É amor, é paixão, é loucura, é saudade,
é horror. É todo este misto de sentimentos reunidos que invadem,
que se apoderam, e que percorrem minha alma quando evoco o nome daquela que
eu amo e que não está mais neste plano terrestre.
Elisângela! Elisângela! Elisângela! Este é o seu nome,
a amada cujas hostes celestiais a levaram para longe de mim. Elisângela.
Onde quer que sua alma esteja - eu grito bem alto teu nome, com a força
do meu amor para dizer, te amo! Mas por que você não me responde?
Será que não me ouve? Será que não me amas mais?...
Eu contemplo o teu cadáver - este teu corpo frio e rígido, esta
tua pele pálida e os teus lábios gelados e macios. Porém
eles não têm a mesma relevância de quando tu eras viva!
Nunca, em toda a minha vida, conheci uma dama tão bela e distinta como
a ti, nem mesmo a beleza da deusa Afrodite se pode comparar com a tua. Seus
longos e finos cabelos loiros, sua pele branca e macia como algodão,
e cheirosa como uma rosa, sem falar nos seus olhos azuis da cor do mar, e seu
sorriso branco como marfim que esbanjava a pompa e o vigor da sua saudável
vida.
Felizes foram os momentos que passamos juntos, - eu ao seu lado usufruindo do
seu calor aconchegante, de seus carinhos, do seu amor e da sua beleza, e agora,
estes momentos se dissiparam no tempo, mas perpetuaram na minha mente deixando
cicatrizes profundas na minha alma.
Antes tudo era um sonho maravilhoso no Éden, mas agora, o que era um
sonho transformou-se num terrível pesadelo de horror, angústia
e morte no inferno!
Do que me serve a fortuna e o luxo em que vivo se não tenho seu corpo
em vida aqui comigo. Para que servem tantos conhecimentos científicos
se não posso devolver-te a vida e traze-la para junto de mim. Mas enquanto
eu respirar não desistirei jamais da incansável batalha de devolver-te
a vida.
É doentio, é difícil, mas continuarei tentando. Às
vezes, quando estou na biblioteca, - entregue de corpo e alma em estudos e pesquisas
sobre ciências, medicina e alquimia na remota esperança de trazê-la
novamente a vida, de súbito, bate o cansaço, - eu me acomodo na
poltrona para relaxar, fecho os olhos lentamente e começo a recordar
dos nossos velhos tempos de infância de quando nos conhecemos até
o maldito dia que aquela estranha e desconhecida doença tirou-a de mim.
Lembro de quando éramos crianças: eu de saúde frágil
e debilitado pelas diabetes e a tuberculose, quando não estava internado
no hospital - estava em casa mergulhado em estudos na biblioteca.
Embora desfrutasse de uma vida confortável da qual o dinheiro me permitia,
- eu era uma criança solitária, triste e infeliz.
E tu, saudosa Elisângela - jovem e bela, era como uma flor de primavera
que acabara de desabrochar para ornamentar os bosques. Ainda me lembro como
se fosse hoje a primeira vez que eu a vi.
Eu estava na janela do meu quarto, que dava de frente para a calçada,
- observando-a brincar com as outras crianças. Desde então nunca
mais sua imagem saiu da minha memória, eu sonhava com ela de dia e de
noite, dormindo ou acordado. E sempre que Elisângela brincava na calçada
eu ficava a observá-la e a admirar sua beleza.
Fiz vários desenhos de sua imagem no meu caderno e, começou a
despertar em mim um sentimento maravilhoso, e também, forte demais para
conte-lo. -Eu a amava - estava apaixonado por ela, queria conhecê-la,
declarar os meus sentimentos e sair do ocultismo.
Insisti inúmeras vezes para que meus pais a trouxessem em nossa casa
para eu conhece-la e não desisti até que eles conseguissem.
Um dia, quando eu estava na biblioteca desenhando seu retrato, uma criada veio
me buscar a pedido dos meus pais dizendo que eles tinham uma surpresa muito
boa para mim.
