Acabo de acordar...o gosto do cigarro da madrugada amarga minha boca... O rádio
toca coisas que não tocam nem acordam... Tento sentar em minha cama,
o sono é tamanho, pesado... Coloco minha meia no pé direito, minhas unhas estão
largadas, elas furaram minhas velhas meias... A mesma calça... A mesma
camisa de ontem à noite, como sempre amarrotada... No banheiro meu rosto cinza lavado, olheiras que coleciono há
vários anos... O mesmo sorriso amarelo de sempre... Me posto a acordar...
Não acordo... Descer as escadas ainda é difícil, lembro
da primeira queda, embriagado... Um pé, depois o outro... Um pé,
depois o outro... Degrau a degrau... Enfim a cozinha... Dentro de cada armário
o mesmo vazio... O mesmo gosto amargo do cigarro da madrugada... As mesmas panelas
sujas da semana passada... Ainda não as lavei... Não pude... Estava
ocupado... No canto da pia um cinzeiro limpo... Que bom... Algo está
para pronto uso... Água fervente sobre o café solúvel...
Com muito açúcar... Não tem... Amargo...Um amargo arenoso...
picante... Acho que acordei... Ainda não... A pasta de dente... O café...
Nada tira o gosto amargo do cigarro da madrugada... Apenas outro... acendo...
O sabor da fumaça não é mais aquele agradável...
Continua amargo, menos que o da madrugada... A cada trago uma nova energia adentra
meus pulmões... Brinco com a fumaça... anéis de fumaça...
brincos... argolas... Está na hora... O trabalho me aguarda...
- Que trabalho?
- Quem está aí? Quem entrou na minha casa?
- Não. O Sr. não está em casa... está no hospital...
O mesmo sabor do cigarro... Não fosse estar indo para cirurgia... É
minha última chance diz o Dr. ... É algo simples: irão
retirar parte do tumor... É um pequeno nó na minha garganta...
Um pequeno câncer que domina parte do meu corpo... E o mesmo gosto amargo
do cigarro da madrugada...