A Garganta da Serpente
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A descoberta

(Pedro Paulo Garcia)

Seu estado era preocupante. Sem comer de verdade há mais de uma semana, sua pele agarrava-se a seu corpo e trazia um matiz azulado que dava a seu camaleão (o único amigo que não conseguira afastar de si) um ar melancólico. Maria estava assim desde que havia feito uma grande descoberta. A descoberta de sua vida. Pensava que era a descoberta de qualquer vida. Não podia contar para ninguém, agora ela era como que a guardiã de uma verdade terrível demais para ser revelada. Talvez alguém fosse capaz de compartilhar este segredo. O qual, agora, a assustava por sua imponderável obviedade e, paradoxalmente, por seu caráter, ao que parecia, impenetrável. A todas as outras pessoas? Ela desconfiava que sim, embora tal hipótese lhe parecesse um pouco fantasiosa.

Se a descoberta, por um lado, justificava sua aparente desistência de uma vida comum (já que era cada vez mais diferente e cada vez menos compartilhada), por outro era a própria causadora de seu estado semimórbido. De fato, sua descoberta não lhe impusera nenhuma das privações que agora vivia. Tal situação revelava a fragilidade que a já inequívoca necessidade de compartilhar seu segredo trazia. Quem acreditaria em alguém em seu estado? Os loucos trazem consigo o maldito privilégio de poderem gritar as verdades que as demais pessoas têm medo de sussurrar. No entanto, tinha convicção de sua sanidade, ao menos de sua coerência e autoconsciência, que acreditava ser o fator diferenciador entre humanos e animais - o que assemelhava os loucos aos seres de vontade e instinto.

Se muitas vezes tinha vontade de sair correndo com as roupas que estivesse (ou não) vestindo há vários dias, com o cheiro que odiava ter e gritar para cada um dos enganados, enganadores sorridentes, a sua terrível descoberta. Em outras, nada parecido com a vontade lhe ocorria, a menos que assim pudesse ser considerada a apatia.

Nos momentos em que sua vontade quase prevalecia sobre a força de seus instintos, força essa estranhamente imposta pela fraqueza de seu corpo, pensava em muitas coisas. Para os mais alegres precisava dizer que sorrir não adiantaria muita coisa, não por muito tempo. Para os mais afoitos queria dizer que toda pressa era injustificada. Para os casais apaixonados devaneava poder dizer que ciúmes, vaidades ou outros mundanismos não eram as atitudes mais inteligentes. Os casais a irritavam especialmente. Com o desperdício de potencial que vislumbravam nos pares de seus olhos felizes, mas ignorantes e desperdiçadores da força do melhor formato de exército que ela conseguia vislumbrar.

Quando saía de casa para colher restos de feira para seu camaleão precisava recusar as esmolas e tentar ignorar os olhares fugidios acompanhados por corpos igualmente fugidios de sua estranha e malcheirosa figura. Em todo esse tempo não tinha conseguido chorar nenhuma vez. Tudo o que ainda havia de parecido com a vida em seu corpo se orientava para pensar que uso dar a sua descoberta. O recurso a palavras pouco lisonjeiras que sempre buscou evitar aparecia como alternativa na comunicação com seus interlocutores desconhecidos.

Quando sentia que não podia mais suportar aquilo sozinha, passava por debaixo de seus cabelos ensebados uma ideia estranha, de que talvez se orientasse por sentimentos diametralmente opostos. Pensava em falar para se livrar de algo terrível - do qual, a rigor, não se livraria. Seria pior? Queria levar outros a sentirem o que estava sentindo? Não podia ser. Às vezes acreditava que contar tudo seria uma grande generosidade, daquelas que veem no excesso se não uma virtude ao menos algo melhor que a omissão. Seria generoso contar às pessoas todo o risco que corriam. Elas precisam saber, pensava até achar que não conhecia ninguém merecedor de compartilhar sua descoberta. Isso se ela soubesse exatamente quão grande esta era. Sabia que era grande, enorme, tinha certeza disso. Por isso sua ética entrava em conflito com a realidade. Não sabia a coisa certa a fazer, só que aquilo tudo estava muito errado.

Seus medos sempre pequenos e constantes, sempre ignorados e incômodos, ora apareciam com a força da maior derrota, ora vestiam-se da ira que a fazia acreditar que não havia medo. Os últimos telefonemas que recebera foram incômodos. Não atendia mas tinha que ouvir a preocupação de seus pais na secretária eletrônica. Desligar o telefone foi a solução paliativa antes que a companhia telefônica decidisse, depois de três meses, agir em definitivo. Decisão esta semelhante à da companhia de água e à da de eletricidade. Cartas não recebia. Suas cobranças não pagas foram resolvidas com alguns carregadores que furtivamente entraram em sua casa para quitar suas dívidas com alguns móveis. Não, não era um sonho, era uma lei estrangeira. Morar em casa própria naquele país estranho ajudou Maria a não ser interrompida em sua prostração.

Percebendo que sua força não seria suficiente para outra coisa, resolvera escrever. Com folhas de papel deitadas no chão compartilhado. Levava a caneta com o mínimo de contato possível capaz de gerar algum texto no papel. Às vezes tinha sono e precisava dormir. Em outras quase se impacientava com seu branco e inoportuno camaleão que não queria sair da folha de papel e que não era particularmente rápido, embora forte - pensava quando desistia de empurrá-lo.

Depois de uma resma e o suspiro final tudo estava resolvido. Era esperar a comunicação olfativa chegar aos narizes menos insensíveis que seus donos. Seu camaleão teria alimento, tornar-se-ia carnívoro, ou melhor, carniceiro. Quando pensava que o processo já havia começado percebia com o maior imediatismo permitido a alguém em seu estado de decrepitude que pensar a desmentia, e que pensar em pensar a desmentia ainda mais. E desistia depois do terceiro meta-pensamento.

Quando seus prognósticos se concretizaram ela foi encontrada por vizinhos quase igualmente famintos. O frio os juntara na casa ao lado. Não era mais possível viver algum tipo de humanidade anterior. Algo como o amor ou o humor ou a ira eram sonhos nas frágeis mentes atraídas pelo cheiro que seus corpos podiam reconhecer. Era o mesmo cheiro que agora exalava de toda a terra, só que agora mais forte. Seus vizinhos mais vigorosos, que conseguiram se arrastar até a dona do camaleão, quase sentiram algo quase vivo e puseram-se a queimar os papéis semianotados com escrita mais suave já vista. Enquanto comiam carne (uma experiência fantástica depois de meses em que sonhavam com comida, em que iam a feira e catavam felizes os restos abundantes, em que viviam felizes em um estado que podia ser definido como a miséria), morriam todos na mesma fogueira que torrava uma quase carne já tóxica de alguém que não pudera salvar suas vidas.

Sua tentativa final, transformar-se em alimento, doar-se antes de transmitir-lhes sua descoberta cabal falhara. De todo os restos de papel não queimados o mais contundente chegava aos olhos de um camaleão feito de luz que talvez pudesse ler as maiores letras escritas no alto da primeira folha: "As Possibilidades do Paradigma Vital Descartado e Conjecturas Relativas a Uma Nova Percepção Quanto aos Desaparecidos".

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