A Garganta da Serpente
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O obstáculo

(Pattystrela)

Andava taciturna, acinzentada, ultimamente. Apesar de todo o sol e do verão, andava noturna. Com nuvens escuras pairando logo acima de sua cabeça, Olga desceu a escada da varanda em direção à rua pensando no homem que amava, que não era o mesmo que a esperava agora do outro lado do portão. Enquanto o sol da tarde lhe manchava a pele com seus últimos raios, ia se perguntando se podia considerar cinismo o fato de manter encontros com alguém por quem não se interessava de fato, com o frio objetivo de apenas ter alguém do seu lado, uma tábua onde se apoiar e não afundar no meio daquele oceano escuro e profundo que estava logo abaixo de seus pés. Depois de um segundo pensando nisso, chegava, como em todas as ocasiões que este pensamento lhe ocorria, à conclusão de que não se tratava de cinismo, mas sim de inteligência. Se o seu amor não era correspondido, o que poderia fazer? Qualquer idiota sabe que não se manda no próprio coração. E se não mandamos no nosso, que dizer do coração alheio? Resignação nesse caso, pra ela, era uma questão de sobrevivência. Era fazer o barco da vida continuar a viagem, fazê-lo contornar o iceberg que se apresentava em seu caminho, ao invés de ficar parado esperando até que ele derretesse.

Cruzou o portão e foi recebida pelo olhar atento e esperançoso do homem que não amava. "Idiota!" - pensou e sorriu logo em seguida, respondendo ao olhar dele. Ao abrir a porta, notou no banco do carona três margaridas envolvidas em papel de seda e reviu, por um momento, seus pensamentos sobre a idiotice do rapaz. Na verdade, eram esses mimos que a mantinham perto dele e era bem possível que ele, intuindo a pouca correspondência que seus sentimentos tinham da parte dela, o fizesse de caso pensado. Talvez não lhe interessasse por que motivo ela estivesse perto dele, desde que estivesse perto dele. Embora estivessem se vendo ao longo de apenas três semanas, ela sabia que não teria havido sequer um segundo encontro se ele não fosse tão hábil em fazê-la sentir-se como uma princesa. Era um modo de ver a vida que lhe parecia totalmente descabido, mas se era a estratégia que rapaz usava, digamos que ele poderia ser considerado um bom engenheiro do amor.

Cruzaram a cidade ainda um pouco antes de o sol se por. O parque era o local ideal para apreciar a despedida diária do astro-rei. Localizado no ponto culminante da cidade, de lá era possível observar seus movimentos vitais. Os carros indo e vindo apressados, como o sangue nas veias de uma pessoa louca. O povo, o barulho das buzinas, os aviões cruzando o céu levando gente que chegava e partia. Imaginou em que lugar, no meio de todo aquele emaranhado, estaria o destinatário de todo aquele sentimento que agora azedava em seu coração. As esperanças que tivera, os sonhos que cultivara, os beijos que guardara para ele, a paixão que lhe atingira como um raio: todos jaziam dentro do seu coração amargurado, em estado de decomposição. Iam-se putrefazendo e ela se admirava de que não houvesse urubus a lhe seguir o tempo todo. Nem todo o seu cinismo conseguia salvá-la, nem o Engenheiro do Amor, com todas as suas artimanhas, tinha capacidade técnica para resolver o seu problema. Não havia para o seu caso, como bem disse Luiz Gonzaga, embora tratasse então de assuntos mais felizes, um só remédio em toda a medicina.

O Engenheiro, entretanto, tinha mais ferramentas do que ela pensava. De uma bolsa prateada tirou inúmeras velas, colocadas dentro de potes de vidro cheios com água até a metade. Depois, de outra bolsa, tirou um tipo de lona branca, que estendeu ao lado das ruínas de um antigo casarão, embaixo das árvores. Foi dispondo um por um os potes de vidro, até que a lona estivesse completamente rodeada pelas velas. Depois, voltou ao carro e ela percebeu, quando ele voltou, que as margaridas não eram as únicas flores que ele trouxera consigo. De um cesto, ele foi tirando punhados de pétalas de rosas vermelhas, que foi espalhando ritualmente sobre a lona branca, terminando com as ultimas sendo derramadas sobre os pés brancos dela. Por fim, uma garrafa de vinho e estava pronto o luau surpresa do engenhoso Engenheiro.

Olga sentiu-se deprimida, quase desconsolada, com tamanha dedicação do rapaz. Por mais que visse as coisas de forma prática, até o cinismo tinha limites e o seu acabava de chegar. Daria alguns anos de sua vida para ter o poder de mandar em seu coração e fazê-lo, naquele instante, amar o homem dedicado que estava sentado diante dela, com os olhos refletindo a luz das velas que queimava ao redor deles. Sua dor, que já não era pouca, tornou-se insuportável. Começou a chorar, diante da expressão estupefata do rapaz que, sem saber da fumaça preta que se espalhava dentro dela, insistia em saber o que havia feito de errado, por mais que ela lhe assegurasse que não fizera nada, que o choro nada tinha haver com ele.

