A Garganta da Serpente
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Elisângela

(Ronygley Carvalho Fonseca)

É amor, é paixão, é loucura, é saudade, é horror. É todo este misto de sentimentos reunidos que invadem, que se apoderam, e que percorrem minha alma quando evoco o nome daquela que eu amo e que não está mais neste plano terrestre.

Elisângela! Elisângela! Elisângela! Este é o seu nome, a amada cujas hostes celestiais a levaram para longe de mim. Elisângela. Onde quer que sua alma esteja - eu grito bem alto teu nome, com a força do meu amor para dizer, te amo! Mas por que você não me responde? Será que não me ouve? Será que não me amas mais?...

Eu contemplo o teu cadáver - este teu corpo frio e rígido, esta tua pele pálida e os teus lábios gelados e macios. Porém eles não têm a mesma relevância de quando tu eras viva!

Nunca, em toda a minha vida, conheci uma dama tão bela e distinta como a ti, nem mesmo a beleza da deusa Afrodite se pode comparar com a tua. Seus longos e finos cabelos loiros, sua pele branca e macia como algodão, e cheirosa como uma rosa, sem falar nos seus olhos azuis da cor do mar, e seu sorriso branco como marfim que esbanjava a pompa e o vigor da sua saudável vida.

Felizes foram os momentos que passamos juntos, - eu ao seu lado usufruindo do seu calor aconchegante, de seus carinhos, do seu amor e da sua beleza, e agora, estes momentos se dissiparam no tempo, mas perpetuaram na minha mente deixando cicatrizes profundas na minha alma.

Antes tudo era um sonho maravilhoso no Éden, mas agora, o que era um sonho transformou-se num terrível pesadelo de horror, angústia e morte no inferno!

Do que me serve a fortuna e o luxo em que vivo se não tenho seu corpo em vida aqui comigo. Para que servem tantos conhecimentos científicos se não posso devolver-te a vida e traze-la para junto de mim. Mas enquanto eu respirar não desistirei jamais da incansável batalha de devolver-te a vida.

É doentio, é difícil, mas continuarei tentando. Às vezes, quando estou na biblioteca, - entregue de corpo e alma em estudos e pesquisas sobre ciências, medicina e alquimia na remota esperança de trazê-la novamente a vida, de súbito, bate o cansaço, - eu me acomodo na poltrona para relaxar, fecho os olhos lentamente e começo a recordar dos nossos velhos tempos de infância de quando nos conhecemos até o maldito dia que aquela estranha e desconhecida doença tirou-a de mim.

Lembro de quando éramos crianças: eu de saúde frágil e debilitado pelas diabetes e a tuberculose, quando não estava internado no hospital - estava em casa mergulhado em estudos na biblioteca.

Embora desfrutasse de uma vida confortável da qual o dinheiro me permitia, - eu era uma criança solitária, triste e infeliz.

E tu, saudosa Elisângela - jovem e bela, era como uma flor de primavera que acabara de desabrochar para ornamentar os bosques. Ainda me lembro como se fosse hoje a primeira vez que eu a vi.

Eu estava na janela do meu quarto, que dava de frente para a calçada, - observando-a brincar com as outras crianças. Desde então nunca mais sua imagem saiu da minha memória, eu sonhava com ela de dia e de noite, dormindo ou acordado. E sempre que Elisângela brincava na calçada eu ficava a observá-la e a admirar sua beleza.

Fiz vários desenhos de sua imagem no meu caderno e, começou a despertar em mim um sentimento maravilhoso, e também, forte demais para conte-lo. -Eu a amava - estava apaixonado por ela, queria conhecê-la, declarar os meus sentimentos e sair do ocultismo.

Insisti inúmeras vezes para que meus pais a trouxessem em nossa casa para eu conhece-la e não desisti até que eles conseguissem.

Um dia, quando eu estava na biblioteca desenhando seu retrato, uma criada veio me buscar a pedido dos meus pais dizendo que eles tinham uma surpresa muito boa para mim.

