Olhe, não sei se o senhor vai acreditar nesta história, mas aconteceu
mesmo! Foi na época em que eu trabalhava como funcionário público
na Secretaria de Obras da Prefeitura de....bem, é melhor eu não
falar de onde, sabe, a coisa foi um bocado estranha e eu prefiro não
cutucar a onça com vara curta, o senhor entende....
Bom, vou começar pelo começo, como dizem. A dona Etelvina, chefe
da Seção de Protocolo onde eu trabalhava ficou doente. Coisa chata,
a dona Etelvina hospitalizada, aquilo tudo, mas o serviço tinha que continuar
e eles estavam para nomear um novo chefe para a seção. Bem, foi
naquela manhã que eu cheguei na Secretaria, assinei meu ponto e fui para
a Seção do Protocolo, quando o vi.
Estava parado ali, na porta da seção, parecendo um oficial alemão
de filme americano, sujeito forte, alto, aparentando uns quarenta anos, uns
um metro e oitenta de altura, louro, cabelo cortado escovinha, cara quadrada,
terno bem cortado (com colete e tudo), óculos de aro de metal dourado,
e uns olhos azuis que pareciam verrumas a perfurar madeira quando olhavam para
você.
"-O senhor quem é?"-perguntou, antes de me dar uma oportunidade
de dizer bom dia.
"-Agenor Lopes, seu criado".-respondi, olhando para cima.
"-Atrasado um minuto, seu Agenor. Entre logo, seus colegas o estão
aguardando".-disse num tom de voz que lembrava mais um terceiro sargento
de mau humor.
Entrei na seção e o que vi não me agradou. Meus colegas
estavam sentados em seus lugares, rígidos, com cara assustada, esperando
não sei o que. Normalmente, estariam papagueando entre si, especulando
sobre a vida alheia ou discutindo a última receita do bolo da moda. Como
não sou bobo nem nada, tratei de ir rapidinho para meu lugar, e assumi
a mesma posição.
O homem entrou, foi para a mesa antes ocupada pela pobre Dona Etelvina, pigarreou
e iniciou seu discurso.
Primeiro desancou a nossa antiga chefe, destacando o fato de que ela era muito
mole, muito boazinha, muito isso e aquilo e agora as coisas iam mudar. O serviço
estava atrasado, as coisas estavam devagar, o Secretário estava reclamando
e ele estava ali para botar as coisas em ordem.
E para isso a palavra chave era D-I-S-C-I-P-L-I-N-A. Nada de atrasos, de moleza,
de licenças, de enrolação. A coisa ia ser dura. Bobeou,
iria levar advertência, suspensão, e um processo administrativo
nos casos graves. E ele tinha suficiente influência para fazer com que
o infeliz fosse parar na R-U-A! Ele não estava ali para brincadeiras,
não ele, o Sr. Eberwaldo Tankstelle.
E não estava. O chefe logo tratou de saber o serviço de cada
um, tintim por tintim. Estabeleceu fluxos de serviço, controles de toda
a sorte, montou sua máquina, passou a mão no chicote (maneira
de dizer, é claro, embora só faltasse isso) e iniciou sua gestão
na Seção de Protocolo.
A rotina era invariável. De manhã, todos em suas mesas, às
oito em ponto. Ao entrar, ele dizia um bom dia! ao qual todos tinham que responder
sem exceção, mesmo que o dia prometesse ser uma porcaria. Se um
desatento não respondesse ao cumprimento, iria sofrer marcação
cerrada o dia inteiro. Depois que todos respondiam "Bom dia, seu Eberwaldo!",
ele sentava-se à sua escrivaninha, olhava para verificar se todos estavam
presentes e dizia: "Comecem".
E o trabalho começava com o barulho de chuva das máquinas de
escrever e o martelar incessante dos carimbos. Eberwaldo ia distribuindo o serviço
anotando num caderninho a hora (e os minutos, e os segundos, pasmem!) em que
o mesmo fora entregue ao infeliz. Cronometrava assim os tempos de produção
de cada um. Tudo era urgente! Tudo era para ontem! Nada de moleza, de deixa
pra depois.
E a cobrança era contínua:
-Dona Gertrudes, esse ofício vai demorar? Parece que a senhora está
datilografando todos os capítulos da novela das oito, Dona Gertrudes!
E tirava o relógio de bolso (daqueles que os antigos chamavam de "patacão",
com corrente e tudo) e ficava cronometrando, os olhos de verruma fixos em Dona
Gertrudes. Mais um pouco de demora e ela ouviria uma bronca federal do sujeito.
O ofício saía rapidinho!
-Seu Agenor, por que está olhando para Dona Tininha? Quer comprar?
-Não, seu Eberwaldo, estou pensando....
