A Garganta da Serpente
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Paula Paukos

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Intragável

(Paula Paukos)

Estou fugindo. Fugindo. Corro como a velocidade de um relógio que me carrega de onde estou para onde quero chegar. Chegar. É o que mais almejo. Estou cansada, cansada de viver, estou cansada de como estou ... e...s...t...o...u c...o...m p...r...e...g...u...i...ç...a d...e v...i...v...e...r ...

... Antes de partir tive que tomar a decisão de partir e antes de tomar a decisão de partir teve que me acontecer algo que fizesse eu tomar a decisão de partir, a partir daí segue-se a minha viagem rumo a mim mesma. Sai sem rumo. Sem bagagem. Sem documentação. Apenas eu, e o meu eu não me bastava. Eu sou-me muito pouco. Viajar é morrer a cada quilômetro, por que a cada quilômetro se perde um pouquinho daquilo que você era, no meu caso não perderei muito, pois nunca fui aquilo que almejei para mim. Sempre fui reflexo embaçado, como no espelho do banheiro depois que um corpo se lava na água quente enfumaçada. Não desejo ser eu, nem para meu pior inimigo, ele não se aguentaria- me.

Me conhecer é um desafio. Sou toda contradição. Sou abismo que leva ao porão do poço e sou Pico da Neblina. Sou DOCE como o pedaço da nuvem branca ou cor-de-rosa envolvida no palito e degustada com saber de ALGODÃO, sou amarga como as feições de uma cortadora de CANA. Sou alegre como espectadores que riem descontroladamente de um palhaço idiota qualquer. Sou triste como um palhaço idiota. Amo- te quando não me ama. Não amo- te quando me ama. Amo quando me amam. Amo sozinha.

Resolvi viajar, não a passeio. Mas por obrigação, porque estou fugindo. Fugindo. Corro desesperadamente na tentativa de fugir do desespero, mas acabo caindo nele. Minha respiração se altera, fico sem fôlego que me é essencial para a vida, por mais medíocre que esta me seja, mas é o mínimo que tenho. Tenho realmente muito pouco.

As pessoas acham Dom de Deus ter vida. Como se o fato do seu coração bater descontrolado, seu nariz tragar vento, seu sangue correr por veias entupidas por nicotina que me é mais vital que o fôlego (pelo menos nicotina tem gosto, ar não), que SÓ tudo isso que seu corpo produz, é Dom. Dom para mim é cantar, porque eu não o faço. Mas agora, eu vivo. Assim como quem canta também vive, assim como quem fuma vive também, assim como quem morreu vive. Porque o morto vive na cabeça do vivo e este, mesmo vivo, já está morto na cabeça do morto. Enterra-me.

Gostaria de saber escrever melhor, para poder relatar os fatos que me ocorrem desenfreadamente. É um atropelamento de acontecimentos, onde sou violentada por um alguém qualquer de opinião mais formada que eu, que me subverte confundindo- me dos tornozelos ao pescoço. Sinto-me perfurada, dilacerada, esquartejada, NUA. Meu olhar sobre nós é íntimo demais para apenas eu sozinha suportar. Meus pensamentos me censuram antes de eu pensar em nós, nós? Nós que atam- me na minha cama, na esperança de que você se lembre que me deixou presa te esperando para te amar. Amor que espera na cama do devaneio para ser amada por um alguém que não existe, só existe na minha cama que também não existe, só existe nos nós que também não existem, só existe em mim que também... espero... espero... espero... espero... espero... espero... espero... espero... espero...

... OCUPADO. O telefone me causa repulsa, nojo, pois o som que sai dele quando se liga para o outro e este está com outro ocupando a linha, pois esse som que sai, me faz lembrar golfadas de vômito de angústia. A repulsa do desespero. Quero avisar para quem me conhece onde estou, mas todos estão OCUPADOS demais para me ouvirem, e eu fico aqui, neste lugar de coisa alguma, ouvindo o som do telefone OCUPADO pelos outros que conhecem outros, e outros e ... espero... espero... espero... espero... espero...