Fui até a sala e lá estavam meus pais, Elisângela e os pais dela. Finalmente, depois de tantos sacrifícios eles conseguiram trazer Elisângela para perto de mim. Foi um dia inesquecivelmente maravilhoso, tomamos chá, eu falei dos meus sentimentos para ela, e ambas as famílias conversaram para melhor se conhecerem.

A partir de então não nos separamos mais, era como se o destino nos tivesse reservados um para o outro. Passávamos juntos a maior parte do tempo. Elisângela era amiga, companheira e preenchia o vazio que eu sentia.

Nós íamos juntos para escola, estudávamos, brincávamos e ela me acompanhava sempre que eu ia fazer algum tratamento no hospital ou quando tinha alguma crise provocada pelas doenças ela estava ao meu lado.

Foi assim durante nossa infância, adolescência e os tempos de universidade, dos quais, estes, dediquei-me e me dedico até hoje em estudos e pesquisas para a cura de moléstias sem cura.

Quando nos tornamos adultos decidimos nos casar e tivemos o consentimento e a benção de nossos pais. Elisângela era a esposa ideal, nunca viu na minha moléstia obstáculo que impedisse a nossa união, e eu não poderia me sentir mais feliz do que quando estava ao seu lado. Ela gostava de poesia, em especial, as do inglês Lord Byron e a portuguesa Florbela Espanca - estes eram suas inspirações, o que me deixava muito feliz. Passava horas compondo poemas e poesias para recitá-los para mim.

E eu me entregava de copo, alma e coração, e deixava a doce voz da minha amada penetrar nos meus ouvidos, e ao final da recitação nos entregávamos a mais ardente paixão.

Mas os anos passavam e meus males se agravavam dia após dia, e comecei a me entregar às cegas no trabalho, mergulhando em estudos profundos e inúmeras experiências científicas. No intuito de descobrir a panaceia e curar os meus males e os da humanidade, - obter o elixir da longa vida, a juventude eterna, ou até mesmo imortalizar a minha amada e eu, para desfrutarmos o nosso amor e felicidade eternamente.

Então, como se fosse movido por pura e frenética obssessão, me entreguei de corpo e alma às minhas pesquisas e negligenciando a pobre Elisângela que eu tanto amo. Já não tinha mais tempo para ouvi-la recitar ou cantar, mal lhe dava atenção ou fazia amor com ela.

Eu estava doente e cego pelo trabalho, e não vi quando a enfermidade contaminou Elisângela. (Casa de ferreiro, espeto de pau). Do que me serviram o dinheiro, meus conhecimentos médicos e científicos, se não pude ver como o meu amor, aos poucos, adoencia e padecia perante mim, e a moléstia se proliferava, rapidamente, no seu corpo.

Percorremos vários países a procura de tratamento nos melhores hospitais, mas nada foi descoberto, os médicos não sabiam o que fazer - estavam desacreditados, nunca tinham visto uma doença tão estranha e tão avaçaladora como aquela.

Oh, Deus! Se pelo menos eu não tivesse sido tão ausente e tivesse percebido o começo da doença, talvez nós tivessemos alguma esperança.

Em pouco tempo, uma mulher tão bela, tão saudável e cheia de vida como era Elisângela, adquiriu uma aparência horrenda, cadavérica: Emagreceu ao extremo, aponto de transparecerem as marcas dos ossos através da pele, -ela empalideceu, seus cabelos caíaram e seus seios murcharam!

A muza que um dia eu comparei com a deusa Afrodite, agora parecia mais um zumbi - um cadáver vivo que se esqueceram de enterrar. Ah, mas isto não abalou o nosso amor, não, ao contrário, fortaleceu ainda mais nossa união. -Elisângela, meu amor, minha vida, - eu não posso te abandonar e nem te deixar sozinha num momento como este! Eu dizia para ela.

Voltamos à nossa casa para tratar de Elisângela e juntos vencermos esta provação. Os dias e os momentos tornavam-se cada vez mais difícieis.

