A Garganta da Serpente
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O golpe do sequestro

(Rubens Costa)

Sábado, cinco e quinze da manhã. Gustavo acorda assustado com o som estridente do telefone. Ainda zonzo e com o coração disparado, vai cambaleando em direção à sala. Acende a luz e pára à frente do aparelho, hesita por alguns poucos segundos e, finalmente, vai ao encontro do destino. Pega o telefone de um só golpe:

- Alô.

Ouve do outro lado uma voz chorosa e desesperada clamando por ajuda:

- Pai, pai, pai... pelo amor de Deus pai, me ajuda... eu fui sequestrada... vão me matar... pai, pai, pai paga pra eles pai, paga pra eles...

Sem que tivesse tempo de refletir, ouve uma outra voz se apoderando do aparelho:

- Dotô, fica calmo... nóis não qué mata a sua filha... tá me ouvindo dotô?

- Sim, estou ouvindo - respondeu Gustavo.

- É o seguinte, doutô, se você não fize nenhuma bestera nóis não vai machuca a sua filhinha, tá entendo doutô... Agora faz o...

Sem que o sequestrador pudesse dar continuidade ao seu achaque, Gustavo, com a voz firme e resoluta interrompe o seu algoz:

- Caveira, seu incompetente, eu estava esperando a sua ligação há uma hora. Escuta direito, pois vou falar uma vez só. Está ouvindo?

Um silêncio se fez do outro lado da linha. Está ouvindo - repetiu Gustavo - com um tom de voz sinalizando certa irritação.

- Tô, tô ouvindo...

- Avisa o Geraldão que eu estou com a sua filha sequestrada aqui na minha casa.

- A filha do Geraldão?

- É isso mesmo, a filha do Geraldão!

- Não é possível... A filha do Geraldão...

Pego de surpresa e sem conseguir entender direito o que estava acontecendo, o Caveira procurou ganhar tempo. Tapou o bocal do telefone e pediu para o seu comparsa - que fazia o papel da suposta filha sequestrada - que aumentasse a dramaticidade da sua interpretação:

- Tá querendo me enrolar, seu filho-da-puta? O sequestrador aqui sou eu, tá entendendo? Nóis vai mata a sua filha, tá entendendo... nóis vai mata a sua filha... tá entendendo... tá entendendo...

- Chama o Geraldão ao telefone - falou o Gustavo com a maior calma do mundo - Daqui para frente só negocio com ele. Vai logo, anda, chama o Geraldão.

- Você tá louco? Se eu acordar o Geraldão ele me mata!

Repentinamente, o Caveira pára e vê o absurdo da conversa. Como é que ele sabia o seu nome... E o que o chefão se chamava Geraldão e que ainda por cima tinha uma filha...

O Caveira, que apesar de burro era escolado na vida da malandragem, relutou em aceitar tal hipótese:

E aí doutô, já que você tá querendo bancar o esperto, me diga aí, qual é o nome da filha do Geraldão?

- Maria Rita, imbecil!

- Tá querendo me enrolar? Qualquer pode saber o nome da filha do Geraldão...

- É verdade - respondeu Gustavo - mas como é que eu ia saber que você ia me ligar? Vai logo chamar o Geraldão, senão passo fogo na Maria Rita e você vai ser o culpado. Já pensou ter que encarar o chefão com essa responsabilidade nas costas... já pensou?

Sem alternativa, o Caveira pediu que ele aguardasse. Ficou zanzando pela cela de um lado para outro. Coçava a cabeça sem saber ao certo como agir. Decidiu, então, ir até a cela do Geraldão, o que não era nada fácil. Depois de convencer uma série de seguranças que protegiam a sua vida, ele conseguiu chegar ao chefão. Relatou o ocorrido. Ainda meio atordoado pela bebida ingerida em grande quantidade durante a noite, o Geraldão procurou escutar com a atenção possível naquele estado. Em seguida, mandou o Caveira ir se danar e voltou a dormir. Quase que chorando, acordou com muito cuidado o chefão, agora com um comprimido e um copo de água à mão.

- E se ele não estiver mentindo? É a sua filha e eu não quero assumir a responsabilidade disso. Acho melhor o chefão conversar com ele.

Contrariado, mas preocupado, o Geraldão pegou o celular:

- Alô?

- É o Geraldão?

- Sim!

- Por essa você não esperava, não é mesmo seu filho-da-puta!

- Vamos direto ao assunto - falou o Geraldão com a sua autoridade de chefão.

- Assim que eu gosto - falou Gustavo.

- Se a minha filha está com você, coloque ela agora ao telefone - replicou o Geraldão com um frio na barriga, afinal, a Maria Rita era a coisa que ele mais amava na vida.

- Antes, coloque a minha filha ao telefone; se é que vocês estão com ela.

- Nada feito, falou o Geraldão. Antes quero falar com a minha menina.

- Sua menina? Que bonitinho... minha menina... Tá com medo? É duro imaginar que a coisa que mais amamos está sequestrada, não é mesmo? Tá bom, otário, vou colocar a sua menina na linha:

- Pai? Paizinho?

O Geraldão gelou. A voz era a da sua filha. Ainda assim, o seu instinto oriundo da sua vida marginal, falou mais alto e decidiu prospectar, mas para o seu desespero, ao telefone surgiu novamente a voz do seu sequestrador:

- E agora Geraldão, grande chefão, quero falar com a minha filha.

