Praga-de-mãe, filhote de cruz-credo com mula sem-cabeça, coisa
ruim, lobisomem, tinhoso, visagem... - era assim que o pessoal do bairro chamava
o Lulu, cachorro (eu disse cachorro?) que minha tia criava e que atemorizava
toda a redondeza com sua ferocidade.
Lulu? É, parece nome de cãozinho de madame, nomezinho delicado,
curtinho. Mas de delicado o Lulu não tinha nada, muito ao contrário.
Apareceu na casa de minha tia dado por alguém (na certa, um inimigo
oculto) na forma de uma bolinha felpuda, um pobre e inocente filhotinho. Mas
cedo mostrou a que vinha, pois foi, desde pequeno, dotado de dentes pontiagudos,
que ele aprendeu a usar bem cedo, para a dolorosa surpresa dos incautos que
ousavam acariciar o bichinho "inofensivo". E, depois que cresceu,
sua aparência em nada contribuía para ganhar a simpatia de quem
quer que fosse. Era uma mistura de buldogue com boxer, e algumas pitadas de
são-bernardo, que formavam um conjunto estranho, ameaçador. Junte-se
a isso uma cor cinza-suja salpicada de manchas pretas, e aí está
o Lulu. Mas o que aterrorizava mais eram seus dentes de lobo, afiados, sempre
expostos e ameaçadores.
Dizem que os animais não têm sentimentos e sim, instintos. Mas
na minha modesta opinião, tem sentimentos sim, e, particularmente no
que se refere a cães, as personalidades e diferenças entre um
e outro animal são bem marcantes.
O Lulu era mau, mau mesmo, e parecia sentir prazer nisso. Minha tia, em sua
bondade e ingenuidade, tratava o bicharoco como se o mesmo fosse a criatura
mais cândida e indefesa que houvera pisado sobre a face da Terra.
O carteiro, o entregador de gás, as crianças e os demais animais
do bairro não partilhavam da mesma opinião, pois para eles o famigerado
Lulu tornou-se o inimigo público número um das redondezas, verdadeiro
Cérbero, importado diretamente dos infernos.
Cartas, minha tia havia deixado de receber há muito. Desde que o último
carteiro saiu correndo pela rua de cuecas, tendo deixado as calças na
boca do monstro, com o traseiro e o orgulho feridos, nenhum carteiro ousou aproximar-se
a menos de vinte metros do portão da casa, sabedor das funestas consequências
em desafiar a fera.
O gás tinha que ser apanhado direto no depósito. Isso depois
que o Lulu, uma certa manhã, aproveitando o esquecimento criminoso do
portão aberto, saltou sobre o caminhão de gás iniciando
uma perseguição implacável ao pobre entregador, que corria
desesperado sobre os bujões fugindo à fera que por sua vez, rosnando
e mostrando as presas afiadas, mantinha-se a alguns centímetros dos calcanhares
do desinfeliz. O motorista, sem saber direito o que fazer, arrancou com o caminhão
e os moradores do bairro então presenciaram um espetáculo insólito:
um caminhão de entregas de gás a toda a velocidade, buzinando,
e sobre a carroceria um homem aterrorizado e um cão desenvolviam estranho
bailado sobre os bujões. Por sorte, talvez pelo fato do caminhão
ter se afastado muito da casa de minha tia, Lulu desistiu da perseguição
e saltou do caminhão, correndo célere para casa. Dizem que o pobre
entregador de gás nunca mais foi o mesmo depois daquilo.
Minha tia enfrentou sérios problemas desde então. Abaixo-assinados,
cartas de reclamação, visitas da polícia, xingamentos,
tudo por causa do Lulu, que ela continuava considerando a mais inocente e pacífica
das criaturas.
"-É uma injustiça!-bradava ela."O pobre bichinho é
incapaz de matar uma mosca!"
Mosca eu nunca vi. Mas qualquer coisa que se movesse e que invadisse seu território
seria implacavelmente atacada e, se possível, feita em pedaços
por suas garras.