Elisângela definhava a cada dia no seu leito, a moléstia a corroía e ela gemia de dor, ficou tão fraca que não pode fazer mais nada. - Eu que lhe dava banho, de comer e a levava ao banheiro.

E, com todos estes tormentos, a minha luta tornara-se agora mais desesperadora, e o meu trabalho mais árduo e intenso, pois não se tratava apenas de encontrar a panaceia para curar os meus males e os da humanidade, mas também curar a moléstia de Elisângela. Era a vida da minha amada que estava em jogo, e eu sabia que tinha pouco tempo.

Quando não estava trabalhando ficava ao lado dela dando-lhe apoio e coragem como ela sempre fez comigo. - Eu dizia para ela ter fé, ser forte, não se entregar e confiar em mim, pois já estava prestes a descobrir a cura para o nosso mal.

Então ela me tomou a mão entre seus dedos, beijou-a, chorou, disse que me amava e me fez jurar que se algo desse errado e ela morresse, que eu não a abandonaria enterrada numa cova de cemitério e que continuaria amando-a.

-É claro meu amor, eu juro, eu nunca abandonaria você, mesmo morta eu continuarei amando-te como sempre fiz. E beijei seus lábios frios demoradamente, -me partiu o coração vê-la daquele jeito e não poder fazer nada.

Depois de muito trabalho e experiência consegui produzir uma substância que pudesse curar, ou pelo menos, retardar os avanços da doença. Eu a testei injetando-a em camundongos infectados e o resultado foi fantástico e promissor.

O próximo passo foi testá-la em cobaias humanas, e eu me dispus a tal propósito. Injetei a substância em mim, e com um tempo percebi que a droga retardava bastante o avanço da doença,- pelo menos foi um grande avanço.

Eureca! Eu consegui. Depois de tanto trabalho eu descobri a panaceia!

Mas no momento em que comemorava a descoberta e já preparava uma dose para levar para Elisângela fui acometido por um grito de horror provindo do seu quarto. Um grito pavoroso que me fez tremer a alma!

Meu Deus! Eu gritei. A morte veio busca a minha amada, vou até lá e espero que não seja tarde demais.

E subi correndo as escadas até o quarto dela. Ao chegar, Elisângela estrebuchava convulsivamente na cama e ruminava. Eu a segurei para deter seus movimentos e percebi que seus braços estavam gélidos como os de um cadáver.

De súbito, - ela parou de se contorcer, de ruminar e ficou imóvel na cama. Tomei seu pulso e estava sem pulsação, coloquei a mão sobre seu peito e o coração cessara.

Não, não eram apenas os pulsos e o coração que não pulsavam. Elisângela estava fria e rígida como uma pedra.

Não... Não... Não! Impossível! Eu gritei. Elisângela, meu amor, não morra, por favor, - não agora que eu encontrei a cura para o nosso mal. E movido por ímpetos de horror e desespero utilizei todos os meus conhecimentos médicos para tentar salvá-la:

Tentei de todas as formas reanimá-la: dando-lhe massagens cardíacas e fazendo respiração boca a boca. Tudo em vão. Elisângela estava morta!

Gritei, chorei, beijei, abracei e sofri em cima do cadáver! Naquele momento pude ver toda a nossa vida passando num flash de trás para frente. Todos os bons momentos que passamos juntos, e agora, em meus braços eu segurava o cadáver daquela que eu tanto amei , e que foi acometida por aquela estranha doença.

Durante algum tempo fiquei ali deitado e abraçado com o cadáver lamentando a sua perda. Sabia que não haveria mais nada o que fazer, a não ser encomendar o caixão e fazer os preparativos para o velório e o enterro.

Era isso, - eu daria à minha amada um enterro de rainha: com flores, uma cerimônia de corpo presente, uma bela homenagem, um imenso cortejo, - e a sua sepultura seria a mais linda, ornamentada e elegante de todo o cemitério.

De repente veio mente uma lembrança: espere, - o juramento. É verdade. Jurei para Elisângela, que mesmo se ela morresse, - eu continuaria amando-a e não a abandonaria numa cova de cemitério, sim, é isso!

