Convulsas e rápidas, passavam as nuvens. Se alguma pessoa tivesse coragem
para estar ali observando esta cena, proporcionada pelo mau humor o tempo, diria
que as nuvens pareciam enormes elefantes fantasmas; cinzas, enormes e desajeitados,
cuspindo raios pelos olhos, mas ninguém era corajoso, ou louco, o suficiente,
por isso as únicas testemunhas, do tenebroso céu de chumbo, eram
as árvores, que numa dança frenética, pareciam curvar-se
diante do poder do vento.
Entre o estrondo de um raio e o brilho de outro, Ledy viu as luzes do que seria
o tão procurado abrigo. Ele não pensou duas vezes, correu para lá,
para o conforto e aconchego da rodoviária. Ao chegar no abrigo, Ledy olhou
para trás e por um momento observou que o estranho balé encenado
pelas árvores não era tão assustador visto assim de longe,
entretanto ele sequer considerava a possibilidade de voltar para a chuva.
Assim como Ledy, vários semelhantes seus tiveram a mesma ideia,
por isso a recepção a ele não foi das mais agradáveis.
Em resposta, Ledy eriçou seus pelos e rosnou ameaçadoramente para
os cães que o cercavam, isso fez com que o faxineiro dispersasse-os com
um balde de água.
Passada a confusão o cão aproximou-se de uma menina que estava comendo
pipocas. O resultado da aproximação foi exatamente o desejado por
ele: uma generosa porção de pipocas arremessadas no chão.
A reação da mãe da menina também já era imaginada
por Ledy, ela pegou o pacote de pipocas da mão da filha, num sinal de avareza,
guardou-o na bolsa, pegou na mão da filha e a arrastou para longe do cão,
que sem entender nada, ficou só observando, porém ele sentiu uma
enorme satisfação quando a mãe da menina tropeçou
e caiu de peito em uma poça de água proveniente de uma goteira no
meio do terminal rodoviário.
Ledy, um pastor alemão puro, parou na ponta do terminal rodoviário
e ficou observando a chuva que caia cada vez mais forte, relembrando a brincadeira
feita por seu dono. Num certo dia, há mais ou menos um mês, seu antigo
dono o colocou no carro e guiou até uma rua sem muito movimento, chegando
nesse local seu dono abriu a porta do carro, pegou uma bola de borracha e arremessou-a,
ordenando que Ledy fosse buscá-la. O cão não pensou duas
vezes e precipitou-se para fora do carro. Ele já conhecia essa brincadeira
desde o tempo em que era filhote. Porém o que o idoso pastor não
esperava era o fato de seu dono ir embora sem esperá-lo. Ledy imaginou
que isso fizesse parte de alguma nova brincadeira, por isso desde esse dia ele
está procurando seu dono; nesse esconde-esconde idealizado pelo cão,
que era incapaz de imaginar o fato de ele ter sido abandonado, como um sapato
velho, pelo fato de ser velho e estar fora dos padrões de beleza exigidos
pelo seu ex-dono.
A chuva passou e Ledy, com suas orelhas caídas devido a sua idade avançada
(é os cães também sofrem com a lei da gravidade devido ao
passar do tempo) caminhou pela rodoviária, numa espécie de reconhecimento
da região. Uma enorme quantidade de deuses foi o que Ledy percebeu em seu
passeio. Deuses, para o cão, eram os seres humanos. Essa definição
(que com certeza constará no primeiro manual de teologia canina, lógico
quando este for escrito), é dada devido a superioridade dos humanos, segundo
a perspectiva dos cães, em relação aos outros seres. Os humanos
não necessitam das quatro patas apoiadas no chão para se locomoverem,
eles exercem domínio sobre seres menores, são hábeis no manuseio
de objetos inanimados, constróem casas quentes e confortáveis, também
constróem animais de aço para se locomoverem mais rápido
(esses animais também são conhecidos como carros), usam roupas (que
para os cães é algo fantástico) e o principal motivo da superioridade,
na opinião de Ledy, é o fato de eles criarem e dominarem as leis
que regem todos os seres, desde os próprios deuses até os seres
inanimados. Essa é a filosofia idealizada por Ledy, e provavelmente por
outros cães também, baseada no que é visível e palpável,
sem a necessidade de se criar um ser a sua própria imagem e semelhança
para poder crer nele.