Fui até a sala e lá estavam meus pais, Elisângela e os pais
dela. Finalmente, depois de tantos sacrifícios eles conseguiram trazer
Elisângela para perto de mim. Foi um dia inesquecivelmente maravilhoso,
tomamos chá, eu falei dos meus sentimentos para ela, e ambas as famílias
conversaram para melhor se conhecerem.
A partir de então não nos separamos mais, era como se o destino
nos tivesse reservados um para o outro. Passávamos juntos a maior parte
do tempo. Elisângela era amiga, companheira e preenchia o vazio que eu
sentia.
Nós íamos juntos para escola, estudávamos, brincávamos
e ela me acompanhava sempre que eu ia fazer algum tratamento no hospital ou
quando tinha alguma crise provocada pelas doenças ela estava ao meu lado.
Foi assim durante nossa infância, adolescência e os tempos de universidade,
dos quais, estes, dediquei-me e me dedico até hoje em estudos e pesquisas
para a cura de moléstias sem cura.
Quando nos tornamos adultos decidimos nos casar e tivemos o consentimento e
a benção de nossos pais. Elisângela era a esposa ideal,
nunca viu na minha moléstia obstáculo que impedisse a nossa união,
e eu não poderia me sentir mais feliz do que quando estava ao seu lado.
Ela gostava de poesia, em especial, as do inglês Lord Byron e a portuguesa
Florbela Espanca - estes eram suas inspirações, o que me deixava
muito feliz. Passava horas compondo poemas e poesias para recitá-los
para mim.
E eu me entregava de copo, alma e coração, e deixava a doce voz
da minha amada penetrar nos meus ouvidos, e ao final da recitação
nos entregávamos a mais ardente paixão.
Mas os anos passavam e meus males se agravavam dia após dia, e comecei
a me entregar às cegas no trabalho, mergulhando em estudos profundos
e inúmeras experiências científicas. No intuito de descobrir
a panaceia e curar os meus males e os da humanidade, - obter o elixir
da longa vida, a juventude eterna, ou até mesmo imortalizar a minha amada
e eu, para desfrutarmos o nosso amor e felicidade eternamente.
Então, como se fosse movido por pura e frenética obssessão,
me entreguei de corpo e alma às minhas pesquisas e negligenciando a pobre
Elisângela que eu tanto amo. Já não tinha mais tempo para
ouvi-la recitar ou cantar, mal lhe dava atenção ou fazia amor
com ela.
Eu estava doente e cego pelo trabalho, e não vi quando a enfermidade
contaminou Elisângela. (Casa de ferreiro, espeto de pau). Do que me serviram
o dinheiro, meus conhecimentos médicos e científicos, se não
pude ver como o meu amor, aos poucos, adoencia e padecia perante mim, e a moléstia
se proliferava, rapidamente, no seu corpo.
Percorremos vários países a procura de tratamento nos melhores
hospitais, mas nada foi descoberto, os médicos não sabiam o que
fazer - estavam desacreditados, nunca tinham visto uma doença tão
estranha e tão avaçaladora como aquela.
Oh, Deus! Se pelo menos eu não tivesse sido tão ausente e tivesse
percebido o começo da doença, talvez nós tivessemos alguma
esperança.
Em pouco tempo, uma mulher tão bela, tão saudável e cheia
de vida como era Elisângela, adquiriu uma aparência horrenda, cadavérica:
Emagreceu ao extremo, aponto de transparecerem as marcas dos ossos através
da pele, -ela empalideceu, seus cabelos caíaram e seus seios murcharam!
A muza que um dia eu comparei com a deusa Afrodite, agora parecia mais um zumbi
- um cadáver vivo que se esqueceram de enterrar. Ah, mas isto não
abalou o nosso amor, não, ao contrário, fortaleceu ainda mais
nossa união. -Elisângela, meu amor, minha vida, - eu não
posso te abandonar e nem te deixar sozinha num momento como este! Eu dizia para
ela.
Voltamos à nossa casa para tratar de Elisângela e juntos vencermos
esta provação. Os dias e os momentos tornavam-se cada vez mais
difícieis.
Elisângela definhava a cada dia no seu leito, a moléstia a corroía
e ela gemia de dor, ficou tão fraca que não pode fazer mais nada.