-O senhor não é pago pela Prefeitura para pensar, seu Agenor.
Trate de trabalhar...
-Dona Alice, sua máquina não tem o "w"?
-Tem sim, seu Eberwaldo...
-Então por que a senhora escreveu Eberwaldo com "v" e não
com "w"? Refaça todo o trabalho!
-Sim, seu Eberwaldo.
-Dona Tininha, onde a senhora estudou?
-No Colégio "Luz do Saber", seu Eberwaldo, por que?
-Acho que faltou luz no dia em que a senhora se diplomou, Dona Tininha. Nunca
lhe ensinaram que se escreve problema, e não "poblema"? Refaça
tudo, Dona Tininha, até aprender...
Não admitia erros de forma alguma. Qualquer errinho de datilografia
resultava numa descompostura seguida da obrigação do funcionário
em rebater TODO o trabalho, sob a fiscalização direta do Eberwaldo.
Eu passei maus bocados com o chefe. Um dia, ele achou que o carimbo para junção
de páginas no processo estava fraco demais. Falou um monte, chamou-me
de incompetente, de inútil, de monstro, mocorongo, e ficou uma hora me
ensinando a maneira correta de carimbar segundo "O Sistema de Qualidade
Total Eberwaldo" que ele estava implantando.
Nossa Seção parecia uma fábrica. Enquanto as outras mantinham
aquele clima alegre de conversa e camaradagem, a nossa trabalhava a todo vapor.
Quando não vinha serviço, éramos despachados para outra
seção "para ajudar" , o que implicava em irritação
por parte de outros chefes, que achavam aquilo uma intromissão em suas
áreas. Mas ninguém o contrariava, pois diziam que ele "era
assim com os homens".
Ficamos com fama de puxa-sacos e éramos malvistos em toda a Secretaria.
Não podíamos falar com ninguém no horário de expediente,
a não ser quando estritamente necessário. Ir ao banheiro era uma
tortura, pois o Eberwaldo cronometrava, na sala, o tempo que cada um levava
para fazer as necessidades. Era um clima pesado.
Tentamos nos vingar, contudo. O Jarbas, o nosso contínuo, chegou mais
cedo um dia e colocou quatro estalos de São João (ou biribas),
um debaixo de cada pé da cadeira do Eberwaldo. Quando o homem sentou,
ouviu-se um forte estalo que o fez pular para cima como um cabrito. Toda a seção
pagou caro pela ousadia, pois ninguém dedurou. Ficamos trabalhando sábados,
domingos e feriados, com marcação cerrada.
O Edinho, um artista e pintor de mão cheia, desenhou com esferográfica
preta uma mosca na parede logo atrás do Eberwaldo, tão bem desenhada
que parecia real. O Eberwaldo, maníaco por limpeza, tentou espantar a
mosca, que, é claro, não se moveu do lugar. Furioso, pegou uma
régua e plaf!, deu uma pancada no inseto de mentira, que, obviamente
continuou na parede, todo faceiro. Furioso, foi examinar a mosca, e quando percebeu
o ridículo da situação, ficou vermelho como um peru. Passamos
uma semana na sujeira do arquivo morto, entre baratas e teias de aranha, separando
documentos de 1923 a 1940!
É preciso observar que ninguém ria quando pregávamos peças
ao Eberwaldo. Fazíamos de conta que não tínhamos nada com
aquilo. Ele nos castigava com os serviços mais desagradáveis que
podia arrumar, estragava nossos fins-de-semana e feriados, infernizava nossas
vidas o tempo todo. Mesmo assim, ninguém dedurava, ninguém dava
bandeira.
A luta de guerrilhas continuava. A mesa do Eberwaldo tinha uma gaveta de madeira
(do tempo de Dona Etelvina) que emperrava e obrigava o ocupante a puxá-la
com força para abrir. Fiquei uma tarde, depois do expediente, limando
as bordas da gaveta. No dia seguinte, o Eberwaldo, como de costume, puxou a
gaveta com força e esta, como se tivesse uma mola atrás, saiu
como uma bala do encaixe e foi espatifar-se no chão, espalhando seu conteúdo.
Não nos puniu desta vez pois pensou que fosse um acidente (eu tive o
cuidado de remover os resíduos de madeira) mas nos odiou, por ter feito
um papel ridículo na frente de seus funcionários.
De outra feita, colocamos uma ratoeira armada dentro do bolso exterior direito
do paletó do Eberwaldo, uma hora antes da saída. Naquele dia,
ele estava um tanto apressado e, às cinco em ponto, saiu rapidamente
sem sequer um "Até amanhã".
No dia seguinte, veio trabalhar com a mão direita enfaixada, e como
resultado fomos fazer um "inventário" no Departamento de Limpeza
Pública, no meio do lixão, entre ratos e urubus, que durou uma
semana de torturas.