Em um cante escuro, há mais ou menos uns cem metros da rodoviária,
Ledy percebeu uma espécie de deuses que até então ele não
conhecia. Esses deuses eram deuses fêmeas, porém estavam desprovidos
de um poder que para Ledy era importantíssimo, esses deuses fêmeas
(ou deusas, tanto faz) estavam quase sem roupa, mesmo com o forte frio que estava
fazendo. Mas não foi só a falta de roupa que chamou a atenção
do cachorro, elas emitiam sons estranhos que Ledy não entendia (não
que ele entendesse o que os outros deuses pronunciavam, mas o som dessas deusas
era bem mais estranho). Quase uma hora foi o tempo que o cão ficou ali
observando o que para ele devia ser algum estranho ritual, pois de tempo em tempo
surgia um deus em seu animal de aço, que tinha um latido estranho semelhante
a bê bê, e após esse sinal uma ou mais deusas entravavam no
animal de aço e sumiam. Isso se repetiu várias vezes enquanto Ledy
esteve ali observando, mas ele se enjoou disso e foi embora.
De volta a rodoviária, em um canto escuro, o idoso cão conheceu
mais estranho tipo de deus que ainda não conhecia. Esse novo tipo de deus
era um deus não tinha como se negar esse fato, porém não
gozava de seus poderes divinizadores, ele não tinha uma casa quente e confortável
para se abrigar, por isso estava ali com seus poucos pertences, não possuía
roupas como a dos outros deuses, não estava em movimento, indo ou vindo,
como os outros da sua espécie, estava simplesmente ali parado pronunciando
palavras que o cão não entendia. Entretanto o cão percebeu
que não era só ele que entendia as palavras do deus decaído,
os deuses que por ali passavam também não deviam entender, pois
passavam e nem sequer percebiam a presença daquele estranho deus desprovido
de poder.
Ledy ficou por horas ali parado contemplando aquele deus decaído. O cão
ponderava a cada instante a possibilidade de abrir mão de sua liberdade
individual e se associar ao deus desprovido de poder, formando desta maneira uma
sociedade alternativa. Se o cão pensasse como os deuses, ele provavelmente
pensaria: porque não, somos tão semelhantes perante os outros deuses,
mas Ledy não pensava assim e no momento em que ele se decidiu em iniciar
uma aproximação, o deus decaído foi cercado por deuses encapuzados
que surraram-no sem piedade. O bravo cão idoso sentiu um impulso dentro
de si e partiu em defesa do deus que estava sendo espancado.
Um braço rasgado e uma perna dilacerada foram os estragos proporcionados
pelo cão aos deuses maus, mas o que realmente dispersou-os foi a sirene
do carro de polícia que se aproximava. No momento em que a polícia
chegou os agressores já haviam fugido.
Se ledy soubesse ver as horas no relógio, ele saberia que os bombeiros
chegaram para socorrer o deus espancado em menos de dez minutos, mas o socorro
chegou tarde demais. Coincidente ao nascer do dia foi o morrer do deus desprovido
de poderes e de direitos.
Ledy, que ficou ali parado olhando a estranha movimentação dos deuses,
chamou a atenção do bombeiro, que colocou o corpo sem vida do mendigo
no carro de resgate. Ao ouvir a história narrada pelos policiais o bombeiro
aproximou-se do cachorro, fez-lhe carinho, o que causou estranhamento em Ledy,
pois desde que ele havia sido abandonado essa era a primeira vez que algum deus
lhe fazia um agrado, e o levou para casa.
Naquele belo amanhecer a vida de Ledy mudou para melhor. O período que
ele permaneceu na rua foi semelhante a tempestade da noite anterior, pois assim
como esta, veio, foi intenso, porém se dissipou e agora transformou-se
em um belo amanhecer. Amanhecer que o deus desprovido de poder não pode
ver.