A garotada do bairro, especialista em inventar artes, bolou até uma
maneira sui generis de malhar o judas, no sábado de aleluia. Em vez de
amarrar o coitado do boneco num poste, para posteriormente desancá-lo
a porretadas como de costume, simplesmente o atiravam no quintal de minha tia,
atiçando o cachorro com gritos e assobios. Lulu, enlouquecido pela algazarra,
atirava-se ao boneco com tal fúria que pedaços do mesmo eram arremessados
à rua, para alegria dos moleques e horror dos adultos que observavam
os acontecimentos a uma distância segura.
Um dia, porém, o feitiço virou contra o feiticeiro. Em uma dessas
comemorações de aleluia o cão, talvez enfurecido mais do
que da conta pelas provocações da garotada, em vez de atacar o
boneco, fez mais uma proeza. Conseguiu escalar a cerca da casa e saltar para
a rua, iniciando uma louca perseguição aos garotos que se espalharam
aterrorizados por todas as direções. Um gaiato disse mais tarde
que chegou a ouvir o judas gritar: Pega, LULU! Dá-lhe LULU!
Mas a verdade é que o Instituto Pasteur, na segunda-feira seguinte, recebeu
uma longa fila de garotos mordidos e mães aflitas, resultado de mais
uma do "cãozinho".
Pessoalmente, confesso, eu detestava o Lulu. Gosto de animais e respeito a
natureza, mas o Lulu, para mim, era uma bronca pessoal.
No primeiro dia em que tive o desprazer de conhecê-lo, quase levei uma
mordida do traiçoeiro animal. Lulu usava uma tática que raramente
falhava. Quando alguém visitava a casa pela primeira vez, o "disgramado"
do cachorro fingia-se de desinteressado, nem olhando para o visitante, como
se este nem estivesse ali.
Mas quando o incauto passava por ele sentindo-se seguro, Lulu virava-se e arremetia
contra o calcanhar do sujeito com tal fúria, que só restava ao
pobre coitado berrar como um cabrito e tratar de safar-se da melhor maneira
da fera. O dono da farmácia do bairro, obviamente fã de carteirinha
de Lulu, ganhou um bom dinheiro em curativos e remédios para as vítimas,
pagos por minha tia.
Eu tive a sorte de olhar para trás no momento certo, e, graças
a meus bons reflexos, retirei o pé no momento exato do nhac! das mandíbulas
do animal e pulei a cerca antes que, recuperando-se do erro, o bicho arremetesse
novamente, desta vez contra a parte do corpo que utilizo para sentar.
Desde aquele dia, eu e Lulu tornamo-nos inimigos irreconciliáveis. Para
o animal, tornou-se ponto de honra morder-me, visto ter errado naquele dia.
E para mim, sabedor das façanhas do bruto, seria um prazer fazê-lo
de bobo e burlar suas investidas.
De outra feita, fui uma tarde visitar minha tia e não vi o bicharoco
no quintal. Minha tia informou que estava preso, perto da casinha e não
havia perigo. Entrei na casa e, enquanto aguardava minha tia na sala, eis que
na minha frente surge o monstro! Olhava para mim com olhar matreiro com se dissesse,
feito a mangueira de incêndio do livro de Stephen King: "Ora, não
tenha medo! Eu só vou morder, morder e morder!"
Não dei tempo ao sujeitinho. Atirei sobre ele uma revista que foi certeira
ao focinho da peste e, enquanto a fera se recuperava do susto, embarafustei-me
pelo quarto contíguo fechando a porta atrás de mim, ao mesmo tempo
que ouvia o sinistro baque do corpo de Lulu contra a porta e o rosnar de frustração.
Escapei por pouco, mais uma vez!
Foi aí que decidi vingar-me de Lulu, fazê-lo pagar por todas as
estripulias que aprontou e pelas que viesse a aprontar no futuro. Não,
eu não queria matar o Lulu. Seria incapaz de tal coisa, mas ao mesmo
tempo queria ferir seu orgulho, mostrar quem era o mais esperto!