O mais engraçado é que ele não levava os casos aos superiores.
Uma simples peça dessas que aplicávamos poderia resultar em uma
exoneração para o "bem do serviço público"
para os responsáveis, mas ele não recorria a esse expediente.
Parecia que o prazer dele era nos aporrinhar a vida o máximo possível,
e nós decidimos então pagar na mesma moeda.
Aparentemente tinha apenas um vício: o de comer doces. Carregava sempre
balas recheadas nos bolsos, que fazia questão de chupar enquanto nos
observava trabalhando (ele, diga-se de passagem, não movia uma palha,
apenas distribuía e cobrava os trabalhos), com aquele ar frio e sádico.
Dona Tininha conseguiu, não se sabe por que artes do capeta, roubar
algumas balas do paletó do Eberwaldo, cujo recheio foi habilmente substituído
por um eficiente purgante, sendo as balas recolocadas no lugar de origem.
Foi um dia memorável, aquele, em que o Eberwaldo saiu correndo pela sala
afora em desespero, em direção ao banheiro masculino, enquanto
ficávamos quase roxos de tanto tentar segurar o riso. Dona Tininha ganhou
nossa admiração (e temor, devo confessar) para todo o sempre.
"The day after" , como dizem os americanos, foi de doer. Eberwaldo
resolveu vingar-se de outra forma. Foi até o depósito da Prefeitura
onde estavam guardados móveis antigos e equipamento obsoleto e "equipou"
nossa Seção com a maior coleção de antiguidades
e cacarecos que se tem notícia. Se já não estávamos
bem equipados, ficamos em situação muitíssimo pior.
A minha mesa, que já não era das mais novinhas, foi substituída
por uma do "tempo da azagaia de gancho", como dizia minha avó.
Tinha cupins, rangia, e estava toda marcada por inscrições feitas
a canivete do tipo "Zé ama Noca", ou "Juca é xarope",
coisas assim. Diziam que o Imperador D. Pedro I havia usado aquela mesa para
assinar não sei que decreto. Na verdade, acho que quem usou aquela mesa
primeiro no Brasil foi Pero Vaz de Caminha, sendo que o móvel já
era considerado velho quando veio de Portugal.
As máquinas elétricas foram substituídas por modelos da
década de trinta, mecânicos, que mais pareciam um guarda-louça
de metal que máquinas de escrever. Eu ganhei (eu disse ganhei?) uma Underwood
modelo 1933 que nem pintura tinha mais, a não ser uma decalcomania de
um cacho de uvas desbotado. A máquina, ao ser acionada, fazia o barulho
de uma escola de samba inteira. Quando eu datilografava alguma coisa, o Jarbas,
muito gozador, exclamava: "Olha a Protocolo aí, geeeente!!!!"
Todo o mundo ficou na mesma situação. Daquele dia em diante,
nada de usar canetas esferográficas. O Eberwaldo teve a pachorra de procurar,
encontrar e trazer tinteiros e canetas de pena (daquele tipo de molhar a pena
no tinteiro, antes de escrever) e nos obrigou a usá-las. Enquanto o resto
da Secretaria estava se informatizando, nós regredimos ao Século
XIX! Todos os dias o Jarbas tinha a gloriosa missão de encher os tinteiros,
o que ele fazia com um humor de cão.
E as exigências continuavam as mesmas. Mais rigor, mais serviços,
mais descomposturas....
Decidimos ir à forra. O braço armado do Movimento de Resistência
do Protocolo (M.R.P. - ala xiita) resolveu encontrar uma solução
definitiva. Tínhamos que colocar aquele sujeitinho no seu devido lugar,
mesmo que isso nos viesse a custar o emprego. Resolvemos observar o inimigo
e verificar qual seria o ponto mais fraco para podermos atacar. Alguém
pensou em colocar dinamite debaixo da cadeira, mas achamos drástico demais,
além do que poderíamos voar pelos ares juntamente com o chefe.
Não, nada de violências. Tínhamos que atingí-lo em
sua vaidade, em sua autoridade.
Foi aí que o Jarbas teve a brilhante ideia, que tratamos de por
em prática.
Foi naquela manhã de maio, quando iríamos completar seis meses
de cativeiro sob o jugo do "chefinho". Eu e Jarbas esvaziamos quatro
tinteiros em sacos de plástico e os colocamos por baixo do tampo da mesa
do Eberwaldo. A esses sacos, fechados com fita adesiva, ligamos um fio de linha
de pescar, bem fino. Eberwaldo tinha o costume de, após sentar, esticar
as pernas para a frente num movimento súbito, antes de ditar o que ele
chamava de "ordens do dia". Ao fazer isso, ele iria empurrar o fio,
que romperia os sacos, que....bem, o resto o senhor pode adivinhar.