Já nem sabia mais o que dizia, estava aturdido. É claro que eu preferia-a viva ao meu lado. Então me ocorreram as mais absurdas ideias - os mais doentios pensamentos!

Lembrei-me que um dos objetivos dos alquimistas da idade média consistia em obter o elixir da longa vida, e para isso, eles buscavam a Pedra Filosofal, a qual acreditavam que seria capaz de transformar substâncias em ouro e trazer a vida eterna, porém isto estava longe de acontecer. Então, ocorreu-me outra ideia, lembrei-me que na história de Frankestein, de Mary Shelley, - o monstro foi criado com pedaços de corpos humanos, e adquiriu vida por meio de uma forte descarga elétrica.- Talvez isso fosse possível, "-eu pensei", pois ouvi falar que em universidades britãnicas os estudantes aplicavam choques elétricos em rãos mortas e os muscúlos dos animais se contraíam.-Sim, é isto, talvez haja uma esperança!

Sei que parece loucura, mas foi isto mesmo que eu fiz. Apanhei o corpo de Elisângela e o levei para o laboratório.

Deitei-o sobre a mesa, arranjei uma extensão e conectei os fios em seus pulsos, cabeça e coração. E movido por impulso apliquei várias descargas elétricas no corpo de Elisãngela na tentativa de ressucitá-la.

A cada contorcida eu me animava, mas a tentativa era em vão, pois o corpo não apresentava sinais vitais e continuava frio, rígido e inerte.

-Não, impossível, isto só é mesmo possível em histórias de ficção, só mesmo Deus era capaz de um milagre como este, - eu falei. Mas eu amo Elisângela e quero-a para mim, não é justo, seu espírito desencarnou, mas o corpo está aqui, e eu prometi que mesmo depois de morta eu não a abandonaria. -Andei de um lado para o outro com os braços cruzados sobre o peito, coçava a cabeça -estava transtornado!

Foi então que encontrei uma solução mais prática: resolvi embalsamar o corpo para conservá-lo e ganhar tempo até encontrar uma maneira de devolver-lhe a vida. Sim, era isso, - o cadáver ainda estava fresco e, com sorte, eu poderia remover os órgãos não afetados pela doença e conservá-los no gelo numa câmara frigorífica para reemplantá-los depois, - como eu não pensei nisso antes, "genial!"

Dei um banho no corpo e limpei-o, e utilizando os meus vastos conhecimentos em anatomia, - apanhei o bisturi, fiz um corte da altura da garganta ao do abdômen, abriu-o e fiz uma minuciosa vistoria em todos os órgãos de Elisângela. Com excessão dos pulmões que estavam podres e corroídos, todos os outros órgãos estavam em perfeito estado, - então, extrai o coração, fígado, rins, útero, pulmões e coloquei-os cuidadosamente numa caixa de isopor cheia de gelo e guardei numa pequena câmara frigorífica. Apliquei as substâncias para neutralizarem a putrefação, dissequei e costurei, cuidadosamente, o cadáver da minha amada e vesti-a com o vestido de noiva que ela usou em nosso casamento.

Encomendei um esquife de cristal e coloquei-o num suporte em nosso quarto. Depositei o corpo embalsamado de Elisângela dentro do esquife onde ela pode repousar ao meu lado.

Eu cumpri a promessa de não abandoná-la enterrada numa cova de cemitério. A aparência do corpo maltrado pela moléstia pouco me inquieta, pouco me assusta, pois eu a amo. E toda a semana eu aplico as substãncias para a conservação do seu corpo, e continuo trabalhando e pesquisando uma maneira de traze-la à vida para mim, e não pretendo desistir das experiências.

Não há um só dia, um só momento que eu não a contemple, e todas as noites antes de dormir eu faço amor com ela. Sua alma Deus levou, mas o seu corpo me pertence e eu ficarei ao seu lado até o último dia da minha vida, ou até encontrar a fórmula para ressucitá-la.

Elisângela, meu amor, minha vida!

(Abril de 2008)

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