... é só o que faço, esperar. Espera!!!

Consegui! Está chamando. Atende. Atende. Só ouço o outro som, que é mais lento que meus batimentos cardíacos, mais lento que meu relógio. Esse som é pior que a repulsa que provoca ânsia, pois este anseia por ser atendido porque sabe que ninguém ocupa a linha do nosso nó, mas é ainda mais angustiante porque parece que você me deixou, pois não atende o meu chamado de socorro. Esse som não é mais a golfada de vômito, é o gosto azedo que fica na boca depois da golfada. Desisto. Melhor que não me socorram. Me salvarem significaria morrer para mim mesma e me tornar cada vez mais dependente de outro que não seja eu. Seria injusto, preciso conhecer- me. Saber, onde afinal sou?

Estou com dor de cabeça. Sinto meus pensamentos se apertarem entre eles tentando espremer algo que saia e surta algum efeito que não seja a minha dor. Meus olhos quase se fecham, talvez para não enxergar a dor. "O que os olhos não veem, o coração não sente". Bobagem, e quando a dor é na alma? Não vemos nossa alma mas sentimos sua dor, como o vento que carrega consigo poeira de vida alheia, arranhando nossa pele quase imperceptivelmente. Estou com uma vontade horrorosa de chorar. Como se minha vida dependesse de uma única lágrima, e esta, teima por não deixar se envolver pela gravidade e seguir deslizante pelas maçãs do meu rosto marcadas pelo vento. Minha cabeça dói. Meu olho dói. O que não dói em mim? Estou pronta para a dor. Não reclamo. O sofrimento me torna mais forte, ou mais fria? Tão gélida com relação ao meu sofrimento que me neutralizo com qualquer situação catastrófica. Na realidade (REALIDADE o que é isso?), sou serpente, imune ao meu veneno porque sou venenosa. Sou tão sofrimento que não sofro por quase nada. Mentira.

Preciso dormir. Como é horrível ter que dormir sem ter vindo o sono que fecha os olhos, e mais horrível ainda é ter que abrir os olhos uma vez que você já os tenha fechado, quando finalmente o sono se instalou. Amanhã levantarei cedo, para aproveitar melhor o dia que nada me acrescenta de novo. O tempo passa... tic-tac... tic-tac... tic-tac... tic-tac... tic-tac... tic-tac... tic-tac... tic-tac... tic-tac... tic-tac... tic-tac... tic-tac... tic-tac... tic-tac... tic-tac... tic-tac...

... para meu secreto desespero. Tenho medo de cair no esquecimento pois não tenho registro algum, fugi sem nada. Sou foragida do meu eu para o seu eu. Onde afinal sou? Quem estou eu? Só ouço minha própria respiração em ofegantes e secos suspiros sequenciais, que tapam meus ouvidos para possíveis respostas as questões intragáveis que fazem minha cabeça doer e tirar meu sono que me é tão raro e precioso como... Como o próprio sono e sua maravilhosa capacidade de proporcionar sonhos. Só ele. Resta- me ao menos sonhar que estou dormindo para poder sonhar. Vivo pesadelos.

Acendo um cigarro. Trago o cigarro a boca, e trago. Trago, e trago... Ainda estou acordada? ...Aí!...

... Que merda! Me queimei com a brasa do cigarro.

Sim. Ainda estou acordada esperando a morte disfarçada de sono me embalar. Não suporto mais insônia de vida. Quero carícias. Quero gemidos. Quero suor. Quero o clímax. Quero o prazer da intensidade e da insanidade. Quero te entregar- me. Quero o gosto do cigarro depois da cópula. Por favor.

Mais uma vez... Trago o cigarro a boca, e trago. Trago, e trago... A cinza do cigarro deforma o cinzeiro, mas de certa forma, dá outra forma ao cinzeiro. Deforma, de forma que dá formas. Formou-se-me deformado.