Naquele dia ele chegou vestindo seu melhor terno, um cinza-claro. Grunhiu o
habitual "bom-dia" hipócrita de sempre (nunca havia um bom
dia com ele) e sentou-se à mesa, esticando as pernas como de costume.Ouvimos
o splash! da tinta e vimos a face do Eberwaldo mudar de rosado para amarelo,
de amarelo para púrpura, de púrpura para branco...
O homem levantou-se num pulo da mesa, com o colo inteiramente manchado de tinta
azul, que escorria pelas calças, estragando o belo terno favorito do
chefe. Eberwaldo quedou-se por alguns instantes olhando aparvalhado para o resultado
do horrível atentado, depois do que pegou sua cadeira, levou-a para o
centro da sala, subiu nela e, antes que pudéssemos dizer ou murmurar
qualquer coisa começou seu discurso:
"Durante seis meses, aguentei um bando de energúmenos, sacripantas,
borra-botas, incompetentes, indolentes, cretinos, inúteis e covardes.
Durante seis meses tentei fazer de um bando de cavalgaduras uma equipe eficiente
de profissionais. E o resultado aqui está! Sabotagem! Agressão!
Ingratidão! Revolta! Sabem o que vocês merecem?
E aí ocorreu a coisa mais insólita que já vi em minha
vida.
Sem dizer mais uma palavra, virou-se e soltou um longo e sonoro pum, seguido
de um salto mortal e uma cambalhota de circo, após a qual saiu gargalhando
em disparada, em direção à porta da seção.
Ficamos uns trinta segundos imobilizados em nossos lugares, completamente paralizados
pelo inesperado, absurdo quadro que vimos, após o que corremos também
atrás do Eberwaldo, cujas risadas ainda ouvíamos, lá fora.
Ao sairmos da Secretaria ainda o vimos dobrar a esquina saltitando e gargalhando.
Na certa o sujeito havia enlouquecido totalmente. Desta vez, a nossa inventividade
tinha ido longe demais.
Voltamos para o prédio e avisamos o pessoal do ocorrido. Não
mencionamos a nossa proeza com as tintas, isso ficaria para depois. O importante
era localizar o Eberwaldo antes que ele cometesse algum desatino, ou sofresse
algum acidente em seu desvario.
Imediatamente foram pegar os dados do chefe nos arquivos para entrar em contato
com a família para as providências. E aí tivemos a maior
surpresa de todas!
O Eberwaldo....não....existia! Eu explico. Quando foram verificar os
dados do Eberwaldo não encontraram qualquer ficha, pasta, arquivo, sobre
sua identidade. Não havia nenhuma nomeação, nenhum registro,
nada! O Eberwaldo não constava como funcionário da Prefeitura.
Incrédulos, pedimos para consultar o Secretário. Este informou
que o Eberwaldo apresentou-se logo após o pedido de licença médica
de Dona Etelvina, dizendo-se recomendado pelos "homens"e que a sua
nomeação estava para ser publicada no Diário Oficial do
Município. Como o Secretário necessitava urgente de um substituto
para Dona Etelvina mandou que assumisse imediatamente, apresentando seus documentos
ao setor do pessoal da Secretaria. Ele nunca o fez. Foi nosso chefe, nos atanazou
a vida por seis meses, sem qualquer autoridade para tanto! Todos os atos que
assinou no período foram anulados e tivemos que revisar todos os processos
onde a assinatura dele aparecia, um trabalho dos diabos!
Tentamos achar o nome dele na lista telefônica, na polícia, no
serviço de informações, em hospitais, hospícios,
necrotérios. Nada! Reviramos as gavetas de sua mesa à procura
de um indício, mínimo que fosse, e não encontramos nada.
Eberwaldo simplesmente desaparecera. E o mais espantoso é que, nestes
seis meses de serviço, ele não recebera um centavo de salário!
E ninguém notou que ele não recebia contracheques nem qualquer
forma de pagamento!.
Nunca solucionamos o mistério. Dona Etelvina voltou ao trabalho, recuperada,
e a coisa voltou ao que era, antes do Eberwaldo. Aposentei-me como funcionário
público e hoje vou levando minha vidinha. Mas às vezes tenho pesadelos.
Sonho que o Eberwaldo está de volta, com aquele patacão, cronometrando
nossas vidas com olhos de verruma....Esconjuro! Cruz credo!
O senhor pode publicar essa minha história aí, seu moço.
Mas por favor, mude meu nome. É capaz de...bom...o Eberwaldo pode me
achar para cobrar o terno. Nunca se sabe, né, seu moço?