A Garganta da Serpente
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Maquiagem

Plínio Zúnica

Diante do espelho, o ar carregado do vapor do banho, maquiou-se como uma boneca francesa. Caprichou no blush das bochechas e abusou do lápis e do rímel, para criar um clima noir. Em seguida, com a tesoura pontiaguda, cortou os cabelos. A mão trêmula deixava a nuca exposta, a franja irregular, um talho na orelha. Olhou-se, sorriu, abriu a lâmina e delicadamente lambeu com o aço afiado a lateral macia do rosto. Sentiu o sangue escorrer, um arrepio gelado tomou-lhe por dentro. Tremeu, balbuciou um choro e fez o segundo corte, uma ponte entre o canto esquerdo da boca e o maxilar. O último toque foi uma incisão delicada por baixo da pálpebra, que contrastou magnificamente com o azul tirquesa de sua íris lacrimejante. A tesoura,livre no ar, atingiu o chão com o som de um milhão de sinos. Abriu a torneira, molhou a ponta dos dedos e tornou a fecha-la. Com a palma da mão, espalhou o sangue sobre a face, pescoço e peito. Um choro convulsionado subia-lhe pela garganta, tomando de assalto as pernas, que bambearam, um pouco sob o efeito do álcool, um pouco por causa da dura sensação da realidade suja, e lhe puseram de joelhos no azulejo manchado de gotas vermelhas. Nua por baixo da toalha, sentiu o calor pegajoso do sangue que lhe cobria o corpo. Recompôs-se. Abriu um vidro de perfume - presente do canalha - e despejou Chanell nº 5 sobre as feridas, que queimaram ao toque do álcool odorizado. O grito foi forte, mas inaudível - explodiu na garganta e desceu de volta ao coração, que batia saudável, apesar da dor que lhe corroia o sentido poético. Com um lenço úmido, retirou o excesso do rubro mel que lhe escorrera das feridas carnais, misturandoo sangue e as lágrimas á maquilagem recém feita. Olhou-se no espelho e riu, primeiro um sorriso tímido, depois uma gargalhada quase histérica, mas parou quando se sentiu ridículamente teatral. Deixou o banheiro ensaiando uma valsa solitária, contendo um riso infantil.

No quarto, vestiu seu melhor vestido de festa, tirou a aliança do dedo e guardou numa pequena caixa de papel, junto dos recém-descobertos bilhetes apaixonados da tal "gatinha manhosa".

Uma última olhada no espelho, Satisfeita, pegou as chaves do carro e partiu para a festa de natal na casa da sogra, onde ele provavelmente já deveria estar bêbado. Por via das dúvidas, colocou na bolsa a tesoura, ainda manchada de sua dignidade matrimonial. A noite promete ser longa.

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