Passava do meio-dia quando Lourenço Araújo desceu do ônibus
na pequena rodoviária de Nova Era. Retornava, depois de seis meses de
saudades, à sua terra natal. Estivera em Buenos Aires realizando estudos
sobre medicina com seus colegas de profissão. Agora , voltava à
rotina. Continuaria, como sempre, cuidando dos amáveis pacientes de sua
cidade e recebendo o mísero salário mensal que o Hospital Municipal,
na verdade o único ali existente, pagava pelos seus preciosos serviços.
Mas os olhos de Lourenço irradiavam felicidade. E não era para
menos: uma pessoa muito importante o esperava.
A cidadezinha continuava a mesma, com suas casas e dois ou três prédios
esparramados pelas margens do rio, com suas ruas de blocos onde circulavam carros
e charretes puxadas por belos cavalos. Havia também mulheres levando
balaios à cabeça. Eram as conhecidas verdureiras da região,
que ganhavam a vida vendendo o que plantavam nos arredores da cidade ou mesmo
nos fundos dos seus quintais.
Lourenço chamou o primeiro táxi que avistou. Ajeitou sua maleta
no banco traseiro e ocupou o lugar ao lado do motorista. Este era quase careca.
Somente uma penugem de cor avermelhada continuava por sobre as orelhas de abano
e contornava por trás da cabeça, formando um meio-círculo.
- Toque para o Aleixo, Lourenço ordenou ao motorista, que se limitou
a balançar a cabeça.
Atravessaram a ponte sobre o Piracicaba, passaram pela praça Sesquicentenário,
pelo Minas Clube, entraram na via asfaltada que levava ao Aleixo, um vilarejo
encravado entre as montanhas a dez quilômetros de Nova Era, parando, finalmente,
perto da porteira ao lado da rodovia. A partir dali, Lourenço teria que
seguir a pé através do caminho de terra batida. Após entregar
duas notas de mil novinhas em folha ao motorista, que por sua vez se apressou
em guardá-las, pegou sua maleta, atravessou a tronqueira e começou
a descer pelo pasto.
Lourenço, apesar de haver ficado apenas seis meses fora, sentia como
se estivesse renascendo. A brisa suave da tarde, o cheiro da relva, do alecrim
e do estrume o faziam sentir-se reconfortado, penetravam-lhe pelas narinas,
dando-lhe novo ânimo. Gostava de apreciar aquelas tão belas e verdejantes
pastagens. Ali, sentia completa paz de espírito.
Seus devaneios tomaram novo rumo. Começou a pensar em Maria, a moreninha
de dezenove anos, linda, instruída, de olhos esverdeados e movimentos
graciosos, filha do dono daquelas pastagens. Começaram o namoro na fazenda
dela, há coisa de um ano. Maria perrengueara e mandaram chamar o doutor,
que ficou à sua cabeceira durante três dias, ao cabo dos quais
a moça melhorou. Mas, no decorrer do seu restabelecimento, um sentimento
muito forte brotou e cresceu dentro do peito de Lourenço. Maria não
era diferente e olhava-o com ternura, dizendo que o amava. Os pais dela aprovavam
o relacionamento. Sabiam que o moço era pessoa de bem, honesto e trabalhador.
Porém, Lourenço teria que se ausentar durante alguns meses, por
força da profissão. Sua amada o esperaria.
- Na volta trarei nossos anéis de noivado, querida.
- Sofrerei muito com a sua ausência, reclamou ela, apoiada aos ombros
dele.
- Queria levá-la comigo, mas os estudos deverão me ocupar todo
o tempo. Assim, prefiro deixá-la aqui, onde terá o calor de sua
família.
- Promete pensar em mim, Lourenço? Indagou ela, os olhos fixos nos dele.
Juro que o esperarei.
Um longo beijo selou o juramento. O rostinho alvo de Maria se encheu de lágrimas,
seus olhos se transformaram em fonte chorosa. Lourenço se esforçava
para não soluçar. Partiu naquela noite. Os seis meses foram como
anos, mas ele cumpriu sua missão e volvia, confiante.
Ao passar pelas quatro casas dispostas a trezentos metros da fazenda, Lourenço
sentiu sobre si os olhares dos moradores. Dentro em pouco, todos saberiam de
sua chegada e iriam cobri-lo de perguntas. Lourenço imaginava como Maria
o receberia: cairia em seus braços, trêmula, beijar-se-iam, murmurariam
frases tanto tempo guardadas... Em poucos minutos, envolto nesses pensamentos,
chegou ao terreiro, abriu o portão da varanda e entrou. Dona Helena,
a mãe de Maria, gorda como nunca, apareceu antes mesmo que a chamasse.
- Doutor Lourenço, mas que surpresa! Exclamou de sorriso nos lábios,
mas o rapaz, impaciente, queria saber de Maria.
- Minha filha virou a cabeça, doutor Lourenço, disse ela, já
desfeito o sorriso que antes se lhe aflorara aos lábios.
- Que aconteceu?
- Chegou aqui um rapaz, três meses depois que o senhor partiu. Chama-se
Luís Gomes. Os dois se conheceram, veio logo o namoro e não se
separaram mais. Aconselhamos a danadinha em vão.
- Será possível? Murmurou o rapaz, lívido, como que assombrado.
