A Garganta da Serpente
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Passos da vida

(Paulo Valença)

O pai alto, magro, o andar de pernas em arco, apressado, a voz grossa, o sorriso fácil no rosto avermelhado, queimado pelo sol do serviço no campo, chegando à noitinha, na égua bem-tratada, com o cachorro "Trovão" acompanhando-a. Sua mãe no alpendre, esperando-o. O rosto moreno sereno, os cabelos negros, longos, o silêncio compreensivo naquele companheirismo de anos. O céu estrelado. Ele, menino também ali no alpendre.

O animal parava, o pai desmontava sem pressa.

- Tudo bem por aqui, Josefa?

A voz da mãe era também calma ao responder:

- Tá, tudo na paz de Deus.

O pai com o cabestro da égua na mão, então, se voltava para ele:

- E a bênção, se esqueceu?

- Bênção pai.

- Deus te faça feliz. Tome esse cabestro e solte a "Castanha" no pasto.

Conduzindo a égua pelo cabestro ele então se encaminhava a área atrás da casa, onde havia o açude e o terreno às margens deste, com o capim, o juazeiro e a cerca que o limitava da propriedade vizinha.

Banhava a montaria e soltando-a, retornava a casa, onde na sala à entrada, o pai sentado num tamborete lavava os pés na bacia.

Da cozinha chegava o cheiro da carne sendo assada. Cruzava a sala, o corredor, a outra, e adentrava na cozinha.

A mãe a beira do fogão - a - barro encontrava-se, com a atenção à frigideira com a carne.

Sem se voltar, ela inquiria:

- Soltou a "Castanha?".

- Soltei mãe.

- Deu banho nela?

- Dei.

- Vá chamar o Júlio que o comer tá pronto.

Apressado retornava a salinha:

- Pai, mãe mandou chamar pra jantar.

Em silêncio o homem grande erguia-se e encaminhando-se a mesa, logo se alimentava cabisbaixo, voltado ao próprio mundo íntimo.

Respeitando-lhe o mutismo costumeiro, ele e sua mãe também se conservavam calados.

De fora, um cachorro ladrava nas proximidades, e o "Trovão" também, como se entre ambos houvesse um diálogo.

- Diabo de tanta zoada!

Protestava a voz grossa, e a mãe:

- Deixa os bichos se falarem, Júlio. Vai ligar pra isso?

- É você tá certa. Me passe aí a macaxeira.

Comia com prazer, ligeiro. Pela janelinha ao lado, o vento entrava sem cerimônia, agasalhando as faces, numa carícia.

De repente, a mãe ousava quebrar o silêncio entre eles:

- Como tá o terreno de cima, Júlio?

Sem erguer a cabeça, o pai respondia:

- Fiz a "queimada" e pra semana começo a plantação do milho.

- Sim, tá na hora mesmo.

Calavam-se. Ele se limitava então a ouvir, gravar o que percebia para, sem saber, numa hora, um dia, se lembrar. Com saudade se lembrar...

- Pai está muito magro.

Diz a moça à mãe, na sala, onde estão nos sofás, conversando, uma à frente da outra.

- Depois que seu pai teve o derrame emagreceu muito... Passa a maior parte do tempo aí na cadeira, nessa varanda, cochilando, calado.

A filha voltando à atenção a varanda conjugada, mais uma vez analisando a figura envelhecida, maltratada pela enfermidade, torna a falar:

- E ele que era tão alegre! Ninguém é nada mesmo não...

- Pois é. E saber que tem gente que se julga, sem saber o dia da amanhã, as traições do destino!

A jovem sorrindo:

- Gostei da frase, mamãe: "As traições do destino!"...

Então se erguendo:

- Deixe-me ir cuidar da vida. Ainda tenho de passar na firma do Haroldo... Vou falar com o pai.

- Vá, Luciana.

Esta assim procede. Vendo a filha esguia, graciosa, deixando o ambiente, a senhora de repente, sente uma "coisa"... Não, agora Não! Basta de sentimentalismo. Precisa ser forte, encarar a vida com mais realismo. Altivez.

No terraço, Luciana para o velho (que cochila?):

- Pai?

Os olhos se abrem, o sorriso antigo (querido sorriso!) iluminam o rosto cortado por rugas e a voz rouca, baixinha:

- Sim? Já vai Luciana?

- Já pai. Depois venho com mais calma.

Abaixa-se e, com a mão bem cuidada, de longos dedos, afaga numa carícia, a cabeça alvinha pelo tempo.

- Tchau, pai.

- Até, filha. Vai com Deus.

Apressada, a moça deixa-o novamente sozinho, ou melhor, em companhia das lembranças, que fazem o seu mundo de quem aos poucos, se ausenta de tudo. Tudo.

Resignado, cadenciando-se, cerra os olhos.

No oitão vizinho, os passos determinados vencem os degraus, de volta ao cotidiano nervoso da cidade grande.

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