A Garganta da Serpente
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Após o prazer

(Paulo Valença)

1

As luvas azuis. A navalha. O repentino suor na testa larga, do rosto de traços corretos, bonito. O lábio inferior que treme, denunciando-lhe o estado de aflição. As mãos também trêmulas. O suor que agora desce nas faces brancas, pálidas... Ah, tem de se conter. Parar. Está doente, é um anormal. Precisa se dominar antes que...

A voz do quarto conjugado então o chama, libertando-o do perigoso mundo de subjugado à tara que...

- Querido você não vem?

Com a voz mais grossa pelo que sente, ele responde:

- Tou indo.

Fecha a porta. Escondendo os apetrechos utilizados de quando pratica o "ato" e enxugando a testa com o dorso da mão larga se encaminha ao leito, onde despida, a jovem loura sorri, no convite ao pecado.

- Tava demorando...

- É, tava me enxugando do banho.

Ela continua sorrindo, inocente do perigo que provavelmente a espera e, com os braços longos envolve as costas do homem, na convocação às cenas do prazer carnal, na curtição do presente, nesta alta madrugada.

De fora, chega-lhes o som de um carro ou moto cruzando a avenida embaixo.

Logo, saciados os corpos se desgrudam exaustos, realizados, enquanto o homem torna a pensar. Não, precisa se conter! Contudo, seus olhos fixam o pescoço alvo, a veiazinha azul, saliente da jovem que respira devagarzinho, adormecendo.

Entre o desejo e a razão ele se debate, entretanto, sabendo que, à semelhança de vezes anteriores, terminará cedendo... e praticando o "ato".



2

O sargento Manuel larga o jornal sobre seu birô com a reportagem de mais um assassinato, ocorrido durante a madrugada, num edifício na Avenida Herculano Bandeira, próximo a praia de Boa Viagem.

Sim, a reportagem de outra jovem assassinada após (ao que tudo indica) se entregar aos prazeres sexuais. A garganta com a veia cortada, o sangue sobre o travesseiro, o lençol do leito branco. E a indignação da matéria: quem será o "maníaco" que assassina as mocinhas, após lhes usufruir os corpos esguios, bonitos? Com essa morte, a soma já chega a oito as vítimas e a polícia se mostra incapaz de solucionar a "aberração" humana, que reina nas madrugadas da cidade grande. Causa a perplexidade e a revolta da população. Até onde irá tudo isso, sem uma solução prática?

- Puta que pariu!

O soldado Bastião, seu auxiliar de quando em trabalho de investigação, então se volta da cadeira à frente do computador:

- Qual é a "bronca" sargento?

Miguel encara-o e responde, libertando o que sente com o que acaba de saber pelo matutino:

- O "tarado da navalha" voltou a atacar!

- O quê? Tava demorando...

Miguel puxa a cadeira próxima e sentando-se, continua:

- "Tava demorando"... Mas, tornou a atacar as meninas bonitas, geralmente de classe pobre.

O auxiliar após desligar o computador, volta a falar:

- Agora, sargento vamos ter de aguentar outra vez a imprensa contra nós e, até o governador também, interferindo, se defendendo. Ah, se a gente pegasse esse safado...

- Ele iria comer da "banda podre!".

Silenciam, entregues às reflexões de como fazer para conter os crimes, prender o "tarado da navalha", livrar a sociedade desse verdadeiro filho do demônio.

Sim, pensa Miguel. Ele e o Bastião se entregarão às investigações e, numa hora obterão o sucesso com a prisão do "maníaco".

- Numa hora, a gente pega o safado!

- Pois é, sargento. Tudo na vida tem uma hora, um fim, e o carinha cairá!

Aí se erguendo apressado Bastião pega o jornal sobre o birô para ler com atenção a matéria do crime, que como sempre, ocorreu pela madrugada.



3

O homem grande está adormecido, após as cenas sexuais com a jovem morena, que se ergue devagar da cama, para não o despertar.

Afinal, foram muito quentes aquelas posições... Sorri maliciosa, lembrando-se.

De pé ao lado do leito, fita-o numa análise crítica. O cara é alvo, alourado, magro, alto, o rosto de traços corretos, tipo galã americano, bonito. Mas, ela que é uma menina "vivida", apesar de seus 18 anos, sente que há qualquer coisa errada nele que a previne, como se lhe fosse um "aviso"... E, quando "sente" isso, geralmente se engana. Acontece. Contudo, pode-lhe ser tudo uma falsa impressão. Bom... Agora, tomar aquele banho para ficar em ordem e daqui a pouco sair com o parceiro de prazer, deste quarto. Onde estão mesmo? "Esperta" pela luta de enfrentar a vida difícil de "garota-de-programa" observou bem o endereço: Rua Visconde de Correias, 41, Candeias, em uma casa afastada do centro da cidade.

A madrugada vai alta.

- Bom...

