois versos de Tarkóvisk: "porque o destino seguia-nos o rastro/ como um demente de navalha em mãos".

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