(Para Daniel Sena)
Ele havia saído e deixado a porta aberta. Não tinha percebido.
Só percebi na manhã seguinte. Não havia sobrado nada dele.
Apenas o cheiro pela casa. E o cheiro entrava em cada canto, em cada grão
de pó. Sentia seu cheiro até mesmo na água. Estaria ficando
louco?
Seis meses. E ainda ouço seus passos pelo apartamento vazio. Eu, coberto
de miudezas de mim mesmo, não me refiz. Busquei, acreditem. Mas nada
restou de mim. Ele levou tudo. Não deixou nada para que eu pudesse me
regenerar. Nada que pudesse voltar a ser. Não sou um lagarto. Pedaço
amputado não cresce de novo. E olhando essa porta agora, já fechada,
trancada com três trincos, percebo que ele me matou. Em mim, a ausência
total de esperança. Certeza da não felicidade. É exatamente
isso que vejo no espelho: uma caveira, com olhos fundos, negros. Onde está
meu azul? Pele pálida, quase amarela. Cabelos mais opacos. Sem sorriso.
Sem brilho. Por vezes, acredito que nem mesmo um rosto eu vejo. Penso: do que
a vale a vida se não for feliz? E penso mais: como ser feliz se não
posso fazer alguém feliz? Descrente. Mudo. Resigno-me e me calo. Fecho
a 4ª tranca e olho para o apartamento oco. Um vento sopra pela janela
aberta. As cortinas dançam um balé tosco. Penso em voar. Vejo
as nuvens, as estrelas. Ah, as nuvens. Queria elas nos pés. Deixo para
amanhã. Não, amanhã não. Amanhã é
terça. Deixo para o fim de semana. Sim. Domingo é um bom dia para
se alcançar as estrelas.
Ah... essa doce pseudoesperança que não me deixa dormir...
Vamos? Não. Por quê? Sem ânimo para isso. E decidi fazer
umas coisas aqui no apartamento nesse fim de semana. Ah, deixa para domingo
à noite. Não dá tempo? Na verdade dá, mas... Então!
Faz sua mala. Arruma suas coisas. E passo te pegar. Às oito. Tá.
Se anima!
Penso ainda hoje: como pode um sorriso ser tão bonito?
Mistura de brilho, espelho, céu estrelado, sol, aurora boreal, arco-íris,
tesouro dele, céu azul, mar. Apenas veio do nada, me encontrou morto
e...
...se aproximou de mim Vitória e pegou meu braço e me segurou
tão forte tão forte e tão forte me beijou que senti uma
coisa louca mágica aquele beijo gosto de fruta madura sabe igual morango
eu acho sei lá só sei que ele era lindo cabelos castanhos olhos
me olhando e achei que era brincadeira mas foi ficando sério e ele foi
se chegando chegando e chegou-chegando com tudo e me pegou de jeito depois de
chegar e parece que me segura até agora e não larga sabe não
sei se você entende o que eu digo mas ainda sinto ele me beijando com
lábios tão doces como fruta sua língua me explorando me
querendo me buscando e eu anestesiado queria mais ele e ainda quero e ainda
desejo e ainda sonho e ainda sinto aiii que eu não me aguento Vitória!
E no demorar dos dias, no arrastar-se das horas, lá está você,
que me espera, como um fim de semana; que me liberta na sexta e me liberta no
domingo à noite me prendendo a mim mesmo, ausência de ti, preenchido
de ti. E no final dessas horas encontrar você que me espera, "no
fim destes dias encontrar você que me sorri, que me abre os braços,
que me abençoa e passa a mão na minha cara marcada, na minha cabeça
confusa, que me olha no olho e me permite mergulhar no fundo quente da curva
do teu ombro. Mergulho no cheiro que não defino, você me embala
dentro dos seus braços [...] e você me beija e você me aperta
[...] e você me aquieta repetindo que está tudo bem, tudo, tudo
bem." (****** ABREU, Caio F. "Anotações sobre um
amor urbano". In Caio 3D: o essencial da década de 1970.)
E, por Deus, como está tudo bem, pois eu estou, e você? Também?
Que ótimo saber disso. Mas saiba que só estou bem porque estou
com você nessas horas quebradas de solidão assassina, de ausência
anuladora, de cheiros, de gostos, de toques do ar. De morangos silvestres.
Não era seu coração que estava quebrado. Era seu ser total,
completo, uma vez que, partindo, olhou para trás deixando lá sua
essência. Sua alma jazia solitária na capital, dormindo em varandas
e sereno, esperando a misericórdia de seres sem misericórdia
para comer e beber. Frio. Sentia frio durante as noites. Nenhum sorriso, nem
abraço. Nada. Só o sereno escuro, o orvalho noturno, as estrelas
que, distantes, pareciam zombar dele.
Não era o meu coração que estava quebrado. Era eu completo,
uma vez que, partindo, me deixei atrás, contigo, enquanto voltava para
a triste realidade que ainda chamo de minha vida. Vida ruim, mas levemente
colorida, por você.
Cara, você não existe! Existo sim, você que nunca tinha
me encontrado.
Silêncio. Dias de silêncio.
Há dentro de mim um verme maldito que consome célula por célula
da minha pele, órgãos e tecidos todos. Entra nos meus ossos, dança
nas minhas veias. Seleciona o melhor do eu somático e devora, sem piedade.