O cigarro me espera pacientemente no cinzeiro deformado enquanto escrevo. Por que eu não sou assim? Sou como sua brasa que queima minha cabeça, em busca de palavras, mas que se desfaz com a fumaça. Minha boca pequena, puxa toda a angústia que o cigarro contêm em seu filtro-me. Mas solto o alívio que o prazer de fumá-lo e de matá-lo me proporciona. Acho que fumo só para não matar alguém, alguém que não seja eu mesma, porque eu, meu cigarro me mata. Meu vício faz aquilo que minha timidez não tem coragem de fazer. Vejo minha morte a cada tragada, vejo minha vida ir a cada arremesso de fumaça através de minha boca e narinas. Mas também vejo minha vida vir, renascer, quando acendo os fósforos, e acendo outro cigarro. Resta-me ao menos voar...

Hoje sinto que vou ser mais feliz, finalmente. Hoje estou péssima não aguento mais fórmulas de física e seu estudo dos fenômenos naturais. Natural sou eu, espontânea, simples. Praticamente natureza morta. Um dia serei surrealismo. Por enquanto me contento com tardes de Domingo chuvosos e cortadores de unha. Não há nada mais depressivo que cortar as unhas dos pés. Tédio, a palavra é essa, tédio. Tão frequente em minha vida como as tardes de domingo que se sucedem após aos sábados. Ao menos há a esperança de uma Segunda- feira avassaladora. Odeio segundas-feiras. Amo quartas-feiras. Não sei, mas quarta é poética, é sexuada, é o feminino do quarto. Quarto é tão intimo, tão introspectivo, tão eu que não sou aberta a visitas. O quarto é a personalidade da pessoa e a pessoa é a Quarta.

No quarto dia, numa Quarta- feira, Deus criou o Sol, a Lua e as estrelas. A partir dos astros poderíamos nos basear em norte, sul, leste, oeste, sabermos localizações Físicas ou não só Físicas de onde estamos. Caio eu novamente na matéria física. A partir da Quarta-feira criadora dos dias e noites, podemos saber quando se brilha Aurora e quando se escurece Crepúsculo. Foi numa Quarta-feira que nasci. Junto com a força positiva e calorífera e colérico do Sol, adicionada a reflexão de luz, a mutabilidade e o poder de mexer com marés. Sou Lua feminina. Sou cardinal, composta de estrelas distantes com seu brilho próprio mas lenta pela longa distância a ser percorrida, até me iluminar, o brilho já não é o mesmo, pois perdeu- se no firmamento. Sou toda espacial pois sou nascida de uma Quarta- feira. Minha firmeza é o céu que não é firme. O que me mantém com os calcanhares do solo é a gravidade inimiga da entrega, pois te limita, te puxa para o chão que também não é firme pois a Terra gira duas vezes me deixando tonta. O perigo mora aí, pois se a força que puxa para baixo chamada pelo homem de gravidade, (novamente caio na física, estou começando a me apaixonar por ela.), esta tal gravidade te puxa para uma falsa realidade limitada, pois meu chão não pode ser firme rodando, se roda em volta de si, e se roda em volta do meu Sol criado numa Quarta-feira que me criou. Estou tonta de tanto rodar, caio sempre nos mesmos pontos. Quero ir além. Mas sempre volto, ou contorno ou retorno para meu quarto, numa Quarta estudando física que estuda os fenômenos naturais. Eu posso mais, quero ser outras formas, não quero Ter contornos quero ser pintura impressionista, quero simplesmente causar sensações, dar impressão falsa, ou não, de algo sem explicações, sem porquês, quando se tem resposta perde- se a graça, como nos quadros de Monet quando se observa de relance, num abrir e fechar de olhos, durante este movimento involuntário do seu corpo, piscar, você realmente acredita que seja uma paisagem. Mas se a razão interfere, você para e analisa, você descobre a mágica, perdendo o encanto da arte, você a descobre deixando-a nua com frio. Frio olhar crítico. Podem me criticar eu deixo. Faço tudo o que lhes peço para não fazerem. Mas também não faço.

Gostaria de ser impressionista. Mas o que escrevo é tão direto e explícito como um hematoma depois da agressão física. Não sou oculta.

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