- Eu que lhe dava banho, de comer e a levava ao banheiro.
E, com todos estes tormentos, a minha luta tornara-se agora mais desesperadora,
e o meu trabalho mais árduo e intenso, pois não se tratava apenas
de encontrar a panaceia para curar os meus males e os da humanidade,
mas também curar a moléstia de Elisângela. Era a vida da
minha amada que estava em jogo, e eu sabia que tinha pouco tempo.
Quando não estava trabalhando ficava ao lado dela dando-lhe apoio e coragem
como ela sempre fez comigo. - Eu dizia para ela ter fé, ser forte, não
se entregar e confiar em mim, pois já estava prestes a descobrir a cura
para o nosso mal.
Então ela me tomou a mão entre seus dedos, beijou-a, chorou, disse
que me amava e me fez jurar que se algo desse errado e ela morresse, que eu
não a abandonaria enterrada numa cova de cemitério e que continuaria
amando-a.
-É claro meu amor, eu juro, eu nunca abandonaria você, mesmo morta
eu continuarei amando-te como sempre fiz. E beijei seus lábios frios
demoradamente, -me partiu o coração vê-la daquele jeito
e não poder fazer nada.
Depois de muito trabalho e experiência consegui produzir uma substância
que pudesse curar, ou pelo menos, retardar os avanços da doença.
Eu a testei injetando-a em camundongos infectados e o resultado foi fantástico
e promissor.
O próximo passo foi testá-la em cobaias humanas, e eu me dispus
a tal propósito. Injetei a substância em mim, e com um tempo percebi
que a droga retardava bastante o avanço da doença,- pelo menos
foi um grande avanço.
Eureca! Eu consegui. Depois de tanto trabalho eu descobri a panaceia!
Mas no momento em que comemorava a descoberta e já preparava uma dose
para levar para Elisângela fui acometido por um grito de horror provindo
do seu quarto. Um grito pavoroso que me fez tremer a alma!
Meu Deus! Eu gritei. A morte veio busca a minha amada, vou até lá
e espero que não seja tarde demais.
E subi correndo as escadas até o quarto dela. Ao chegar, Elisângela
estrebuchava convulsivamente na cama e ruminava. Eu a segurei para deter seus
movimentos e percebi que seus braços estavam gélidos como os de
um cadáver.
De súbito, - ela parou de se contorcer, de ruminar e ficou imóvel
na cama. Tomei seu pulso e estava sem pulsação, coloquei a mão
sobre seu peito e o coração cessara.
Não, não eram apenas os pulsos e o coração que não
pulsavam. Elisângela estava fria e rígida como uma pedra.
Não... Não... Não! Impossível! Eu gritei. Elisângela,
meu amor, não morra, por favor, - não agora que eu encontrei a
cura para o nosso mal. E movido por ímpetos de horror e desespero utilizei
todos os meus conhecimentos médicos para tentar salvá-la:
Tentei de todas as formas reanimá-la: dando-lhe massagens cardíacas
e fazendo respiração boca a boca. Tudo em vão. Elisângela
estava morta!
Gritei, chorei, beijei, abracei e sofri em cima do cadáver! Naquele momento
pude ver toda a nossa vida passando num flash de trás para frente. Todos
os bons momentos que passamos juntos, e agora, em meus braços eu segurava
o cadáver daquela que eu tanto amei , e que foi acometida por aquela
estranha doença.
Durante algum tempo fiquei ali deitado e abraçado com o cadáver
lamentando a sua perda. Sabia que não haveria mais nada o que fazer,
a não ser encomendar o caixão e fazer os preparativos para o velório
e o enterro.
Era isso, - eu daria à minha amada um enterro de rainha: com flores,
uma cerimônia de corpo presente, uma bela homenagem, um imenso cortejo,
- e a sua sepultura seria a mais linda, ornamentada e elegante de todo o cemitério.
De repente veio mente uma lembrança: espere, - o juramento. É
verdade. Jurei para Elisângela, que mesmo se ela morresse, - eu continuaria
amando-a e não a abandonaria numa cova de cemitério, sim, é
isso!
