A Garganta da Serpente
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Butterfly

(Raimundo de Moraes)

Correndo, sentia a terra fofa, a grama molhada em chap-chap contínuo, e o céu azul-cinza parecia abaulado como dentro de uma luneta antiga. Mas a casa, a casa não parecia distanciar-se, por mais que corresse na grama fria, ela estava ali imponente em suas falsas colunas dóricas, a casa que poderia ser um templo Batista erguido só-Deus-sabe-onde ou um exemplar kitsch de uma fazenda na Geórgia ou Atlanta, onde o vento tinha levado Scarlett e sua alma, seus cachos de boneca, seus azedumes e seus espartilhos de virgem, rolando, rolando sob o uivo de tufões, tempestades, invernos intermináveis. Mas ali não existiam nem Bert nem Scarlett e ela corria na grama fofa e nada parecia mover-se, a casa soturna, o céu escuro, aquelas colunas gigantescas que bem poderiam estar segurando o universo e a chuva contida em arco. Estava cansada, era preciso fugir. "Elvira!", ouvia alguém gritar lhe chamando, mas sabia que seu nome não era Elvira. Ainda assim aquele grito vinha tortuoso em labirinto a perseguir-lhe no jardim de húmus, hera, cheiro de grama molhada. Um mocho invisível de quando e quando pipiava triste, triste, o vento fazia redemoinhos em todos os cantos e a casa crescia, parecia respirar e expandir seus domínios.

"Elvira!".

O braço leitoso pendia fora do edredom. Ofegava como se ainda estivesse a correr. Que estranho lugar. O quarto era branco, os móveis brancos, o chão branco poderia servir como lápide para dezenas de mortos. E em contraste o edredom agasalhava seu corpo também branco numa concha multicolorida, crescida até o chão. Assim, lesma de si, névoa que respira, ectoplasma de Vênus - acordou para a quinta-feira escura. Uma da tarde.

Uma e trinta. O capuccino ejetando seu calor e perfume e ela com o controle remoto na outra mão procurava seu programa favorito: as pessoas num tribunal televisivo, brigando por mazelas e mostrando o quanto tudo é fútil, Dio mio. Agora, uma vizinha ataca o vizinho porque o cachorro dele engravidou sua cadelinha.

Duas e dez. Apalpou o minúsculo seio dolorido. Ontem cinco homens fizeram do seu corpo um açougue. E ela, um pouco trêmula e satisfeita, recordava as bolinações e de quanto dinheiro tinha ganho. Dinheiro! Dinheiro! Dinheiro! Era tudo na vida, enfim. Sempre vinha em flashes as primeiras vezes que foi oferecer-se em via pública. A capa de seda preta agitada ao vento, ela incrivelmente etérea sobre um salto agulha. Bona! bona! (gostosa! gostosa!) gritavam-lhe os homens em seus carros reluzentes. Às vezes ela pintava-se de tal maneira que parecia uma máscara do teatro kabuki: a cara branquíssima, as pálpebras pesadas de negro. E com aquelas pernas de fora - quem poderia resistir à tal aparição?

Cinco horas. Pensa em Angelo, no aluguel, na briga entre Cláudia e Adriana. Adriana perguntou-lhe: que rosas são as mais chiques?, ela quer conquistar Cláudia com um grande buquê, como se ela fosse ligar para isso. As rosas vermelhas ainda em botão sempre impressionam, mas é inútil, Cláudia só gosta de homem. Adriana cansou da indiferença. Brigaram. E daí? Cláudia é a mais bela de todas, um monumento loiro, pouco está se lixando se alguém está louco por ela. O que importa é seu espelhinho redondo, um batom e um pouco de fumo na bolsa.

Seis da tarde. Preguiça de cozinhar ou jantar fora. Faz um sanduíche. Começa a contagem regressiva. Nessas horas, centenas delas começam a mesma metamorfose, afogadas em haxixe, cocaína ou uísque. Ela se afoga em vinho. O seu preferido chama-se Duchesa Lia, um frizzante lá da região de Forli. Prefere o néctar das uvas. Quando bebe muito uísque no dia seguinte acorda elétrica e com vontade de gritar.