Onde... onde eles estão agora?
- Já devem estar vindo embora. Foram fazer compras na loja do seu Manuel
Braga, aquele português senil que adora esfolar os fregueses e nunca se
contenta com o muito que tem.
Lourenço desceu os degraus da escada que dava para o terreiro e rumou
para a loja do seu Manuel. Passou rapidamente pelo moinho do Zeca, chegou ao
outro lado do Córrego Preto e continuou pela trilha do gado. Estacou.
Viu o casal, bem longe, vindo ao seu encontro. Eles também pararam. Não
porque o viram e sim devido a uma curva que o caminho descrevia para a direita.
Lourenço deduziu que a casa do rival devia ser daquele lado. Ali eles
se separariam e ela continuaria sozinha até a fazenda. Após um
beijo apaixonado que deixou o inconsolável médico fulo de raiva,
Luís Gomes seguiu seu caminho. Só então Maria veio ao seu
encontro. Andava absorta, murmurando uma canção, tanto que se
assustou ao deparar com o "ex" ali, à sua frente.
- Lourenço! Quase gritou, espantada. Quando chegou? Não esperava
encontrá-lo aqui.
Pelo olhar dele, Maria percebeu que já lhe haviam, e com detalhes, contado
tudo. Para Lourenço, era como se aquilo não passasse de um sonho;
pensava que ainda estivesse no meio da viagem, dormindo sossegadamente; que
chegaria, encontraria Maria a esperar impaciente e que seriam felizes... Emudecido,
voltou à realidade imutável. Ideias sanguinárias
passavam-lhe pela mente, queria estrangular Maria, com aquele seu corpinho frágil
e delicado.
- Já sabe de tudo, Lourenço? Indagou ela, retorcendo as mãozinhas.
- Sim. Sua mãe me contou.
- Esperei muito tempo. Até chorei muito. Após dois meses, percebi
que tudo fora fruto da minha juventude. Era amor de adolescente que sentia por
você. Então, apareceu esse rapaz, o Luís, e fiquei gostando
dele, gostando muito, sabe, Lourenço?
- Mas você jurou... disse ele, como que hipnotizado só pela presença,
pelos gestos dela.
- Vamos para casa, Lourenço, antes que anoiteça. Lá poderemos
conversar mais à vontade.
Fizeram todo o percurso de volta. Maria explicava ao médico com tanta
simplicidade, tanta candura, que Lourenço já cria que os dois
se amavam realmente. Percebia agora, passado tanto tempo, o que lhe havia passado
desapercebido desde o início.
Pararam defronte a casa da moça e Maria o puxou pelo braço. Ele
ainda forcejou , depois entrou com ela até a varanda e chegaram à
sala, mobiliada com grandes sofás e uma mesa, maravilhosamente talhada
em madeira de lei, ladeada de cadeiras de espaldar alto. No centro da mesa,
um belo vaso de flores. Os irmãos de Maria já se encontravam em
casa e o pai retornava do curral naquele momento. Trouxeram café, serviram
e pediram-lhe que falasse de suas andanças pela capital Argentina. Assim
rodeado por aquela gentil família, sua dor parece ter sido abrandada,
se não muito, pelo menos em parte, tanto que ele começou a relatar
sua aventura, as pessoas que conheceu... Maria olhava-o, interessada, e creio
que um pequeno vestígio de esperança inda mordiscava o coração
do pobre médico. As horas foram passando e já deitava o sol, quando
finalmente Lourenço resolveu ir embora. Antes, porém, entregou
um pequeno embrulho para Maria. Ela, afoita, rasgou o papel colorido e retirou
imediatamente o pequeno relógio, surpresa.
- Mas... é de ouro!? Nunca recebi nada igual em toda minha vida! Exclamou,
maravilhada. Colocado o fino relógio no braço, Lourenço
achou que fora feito exatamente para ela. Ficava lindo, em contraste com sua
pele morena.
Lourenço se ergueu, despediu-se de todos e saiu. Maria acompanhou o rapaz
até a porta, agradeceu mais uma vez o presente, disse-lhe palavras carinhosas,
que voltasse sempre. O moço estava arrasado, mas já compreendera
tudo, como médico que era.
Caía a noite, Maria foi para seu quarto; não queria ouvir as constantes
recriminações da família. Da janela ainda avistou Lourenço,
ao longe, com os braços pendidos ao longo do corpo, os ombros caídos
como um velho. Sentiu pena, mas sabia que ele se recuperaria, era uma pessoa
muito forte. Antes que ele se perdesse na curva do caminho, ela viu seu braço
se levantar. Só não percebeu a caixinha que ele atirou bem longe,
a caixinha com as alianças que comprara.
Lourenço sabia, agora, que Maria sentira por ele apenas gratidão,
gratidão pelos cuidados médicos que lhe dedicara. Era somente
agradecimento desde o início, nada mais que isso. Ela, inexperiente,
não percebeu tudo no começo, mas a partida dele clareou suas ideias.
Ela simplesmente acreditara que fosse amor, mas depois caíra na realidade,
como sempre acontece nesses casos.
Lourenço, entretanto, estivera tão doudamente apaixonado que não
considerou o que aprendera na Faculdade de Medicina. Muito longe de admitir
tal possibilidade, ele não percebeu que fora tudo um caso de transmissão.