Sem saída, ele teve que admitir que tudo não passava de um falso sequestro.

- Você sabe que não estamos com a sua filha. Assim, vamos terminar logo com isso, pois eu sei que a minha Maria Rita também não está com você, certo?

- Errado! Eu estou com a sua filha. Quanto a minha seu otário, eu não tenho filhos.

- Você simplesmente não pode estar com a minha filha... claro que não... se estivesse, você me deixaria falar com ela... não pode ser... claro que não está...

- Pai, paizinho... sou eu, Maria Rita. Ela me sequestrou na saída do inglês. Pai, paizinho, não deixa ela me fazer mal... pelo amor de Deus...

Desesperado, ele ainda teve a lucidez de perguntar:

- Se você é mesmo a minha filhinha, então me responda, qual foi a coisa mais maravilhosa que passamos juntos?

- A nossa viagem à Disney. Lembra quando entramos cheios de medo na roda gigante? Como saímos dando gargalhadas de tão nervosos que estávamos? E aquele maravilho hotel? Pai, pelo amor de Deus, sou eu. Não deixa ele me maltratar... pai... me ajuda...

O corpo do Geraldão caiu pesado sobre o colchão. Começou a chorar. Sua Maria Rita, filha única, 21 anos, linda, universitária, nas mãos de um sequestrador. E agora, como é que ele ia fazer. É claro - ele pensou - o resgate. O desgraçado vai pedir uma grana e tudo estará resolvido.

- Quanto é que você quer para libertar a minha filha, seu canalha.

- Quanto eu quero? Meu amigo, as coisas não são tão simples assim. Vamos fazer o seguinte, enquanto eu penso em um valor, vou estuprar a sua filhinha. Cara, como ela é gostosa.

- Não faça isso. Pelo amor de Deus, não faça isso.

- Deus? Não acredito. Você falando em Deus? Fica na linha, vou dar um trato na menina.

- Não, eu faço o que você quiser... peça qualquer coisa... qualquer coisa... o que você quer...

Do outro lado da linha nenhuma resposta. O Geraldão procurou se acalmar a aguçar o seu ouvido. Conseguiu apenas ouvir gritos e gemidos. A tortura durou 20 minutos. Neste tempo, Geraldão apenas chorou sob as vistas, incrédulas, dos seus subordinados.

- Geraldão?

- Eu vou te matar seu desgraçado!

- Como sua filha chupa gostoso, que bundinha, que peitos...

- Eu vou te matar! Eu vou te matar!! Eu vou te matar!!!

- Não vai não, Geraldão. Ela ainda está viva, pelo menos por enquanto. Depois do prazer, vamos tratar de negócios. Não leve isso como uma coisa pessoal, é business.

Sua filha ainda estava viva e precisava salvar sua vida - ele pensou.

- Quanto você quer... fala logo seu maldito.

- Eu não quero dinheiro.

- Não? O que você quer então?

- Eu quero uma coisa muito simples. Tão simples que o que eu quero, e você vai fazer, só depende de uma ordem sua.

- Fala logo!

- A partir desse momento, você vai proibir, para sempre, sequestros e estupros em toda a Cidade de São Paulo. Quem desobedecer, sob qualquer pretexto, terá que ser executado.

- Eu não posso fazer isso. Se eu colocar isso vou ser morto no mesmo instante.

- Puxa, que pena, não é mesmo - falou Gustavo com um tom irônico na voz.

Desolado, o Geraldão levou uma das mãos sobre os olhos. Sua alta gerencia, a esta altura, estava toda presente. Escutaram toda a conversa e sem entreolhavam desconfiados, no aguardo da sua decisão.

- Olha, eu não posso fazer isso. Entendeu, eu não posso...

- Já falei, que pena! Bom, talvez tenhamos outra alternativa.

- Qual?

- Você falou que se der a ordem eles te matam, não é isso?

- É isso!

- Então dê a ordem. O preço de salvar a sua filha será a sua própria vida.

Do outro lado da linha ouviu a voz da sua filha suplicando para que ele não fizesse isso. Começou a chorar novamente. Chorou e chorou. Pouco depois, voltou a falar ao celular.

- Que garantia que eu tenho de que você vai soltar a minha filha?

- Nenhuma! Mas eu vou soltar! Acredite em mim. Eu vou soltar.

Geraldão, então, levantou os olhos para os seus comparsas, deu a ordem e fechou os olhos. Gustavo ouviu o barulho de 10 estampidos. Estava consumado. Rapidamente, o segundo na sucessão assumiu o telefone.

- O novo chefão sou eu. Solta a menina.

- Depois do almoço ela será solta.

Em seguida, o novo chefão pediu para que alguém ligasse para a mulher do Geraldão: Eu mesmo quero dar a notícia - ele falou com determinação. A ligação foi feita.

- É a dona Silvia?

- Isso é hora de ligar?

- Dona Silvia, preciso dar uma notícia muito triste.

- Que notícia?

- A senhora está sentada?

- Espera um pouco que eu vou acordar a minha mãe.

- Quem está falando?

- Maria Rita.

(23/11/2007)

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