Enquanto isso, no horizonte, a lua, cheia, emitia seus primeiros raios. Carregados de mistério, de lendas, e de poderes ocultos, os raios da lua deixaram a morada de São Jorge e viajaram pelo espaço sideral, passando por milhares de estrelas e cometas até a terra para tocar de leve o rosto de Olga no exato momento em que ela, entre lágrimas, pedia ao rapaz que a levasse embora dali. O pobre Engenheiro do Amor tentava demovê-la da ideia, queria pelo menos entender do que se tratava, mas Olga replicava dizendo apenas que o culpado não era ele, mas o próprio coração dela. A cada vez que ele insistia, tão cheio de doçura, pra que ela ficasse, mais dolorido ficava o semblante dela, de forma que a única solução que ele enxergou foi fazer o que ela queria, levá-la embora, por mais que isso o deixasse confuso e desapontado. Nunca imaginara, ao ter a ideia do luau, que a moça teria essa reação.

Ele sabia perfeitamente que ela gostava de outra pessoa, embora ela não lhe tivesse contado nada. Havia muito tempo, sem que ela o soubesse, a observava. Olga era sua musa havia já muito tempo, sempre procurava estar nos mesmos lugares que ela. Sofreu um pouco quando a viu pela primeira vez em companhia de outro homem. Ele era alto e louro e Olga o olhava com um olhar tão apaixonado que o fazia sentir-se vazio por dentro. Sentiu muita inveja do outro rapaz mas, no fundo, desejou que a fizesse feliz como ele a faria, se pudesse estar no lugar do outro. Com o tempo, entretanto, começou a vê-la novamente sozinha e foi nessa ocasião que finalmente tomou coragem e foi até ela. Fazia apenas três semanas que se viam, mas foram as três semanas mais felizes da vida dele. E agora, quando imaginava que teria a noite mais feliz de todas, quando imaginava que ela finalmente passaria a enxergá-lo como um homem desejável, vinha-lhe essa decepção. As mulheres eram realmente difíceis de entender.

Olga ia no carro calada, as lágrimas escorrendo pelo rosto. Ia pensando na forma como seu coração se interpunha no seu próprio caminho. Ao mesmo tempo em que era fonte dos seus sonhos de amor, era o único que estava impedindo que estes sonhos se realizassem. Se ela fosse dona de seus sentimentos, capaz de comandá-los, direcionaria imediatamente os seus para o Engenheiro do Amor, pois sabia que ele merecia cada beijo que ela pudesse lhe dar. Ao invés disso, não era dona de si mesma e estava ali, morrendo de sede diante de um mar tão azul e convidativo como o coração do rapaz diante dela.

No meio da descida, Olga pediu que ele parasse o carro. Havia só a floresta em volta deles e, no primeiro momento, ele achou que ela ia pedir pra voltar ao topo. Nada disso. Ela abriu a porta do carro e saiu andando para entrar na floresta. Ele ficou assustado, achou que ela fosse fazer alguma besteira. Chamou por ela, pediu que ela parasse e, quando viu que não pararia, saiu do carro apressado e foi atrás dela. Já era um pouco tarde pra isso, pois nesse momento ela já estava no meio do mato fechado e, como era noite, ele não conseguia vê-la, apenas escutar o barulho de seus movimentos nas folhas.

Olga estava decidida. Foi se embrenhando mais e mais até achar uma clareira. O barulho do rapaz se mexendo no meio da mata parecia ir em outra direção e ela ficou bem quieta para despistá-lo, enquanto ele chamava seu nome com um certo desespero. Quando sentiu que ele estava longe o suficiente, abriu a blusa e por a mão sobre o peito. No céu, a lua cheia parecia sorrir, zombando dela e do seu amor rejeitado. Quem ri por último, ri mais e muito melhor, ela pensou pra si mesma. Fechou os olhos e, respirando fundo para tomar coragem, enfiou os dedos peito adentro e foi afundando-os mais e mais até sentir na ponta dos artelhos o pulsar de seu coração. Então ali estava ele, o grande obstáculo entre ela e sua felicidade. De um gesto, afundou toda a mão no peito e, segurando com firmeza o coração em sua mão direita, começou a puxá-lo para fora.

Quando terminou, Olga sentiu-se aliviada. Com o órgão ainda pulsando na palma de sua mão, olhou para a lua no céu e foi então sua vez de sorrir. Com todo o desprezo que podia, atirou o coração no chão da mata. Agora estava livre, seus problemas estavam resolvidos. Virou as costas e caminhou tranquila de volta para a estrada, onde era aguardada com aflição pelo Engenheiro do Amor e por uma vida totalmente nova, sem nenhum obstáculo que pudessem atrapalhar sua felicidade.

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