A dor é física. O verme é real. E seu nome é saudade.
E lá vem você, sorrindo quase dourado de tão claro que é.
Me lembra o céu em pleno amanhecer. Aquela luz que machuca os olhos,
mas que - por Deus! - é linda. Me abraça num abraço que
vai durar dois
dias?
meses?
anos?
minutos e que vai me curar. Abraço esperado, sofrido. Dor tão
boa. Oxalá eu sinta para sempre essa dor. Ele é meu beijo no final
do filme. Esperança ressuscitada. Abraço que cura. Cola cada
pedaço.
Estou repleto de ti, e sussurro vem deitar, meu amor. Repleto de ti. Tão
repleto que por vezes penso que vou explodir. E voar pedacinhos de ti para todos
os lados. E o que eu irei fazer? Correr pelo mundo, caçar cada um deles.
Dezenas, centenas, milhões de pedacinhos e colar um por um e te deixar
inteiro, completo, sem faltas e sem ausências.
Até mais. Cinco dias. Daqui cinco dias te vejo. E eis o verme. Tranca
por tranca abri a porta. Apartamento oco, mas incrivelmente limpo. Agradeci.
O cheiro de morte não sentia. Apenas o cheiro de morangos.
Suspiro. Prendi a respiração por alguns minutos. Contemplei o
céu cinza. Calei-me. Fechei as cortinas verdes. O quarto então
se encheu de luz.
E lá estava ele na porta imaginado como se realmente estivesse ali
desde sempre e que aquela não seria só mais uma noite e o sofrimento
de uma vida então se apagaria ali diante de seu nariz por onde entraria
o doce perfume das flores amarelas verdes ou azuis se existissem flores azuis
mas naquele mundo existia porque havia uma flor azul que gritava brilhos logo
ali diante dele que estava diante da janela fechada pela cortina verde que lembrava
o mar.
Pisquei uma, duas, três vezes. Sabia da existência do sonho, realidade
inventada por mim para suprir o oco que outros haviam deixados. Mas algo nele
me dava uma certeza doente de que O outro estava ali, sorrindo...
... um sorriso de menino travesso desejando dar-me um abraço bem
forte que me dissesse está tudo bem meu lindo anjo azul da cor do céu
por quem eu estou estupidamente apaixonado mas não estranho é
impossível não se apaixonar por um homem que presta atenção
nas cores eu li em algum lugar e corram a menina está roubando os livros
e lá está nosso álbum nossa vida nossas fotos lembranças
de visitas a museus a torres a casas malucas onde coelhos malucos nos contam
suas maluquices e nós rimos ah se rimos!
A vida me parecia breve o suficiente para perdê-lo. O céu, mais
cinza do que nunca, me chamou. Eu, calado ainda, resignei-me a sentar no sofá
e tomar uma xícara de café preto, bem preto, para acalmar a sede
que tinha dele...
sede esta que só se mataria com o beijo primeiro gosto de morango
que se deu numa tarde de vento frio que tomou o corpo e uma quentura que tomou
conta da alma e o sol apareceu por de trás das nuvens esbanjando raios
de todas as cores amarelos azuis e verdes sim verdes eram os raios do sol nas
árvores das flores nas cabeças protegidas apenas pela aura de
cada um que da mesma forma eram coloridas e lindas e claras e santas.
Santa Teresa observava. Sentia isso como sentia aquele ar frio entrando e saindo
e entrando de novo, naquele entrar-entrando sem pedir licença. Quem era?
Não sabia, nem ousava responder como não ousava responder nada
depois de errar. Calava-me. A criança diria "ah, eu sabia!",
mas eu não. Permaneceria calado, com medo - como sempre -, e que medo
grande era esse que possuía agora! Medo do futuro, do presente, das palavras,
das letras, das poesias que escrevia sem papel nas paredes de casa com tinta
que não eram tinta. Medo do medo do outro que poderia ter medo, medo
do possível medo...
Caiu o corpo sobre a rua deserta e não tinha nem mesmo tráfego
que o auxiliasse e lhe tirasse dali antes que fosse pisoteado queimado linchado
sujado deteriorado pelos pés e mãos e bicos e presas de homens
e bichos que ali haveriam de passar na próxima segunda acordem é
hora de ir trabalhar bando de vagabundos que só saber dormir dormir e
ficar na frente da televisão vendo fantástico enquanto o mundo
passa a vida passa o amor passa e a felicidade está logo ali parada na
esquina e ninguém repito ninguém consegue ouvi-la porque estão
ausente demais nos seus eme esse enes da vida
Eu vi o corpo cair. Um rapaz cuja namorada o traiu com o irmão. Coitado.
Tão novo. Não desci. Ele me ligou logo depois que vi o corpo.
E sua voz me fazia esquecer que havia outros corpos no mundo.
Ah, seu toque de edredom com cheiro de confort que me conforta. Me senti vivo.
E na bagunça do meu edredom eu não sabia mais onde começava
ou terminava sua pele. Nos beijamos na chuva. E não sabia onde terminava
sua água e começava a água que caía. E no abraço
em que dávamos e que durava pouco mais de dois
dias?
meses?
anos?
minutos, eu me desprendia de mim para abraçar na totalidade do que era.
O que ele era? Não sei.
Só sei que comecei a ver rostos novamente nos espelhos.