Olavo tinha duas paixões: o Flamengo e a Marta. Ela era a esposa perfeita.
Não se entenda por perfeita, aqui, uma mulher submissa, que vive em função
dos desejos do marido e não tem vida própria. Nada disso. Ao contrário,
Marta era uma mulher exuberante e independente, dona do seu próprio nariz.
Era bem sucedida em sua carreira, era uma pessoa decidida e corajosa, que não
se intimidava diante de nada e sabia fazer valer suas vontades e lutar pelos
seus objetivos.
Embora fosse assim tão decidida e ousada, Marta era doce como mel. Não
era assim para todas as pessoas com quem convivia, o que a tornava ainda melhor,
mas com Olavo ela era a delicadeza em pessoa. Sem perder o brilho de sua personalidade
forte, ela era meiga, carinhosa, generosa e confiável e esse equilíbrio
tão delicado de qualidades foi o que fez dela a mulher perfeita para
ele. Pelo menos até aquela noite.
Olavo era louco por futebol, torcedor fanático do Flamengo. Jogava todas
as quintas-feiras com os amigos, hábito ao qual a esposa nunca se opôs.
Pelo contrário, incentivava-o, dizendo que era bom tanto para o seu corpo
como para sua mente. Na maioria das vezes, ela o acompanhava aos jogos e ficava
na arquibancada torcendo por ele e nessas ocasiões ele se sentia o homem
mais feliz do universo. Sua casa, seu time, seu campo, sua vida: tudo para ele
se resumia na pessoa de Marta.
Durante o campeonato estadual desse ano, cujos jogos ela costumava assistir
com ele, entretanto, houve um fato que despertou o ciúme e a suspeita
do marido. Ela não foi, ao contrário dos anos anteriores, a nenhum.
Precisava fazer um curso e resolveu aproveitar as ocasiões das partidas
para frequentar as aulas. Ele lamentou a ausência, pois Marta era
boa até como companheira de torcida. De tanto assistir com ele aos jogos,
já entendia todos os lances, conhecia os jogadores pelos nomes e acompanhava
com emoção todas as partidas. Ver o jogo sem ela não tinha
a mesma graça, mas queria ser generoso com ela, pois ela era merecedora
de toda a generosidade do mundo.
Aconteceu então que numa dessas noites de jogo, houve uma briga feia
no bar onde Olavo estava e a confusão foi tão grande que o impediu
de terminar de ver a partida entre Vasco e Botafogo, para sua infelicidade,
justamente quando o Vasco ia tomando uma lavada de 3 a 0. Resolveu, então,
fazer uma surpresa para a esposa e ir encontrá-la no fim do curso. Parou
o carro embaixo do prédio, a rua estava iluminada. Subiu no elevador
até o andar onde eram ministradas as aulas e encaminhou-se à secretaria,
para saber em que sala encontrá-la. Foi então que teve uma surpresa.
Marta Aciolly não era matriculada em curso algum daquela instituição.
A atendente tinha certeza. Aliás, o curso que ela pretensamente fazia
sequer era oferecido naquela unidade.
Olavo sentiu que ar lhe faltava. Marta nunca antes havia mentido pra ele. Ou
pelo menos era isso o que ele pensava. Onde ela estaria àquela hora?
Com quem? Por que teria mentido? Olavo não conseguia acreditar. Havia
mais ou menos três horas ela tinha-se despedido dele com um beijo na porta
de casa quando saiu para aquele maldito curso. Onde teria se metido?
A cabeça de Olavo era um ninho de gatos, com mil perguntas e desconfianças
miando e zombando do seu coração de marido ingênuo. Então
era assim que ela o recompensava pelo amor que ele lhe dedicava? Era esse o
seu retorno de tanto carinho e respeito com que tratava a mulher? Ficou sentado
no portão de casa chorando e pensando em como agiria nesta situação.
Lembrou-se do seu revólver, que sempre despertou nela tanto desconforto.
Ela era contra todas as formas de violência, era assim que justificava
a aversão que sentia todas as vezes que via a arma. Até ali Olavo
havia admirado a sua pureza. Agora, entretanto, imaginava que ela devia temer
que um dia o marido descobrisse suas mentiras e lhe fizesse vítima daquela
arma. Pois bem, ele já sabia o que fazer. No próximo jogo do campeonato,
iria segui-la pela rua e, quando estivesse bem aninhada nos braços de
seu amante, teria o destino que fizera por merecer: as páginas policiais.