Antes de continuar, eu queria abrir aqui um parêntesis para falar da casinha
do Lulu. Não existe coisa mais prosaica do que uma casinha de cachorro,
mas a do Lulu tinha que ser diferente. Minha tia (a única pessoa na Terra
a quem o Lulu respeitava) comprou uma "casinha" no formato de um castelo,
com torretas e tudo a que tinha direito, enorme, podendo abrigar uma família
toda de Lulus, se é que um só não bastasse!
Para ilustrar melhor o que vou narrar a seguir, a casinha do Lulu ficava no
fundo de um corredor lateral, no lado direito da casa, corredor esse fechado
à frente por um alto portão de ferro, e tendo por acesso uma porta,
a da cozinha, que ligava o corredor à casa. Minha tia, relutantemente,
colocou o Lulu fechado ali para evitar problemas durante o dia, sendo que a
fera era solta à noite, se bem que duvido que alguém fosse capaz
de entrar na casa com o Lulu patrulhando o pedaço.
A casinha do Lulu era motivo para muitas histórias no bairro. Diziam
que era assombrada pelas almas de gatos mortos pelo cão no passado e
que à noite miados pungentes podiam ser ouvidos pela vizinhança.
Outros afirmavam que, dentro da enorme casinha, estavam esqueletos de carteiros
e de um ladrão de casas, visto pela última vez rondando nas imediações.
Tudo lenda, é claro, mas o aspecto da casinha era mesmo tétrico,
bem de acordo com o morador.
Voltando à narrativa, eu queria vingar-me. Mas como? Enfrentar o Lulu
no braço, nem pensar, o animal era uma parada indigesta, e não
haveria pancada capaz de segurá-lo. Como disse antes, eu tinha que ferir
seu orgulho, pegá-lo desprevenido, aplicar-lhe uma lição
inesquecível!
Passei a observar a fera, à distância, com mais atenção,
para pegar um ponto fraco, um momento no qual o bruto ficasse indefeso, desatento,
sujeito a um ataque fulminante, rápido, indefensável!
Foi quando notei que o único momento no qual Lulu se mostrava desatento,
até mesmo distraído, era quando se alimentava. Isso mesmo! Quando
minha tia colocava comida na cuia (que mais parecia uma tigela) do cão,
ele se atirava à comida com tal sofreguidão que parecia que o
mundo havia parado em volta. Comia com tal prazer, que os olhinhos malévolos
fechavam-se, tornando-se assim, por alguns momentos, indefeso como um cordeirinho!
A cuia era colocada em frente à casinha, e Lulu tinha o peculiar costume
de voltar o traseiro para o portão, enquanto comia, ficando sua cabeça
voltada para a porta da casinha! E, além disso, minha tia mantinha o
bicho acorrentado quando tinha visitas, para evitar surpresas desagradáveis.
Então um plano maquiavélico foi tomando forma em minha mente.
Aí está! Aproveitar o momento de distração do animal
e....Isso mesmo!
Com o plano de vingança em mente, fui visitar minha tia na hora do almoço,
hora na qual minha tia sempre alimentava o animal. Entabulei alguma conversa
com ela enquanto a observava preparando a cuia para a besta-fera. Vi-a então
sair para o corredor levando a cuia e a observei da porta servindo a comida
ao Lulu. Ela logo retornou e eu pedi a ela então que me trouxesse um
livro que sabia que ela possuía. Minha tia, sempre solícita, imediatamente
seguiu para a sala para pegar tal livro.
Eu tinha três minutos para por o plano em prática. Enquanto ela
procurava o livro no interior da casa saí, pé ante pé da
cozinha para o corredor e, como esperava, lá estava o Lulu, comendo,
com o traseiro voltado em minha direção, totalmente distraído.
Silenciosamente fui me aproximando, chegando cada vez mais perto. Pelo movimentar-se
da cuia, cada vez mais rápido, percebi que a comida estava se acabando,
e logo Lulu estaria de novo alerta, e eu perderia a oportunidade. Entretanto,
eu não podia apressar-me. Qualquer movimento brusco ou ruído de
minha parte alertaria a fera.
