A Garganta da Serpente
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Sobre o Amor

(Ricardo A de Lima)

Os olhos vermelhos na escuridão. Calmos, serenos, flamejantes, como fogo. Sim, pareciam dois pontos, duas pintas de fogo, duas fogueiras acesas no meio do nada, da escuridão, do vazio.

Como se fosse um bicho, saiu do meio do mato onde estava. Era alto, cerca de 1,85 cm de altura. Pele bem clara, quase albino. Ausência total de cabelos no corpo. Magro, bem magro. Dava para contar suas costelas de longe. Aquela escada de ossos no seu abdômen. Seu pomo-de-adão subia e descia frenético. Suas mãos tremiam. Parecia sentir frio. Boca fina. Olhos vivos, ainda pegando fogo. Pés descalços. Unhas brancas. Dentes brancos. Apático.

Diante dele, ao lado do pequeno bosque mitológico cortado por uma estrada asfaltada, uma planície bucólica demais para o Amor. Primeiro colocou sua cabeça para fora da mata. A lua, então cheia, brilhou na sua careca lisa, mostrando quão branca era sua pele. Ninguém por ali. Saiu ainda com medo - ou seria receio? ou seria loucura? - e foi iluminado pela luz prateada do luar, revelando seu corpo nu. Nenhum orifício, nenhum membro fálico. Nem mulher nem homem. Andrógino.

Saiu e correu curvado pela estrada, pisando em pedras e pequenos insetos. O pé, ora sujo, ora machucado, se contorcia. Os olhos baixos, as mãos protegendo a cabeça de algo que não sabia o que era. Medo fanático, rosto fantástico. Mesmo feio, era belo. Mesmo sem cor, era arco-íris. Mesmo nu, era realeza. Mesmo mudo, gritava com os olhos que saltava em fogo.

Correu até a planície, e lá deitou na grama. Observou a lua e ficou deslumbrado com a beleza do céu. Não sabia que o firmamento era espelho.

Até que ouviu um barulho. Uma espécie de automóvel, sem luz e sem cor, vindo pela estrada. Roncava - ou urrava? - estridente. O ser andrógino - ainda sem nome - correu pela planície em desespero. Dentro do carro, dois sorrisos - medrosos? loucos? - soltavam gargalhadas e gemidos. De um lado um homem, meia idade, cabelos grisalhos, pele cuidada e olhos cansados. Do outro, uma mulher, cabelos negros e olhos cor de céu de noite. Mãos balançavam pela janela. Mãos dançavam pelas peles dos dois. Bocas e mãos se encontravam em lugares promíscuos. Sexuais. Fálicos e orifícios desconhecidos para o ser que corria - com medo e loucura - pela planície iluminada pela lua.

Corria desesperado, como um homem fraco corre de um demônio que deseja ardentemente destruir sua santidade. Corria feito pássaro, como demônio que foge de um santo munido de cruz. Corria como Jesus não correu. Corria como Romeu correria. Correu como anjos no Dia do Juízo. Correu feito a morte.

O casal no carro estranho começou a gritar mais alto. Queriam alcançar aquilo que não enxergavam. Não viam o vulto branco de olhos de fogo correndo pela planície. Não viam uma luz prateada sobre a careca pálida. Não enxergavam nada. E quando o homem se debruçou sobre a mulher e disse duas palavras no seu ouvido, fazendo-a chorar duas breves lágrimas, o fogo nos olhos do ser andrógino se apagou. Ele mesmo não via mais nada. Ele mesmo não enxergava mais lua nem estrelas, nem a escuridão do céu nem o verde da planície. Não enxergava nem a si mesmo, nem sua insanidade, nem sua doçura. Não enxergava mais a vida e a morte.

Gritou um grito mudo medo - ou seria de receio? ou seria de loucura? -, caiu de joelhos no chão. Ouvia o carro se aproximando. Ouvia os gritos de loucura - ou seria de medo? ou seriam de receio? - chegando cada vez mais perto. Sentiu um breve calor na pele. Pensou que poderia ser o sol nascendo. Pensou na vida que poderia ter, pensou no sonho que poderia ter. Pensou no sentimento que poderia ser.

O casal continuou não vendo o ser andrógino com os olhos sangrando ajoelhado na planície. Nem mesmo quando sua cabeça nua e lisa tocou no pára-choque do estranho carro, fazendo um baque estridente de dor e sangue. Não ouviram nada, nem mesmo quando as rodas do estranho carro passaram por cima do corpo nu e branco. Não olharam para trás quando o carro passou por ele, largando-o deitado, corpo branco e vermelho, sob a luz de um luar que testemunhou tudo.

Em seus olhos uma última chama, pequena e breve, incendiou e se apagou, apagando seu resto de quase vida. Ainda abertos, seus olhos pareciam fitar o alto, a lua, o céu negro. Ainda abertos, seus olhos eram poças de sangue, onde houve, um dia, fogo. Agora, cegos - seria de medo? de receio? de loucura? - fitando o vazio. Cegos... para sempre.

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