A semana foi muito demorada para Olavo. Tinha que dormir ao lado dela, amando-a
e odiando-a infinitamente. Tentava manter-se afastado mas, quando sentia as
mãos suaves dela tocando seu corpo, estremecia de desejo e não
conseguia evitar. Possuía-a com toda a força do seu amor e ódio
e, ao terminar, sentia-se humilhado, ultrajado, irremediavelmente escravo dos
encantos dela. Quando finalmente chegou o dia do próximo jogo, Olavo
fez o que havia se proposto. Despediu-se dela, como de costume, e pegou seu
carro, para segui-la. No porta-luvas, sua arma esperava o grande momento.
Quando ela ligou a seta indicando que entraria no estacionamento do Maracanã,
ele constatou que não era coincidência que ela tivesse feito aquele
caminho, ela para lá mesmo que estava indo. Olavo começou a ficar
confuso. Marcar um encontro em pleno Maracanã em dia de jogo não
parecia a ele uma ideia muito romântica. Será que estariam
realizando alguma fantasia erótica? Alguma coisa que tivesse haver com
a sua própria paixão pelo futebol ou pelo Flamengo? Quanto mais
pensava, mais se sentia ultrajado, revoltado, com ganas de matar. Mas não
ia conseguir entrar armado no Maracanã, isso era certo. Teria que subir,
localizá-la e esperar que saíssem para então dar cabo da
vida do infeliz que se metera no caminho do seu casamento e de sua esposa traidora
e dissimulada. Só não sabia se teria nervos suficientes para aguentar
essa sensação por muito tempo. Queria muito que aquilo não
estivesse acontecendo, por um momento chegou a se arrepender de ter tido a ideia
que o levou a descobrir a mentira, mas agora já era tarde. Estava sabendo
de tudo e precisava tomar uma atitude.
Olavo esperou por ela no corredor da galeria e, quando ela passou, foi-lhe
espreitando. Ela passou em direção à torcida, vestida de
camisa do Vasco, que naquela noite jogava contra o Fluminense. Um vascaíno?
Sua mulher o estava traindo com um vascaíno? Mas isso era muito pior
do que tudo o que pudesse imaginar. Aquela mulher tão doce era um ser
do mal, capaz de traí-lo em todos os sentidos da forma mais vil que existe.
Um vascaíno!!!
Enquanto ia caminhando, o marido, trêmulo, ansiava pelo momento em que
ela encontraria o amante. Tentava preparar o coração para o que
seria o momento mais doloroso de sua vida, a confirmação de que
Marta não era e nem nunca tinha sido uma esposa perfeita, como ele pensava.
Talvez jamais o tivesse amado de fato. Quem sabe quantos casos já teria
tido? Enquanto ele pensava isso, as lágrimas rolavam pelo seu rosto.
Com o olhar enevoado pela mágoa, ele a viu chegar na entrada da arquibancada
onde ficava a torcida organizada. Era muita dor pra um só coração.
O ódio que sentia era tanto que estava difícil suportar. Apertou
o passo atrás dela, que já ia se perdendo no meio da multidão
cruzmaltina. Seria agora.
O que Olavo viu, quando Marta chegou à torcida organizada, foi algo
para o qual o seu coração não estava preparado. Ao chegar
no grupo de torcedores, ela foi saudada com palmas e logo se juntou ao grupo,
cantando gritos de ordem contra o Fluminense com uma determinação
quase igual à sua, quando estava nos jogos do Flamengo. Fazia gestos,
cantava alto, pulava e se indignava com cada lance, falando palavrões
cabeludos diante dos olhos bestificados do marido, que se esgueirava num canto,
lá no alto, sem conseguir acreditar no que via. Por mais que procurasse
atentamente, Olavo não detectava qualquer laço de envolvimento
dela com homem algum da torcida. Ao contrário, estava completamente absorvida
pela partida, não olhava para ninguém, só prestava atenção
nos lances do jogo, sempre de aliança no dedo.
Ao final do primeiro tempo, Olavo ainda tinha um último e tênue
fio de desconfiança de que algum homem pudesse aparecer e beijar a sua
doce Marta, mas ela desfez qualquer motivo para isso, ao juntar-se a um grupo
de outras três torcedoras tão fanáticas quanto ela para
ir ao banheiro e comentar o jogo com uma paixão descabida. No final do
segundo tempo, terminada a partida, despediu-se das pessoas e voltou ao carro,
já sem a camisa do Vasco e sem ter beijado ninguém. Era difícil
de acreditar, mas a traição de Marta consistia em ser torcedora
do Vasco. Quando o peso desta constatação caiu no solo de seu
coração, fazendo barulho, Olavo chorou novamente mas, desta vez,
de felicidade. Santa Martinha!!! Não era mais a esposa perfeita, pois
era uma vascaína traidora, mas não deixava de ser a sua doce,
dulcíssima companheira, em quem, pelo menos para assuntos que não
diziam respeito ao futebol, ele ainda podia confiar.