Aí vê a pasta preta na mesinha próxima à entrada do banheiro. Será o cara um industrial, vendedor ou um executivo? Curiosa como toda mulher inteligente, então se aproxima da pasta, querendo saber, descobrir.

Abre-a, procurando não fazer barulho e vê sobre papéis o par de luvas azuis, e a navalha prateada, fina, longa.

Perplexa ante a descoberta, fecha a pasta e trêmula, se volta ao leito, para se certificar de que o outro continua dormindo. Está. Suspira baixinho, enquanto no cérebro se lhe desenham as manchetes lidas nas colunas policiais, com as quais segue com interesse há meses. "Nova vítima do maníaco da navalha". "Adolescente é morta pelo tarado da navalha". "A polícia continua a busca do maníaco"... As mãos tremem. O suor molha-lhe as costas desnudas. E assim nesse estado de espírito ela entende. Fez amor com o assassino, o "maníaco", o "tarado" que após amar as jovens, as assassina, cortando-lhes a veia do pescoço com a maldita navalha! Determinada como sempre, então toma a decisão de se comunicar pelo celular, com a polícia. Dizer o que sabe e suspeita.

Corta em passos cautelosos o ambiente do quarto e, no banheiro, abrindo a bolsa que conduz ao ombro quando sai em busca do próximo amante, retira o celular e disca. Denunciando. Em seguida, rápida se veste e deixando o banheiro e o quarto, encaminha-se à sala conjugada, onde abrindo a porta, e lá fora, na calçada oposta à residência, espera os policiais.

Nervosa torna a discar:

- Como é vocês vem ou não vem? Tá certo. È ele tá dormindo, tomou umas doses reforçadas... Mas, pode acordar e não me vendo, descubra tudo e caia fora! Ok, tudo bem.

A madrugada vai alta. Aqui na calçada e também na outra defronte à casa, ninguém passa. Até mesmo os veículos não transitam. Reina o grande silêncio de uma falsa quietude. Sim, porque ali, naquela residência há o mal que dorme (dorme?) e que pode de repente despertar.

A zoada de um carro se aproximando.

A moça se vira e reconhecendo a viatura diz baixinho, num alívio, em desabafo:

- Graças a Deus!



4

- Sargento, agora a gente pode festejar: o "tarado" tá engaiolado.

O homem negro, baixote, gordo, sorri, aquiescendo:

- Pois é, Bastião. O "maníaco" tá seguro! Eu bem que dizia que numa hora, ele seria pego.

Bastião enche os copos de cerveja e após tomar um gole longo, provando-a:

- É, pra tudo nesse mundo, tem à hora certa. E, o que se faz na terra, aqui mesmo se paga.

O sargento então mais uma vez se lembra do celular com a denuncia da voz trêmula da "menina-de-programa" e da pressa dele em ir com o Bastião e mais dois soldados ao local indicado. A prisão do sujeito branco, alourado, alto, magro. A pasta preta sobre a mesinha, com as luvas, a navalha. E o mutismo do cara na confissão sem palavras. Tudo enfim, solucionado. Tudo!

- O senhor vai querer o quê de tira-gosto chefe?

- Peça camarão fritado.

- Tudo "joia".

O braço se ergue e a mão aberta acena, chamando o garçom.

- Pra tudo tem a hora certa, Bastião.

- É, o senhor tá mais do que certo.

Solícito o garçom se achega.



5

Três meses depois.

A mocinha exausta pelo amor praticado, vê de repente, a mão enluvada com a navalha aberta e, perplexa, sem ação, recebe o golpe rápido e certeiro que lhe atinge a veia do pescoço. Então sua viste se escurece e, tremendo seu corpo tomba para trás para aos poucos, contorcer-se e se aquietar.

Frio, analítico, o sujeito forte, mulato fecha a navalha. E retirando as luvas guarda-as com a navalha na pasta preta. Por instantes, prende a atenção ao corpo moreno, despido, com o sangue que saindo em golfadas fortes da veia, inunda o travesseiro e o lençol branco do leito.

- Essas putinhas...

A voz grossa, sussurrada, como numa justificativa ao terrível "ato" praticado. "Ato" que agora se renova por meio de outro "tarado da navalha".

Fora, a madrugada mais uma vez cúmplice, vai amadurecendo para ser substituída pelo novo dia.



6

- Quando eu pensava que a navalha estava aposentada, que os crimes não mais ocorreriam... Aparece agora outra menina morta!

A voz aí se eleva. Num grito de protesto:

- Puta merda!

O subalterno Bastião fita o sargento, sem nada dizer. Entende-o. Tudo recomeçará! As manchetes. As cobranças no meio de comunicação. O governador irado, convocando-os. A repercussão da opinião pública... O inferno novamente. Até quando tudo isso continuará?

O sargento Miguel nada mais comenta, e, assim calados, se voltam às reflexões, que são angustiantes.

Sobre o birô do sargento, o jornal aberto exibe a manchete com a foto da morta, do leito, do quarto e a reportagem detalhada.

Detalhada. Bem detalhada.

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