Vinte uma e trinta. Após o make-up, pensa: quantas vidas já tive? Boquiaberta, pisca diante do espelho do banheiro, o vidro de perfume na mão. O mundo parece ter começado quando ela decidiu não deixar-se possuir por ninguém. "Minha alma, nunca!". Não sabia mais se os homens é que a usavam ou ela é que usava os homens. Um dia, pensou, já fui uma coisinha muito insignificante. Trabalhava em banco e contava os dinheiros que não eram meus. E à noite, na faculdade, estudava porcarias que nunca iria usar na vida real. Pegou o copo. Aspirou o cheiro adocicado do vinho. Depois ergueu os olhos para o espelho: "beautiful butterfly !". Sorriu à La Gioconda.

Vinte e duas e quinze. Não sente frio, o sol que maturou as uvas do Duchesa agora lhe aquece o corpo, as ideias, a voz. Toc-toc-toc fazem seus sapatos na Via Principe Amadeo (usa sempre Pollini, de preferência os de verniz preto). Os faróis cruzam as esquinas. As luzes a fazem lembrar um show do U-2. Em Barcelona? Ou em Milão?

Talvez seja sua última semana nas ruas. Todas agora colocam anúncio no jornal e atendem os clientes através do telefone. Mas será que se acostumaria? É uma rotina cruel: acordar, cuidar um pouco da casa, cuidar muito de si, aprontar-se, beber, sair. Às vezes ter que ouvir histórias chatas de clientes que, entre um orgasmo e outro, reclamam da vida que levam. A semana tem suas características: nas segundas geralmente aparecem os casados, nas terças e quartas os que procuram novidade, nas sextas os boêmios. Não trabalha aos domingos e aos sábados é uma festa, i ragazzi saem procurando sexo e diversão. Gosta de ser vista, gosta de ser coccolata. A propósito, como é coccolare em português? Está esquecendo o idioma e quase sempre fica deprimida quando liga para a mãe no Brasil e mistura as palavras em português e italiano. Mesmo assim, as mães sempre sabem da verdade, em qualquer dialeto.

Meia-noite. Está no carro, com Luca. Ele trabalha no porto de Ravena e aparece para vê-la todas as semanas. É um dos que sente grande atração. Tem os olhos azuis cor-de-céu, o céu de Rimini no mês de maio. Mas não pode dizer que ele é especial. Diferenciar clientes é semear prejuízos no futuro, um dia eles acabam barganhando: mi fai un sconto, dai. Non siamo amici? É uma profissional, e se orgulha disso. Nunca faz descontos. Nas lojas, nunca lhe dão descontos. O dono do apartamento nunca lhe dá descontos na hora de pagar o aluguel. E diz, altiva e com um ar de tédio para aqueles que lhe pedem precinhos especiais: "eu sou cara. Se você não pode pagar, procure uma daquelas que trabalha na beira da estrada, no Gros." Só em pensar em baratear seus serviços lhe vem arrepios. Acostumou-se com o luxo muito rapidamente.

Se apaixonaria por Luca? Talvez. Ele é tão calado, tão misterioso. Nunca o beijou na boca. O que transmitem seus lábios a uma mulher, na hora do gozo? Quando está com Angelo, sente proteção e ao mesmo tempo aventura. Ele é um tipo paternal. Mas é casado, jamais largaria esposa e filhos por uma puttana, por mais linda e cheirosa que ela fosse.

Duas horas. Em casa, com o último cliente da noite. Cavalgando o homem, decide comprar o vestido de veludo que viu na Tally-Ho. A glande sufocada em látex, ele geme penetrando-a com força. Então misturam-se a visão do vestido na vitrine, o peito forte e os bíceps, o quarto branco, suas próprias pernas abertas em arco. Ela sabe que dilacerando suas entranhas o cliente vinga-se de todas as mulheres de sua família. (Será que a mãe dele é uma beata que vai rezar na Igreja de São Francisco? E faz nhoques às quartas-feiras?). Toma! Toma! Prendi tutto! Ah! (Freud e la petite mort).

Duas e trinta. Muitas ainda estão na rua. Mas ela, afortunada, bela e sozinha, fica nua e vai pro chuveiro. Tem a sensação que tudo é mesmo um sonho, nunca acordarei.

E acordando, quem sobreviveria?

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