Já nem sabia mais o que dizia, estava aturdido. É claro que eu
preferia-a viva ao meu lado. Então me ocorreram as mais absurdas ideias
- os mais doentios pensamentos!
Lembrei-me que um dos objetivos dos alquimistas da idade média consistia
em obter o elixir da longa vida, e para isso, eles buscavam a Pedra Filosofal,
a qual acreditavam que seria capaz de transformar substâncias em ouro
e trazer a vida eterna, porém isto estava longe de acontecer. Então,
ocorreu-me outra ideia, lembrei-me que na história de Frankestein,
de Mary Shelley, - o monstro foi criado com pedaços de corpos humanos,
e adquiriu vida por meio de uma forte descarga elétrica.- Talvez isso
fosse possível, "-eu pensei", pois ouvi falar que em universidades
britãnicas os estudantes aplicavam choques elétricos em rãos
mortas e os muscúlos dos animais se contraíam.-Sim, é isto,
talvez haja uma esperança!
Sei que parece loucura, mas foi isto mesmo que eu fiz. Apanhei o corpo de Elisângela
e o levei para o laboratório.
Deitei-o sobre a mesa, arranjei uma extensão e conectei os fios em seus
pulsos, cabeça e coração. E movido por impulso apliquei
várias descargas elétricas no corpo de Elisãngela na tentativa
de ressucitá-la.
A cada contorcida eu me animava, mas a tentativa era em vão, pois o corpo
não apresentava sinais vitais e continuava frio, rígido e inerte.
-Não, impossível, isto só é mesmo possível
em histórias de ficção, só mesmo Deus era capaz
de um milagre como este, - eu falei. Mas eu amo Elisângela e quero-a para
mim, não é justo, seu espírito desencarnou, mas o corpo
está aqui, e eu prometi que mesmo depois de morta eu não a abandonaria.
-Andei de um lado para o outro com os braços cruzados sobre o peito,
coçava a cabeça -estava transtornado!
Foi então que encontrei uma solução mais prática:
resolvi embalsamar o corpo para conservá-lo e ganhar tempo até
encontrar uma maneira de devolver-lhe a vida. Sim, era isso, - o cadáver
ainda estava fresco e, com sorte, eu poderia remover os órgãos
não afetados pela doença e conservá-los no gelo numa câmara
frigorífica para reemplantá-los depois, - como eu não pensei
nisso antes, "genial!"
Dei um banho no corpo e limpei-o, e utilizando os meus vastos conhecimentos
em anatomia, - apanhei o bisturi, fiz um corte da altura da garganta ao do abdômen,
abriu-o e fiz uma minuciosa vistoria em todos os órgãos de Elisângela.
Com excessão dos pulmões que estavam podres e corroídos,
todos os outros órgãos estavam em perfeito estado, - então,
extrai o coração, fígado, rins, útero, pulmões
e coloquei-os cuidadosamente numa caixa de isopor cheia de gelo e guardei numa
pequena câmara frigorífica. Apliquei as substâncias para
neutralizarem a putrefação, dissequei e costurei, cuidadosamente,
o cadáver da minha amada e vesti-a com o vestido de noiva que ela usou
em nosso casamento.
Encomendei um esquife de cristal e coloquei-o num suporte em nosso quarto. Depositei
o corpo embalsamado de Elisângela dentro do esquife onde ela pode repousar
ao meu lado.
Eu cumpri a promessa de não abandoná-la enterrada numa cova de
cemitério. A aparência do corpo maltrado pela moléstia pouco
me inquieta, pouco me assusta, pois eu a amo. E toda a semana eu aplico as substãncias
para a conservação do seu corpo, e continuo trabalhando e pesquisando
uma maneira de traze-la à vida para mim, e não pretendo desistir
das experiências.
Não há um só dia, um só momento que eu não
a contemple, e todas as noites antes de dormir eu faço amor com ela.
Sua alma Deus levou, mas o seu corpo me pertence e eu ficarei ao seu lado até
o último dia da minha vida, ou até encontrar a fórmula
para ressucitá-la.
Elisângela, meu amor, minha vida!
(Abril de 2008)