Cheguei à distância que desejava e admirei-me que o bicho não
houvesse me pressentido. Eu estava certo! Lulu ficava completamente alheio ao
mundo enquanto comia, o que fazia satisfeito, com a cauda felpuda levantada
como uma bandeira de regimento em dia de parada.
Mirei no ponto exato localizado logo abaixo de onde sua cauda ligava-se ao
corpo (não preciso explicar mais, não é, caro leitor?)
e pespeguei-lhe violento pontapé.
O resultado foi devastador. Com um ganido misto de dor e surpresa, Lulu, com
a respectiva cuia, corrente e tudo o mais, foi violentamente arremessado para
dentro da casinha, causando um barulho parecido com um crash! e o som característico
da corrente enrolando-se dentro da casinha.
Afastei-me rapidamente a uma distância segura pois sabia que o bicho
sairia furioso da casinha para apanhar quem o tivesse agredido.
Porém, para minha surpresa, ouvi o silêncio. De dentro da casa
ouvi a voz de minha tia chamando-me e distraí-me por um segundo. Quando
olhei para a casinha novamente, vi a cabeça do Lulu saindo pela portinhola,
depois o corpo, e (é estranho como podemos perceber os detalhes com tamanha
precisão em frações de segundo) vi que ele estava sem a
coleira. Lulu estava livre!
Não prevendo tal situação, eu havia me colocado além
da entrada da cozinha, não havendo tempo de entrar e fechar a porta.
Lulu vinha na velocidade de um trem expresso desgovernado, dentes a mostra,
expressão de fúria só equivalente à de um tigre
ensandecido.
Agi por reflexo. Virei-me e desatei a correr, mergulhado em puro desespero,
em direção ao portão de ferro. Era agora uma questão
de sobrevivência. Lulu não iria simplesmente morder-me. Eu seria
implacavelmente estraçalhado, sem apelação. Minha vida
toda passou-me pela mente como um "flash-back" maluco, de trás
para a frente.
Não sei, até hoje, como consegui galgar o portão. Como
num filme em câmara lenta, saltei sobre o portão, sem ferir-me
nas lanças pontiagudas de metal e caí do outro lado, estatelando-me
no chão do quintal, e fraturando o braço na queda. Meu primeiro
movimento foi o de olhar do outro lado do portão e ver Lulu debatendo-se
furioso, rosnando e latindo, tentando pegar-me em vão.
Só tive tempo de gritar "Chupa essa, Lulu!" e desmaiar em
seguida, de dor.
Fiquei uns bons dias de molho com o braço engessado. Não disse
à minha tia que aquilo fora o resultado de uma vingança. Para
ela, Lulu havia escapado da corrente, me surpreendendo no corredor, e eu, pobre
vítima, havia conseguido pular o portão em tempo. Somente deu-me
uma bronca por haver entrado no corredor e atraído a atenção
do cachorro, que agora (vejam só!) ela reconhecia como sendo de maus
bofes.
Aí então que uma coisa estranha ocorreu. Lulu, que nunca até
então apresentado qualquer problema de saúde, adoeceu. Tornou-se
macambúzio, ficava encerrado na casinha e, em determinado momento, parou
de comer. Depois de convencer a muito custo o veterinário do bairro a
examinar o animal (o que foi feito, pasmem, sem qualquer resistência do
Lulu) não foi constatada nenhuma doença aparente. Lulu parecia
estar doente de melancolia.
E, antes de completar-se um mês do incidente, Lulu morreu. Amanheceu
morto, dentro de sua casinha, conforme relato de minha tia.
Tenho uma teoria sobre sua morte. Morreu de frustração. Frustração
de não ter me apanhado, de não ter se vingado da afronta que sofreu.
Eu havia vencido, eu havia feito Lulu de bobo, e ele não aguentou.
Em sua ferocidade, tinha talvez um código de conduta que não pôde
honrar, e isto o matou.
Podem me chamar de maluco, mas acredito nessa teoria. Eu o venci. E ele morreu
por isso. Não fui vê-lo, por temor e respeito. Temor de que ele
de repente voltasse à vida para me dar o troco e respeito pelo que ele
foi no passado.
Descanse em paz, Lulu.