Olhou para o marido estatelado na poltrona. Camisa semiaberta, gravata caída
no chão. Estava catatônico, uma estátua de olhar cego.
- Nada hoje?
Ele não respondeu.
Depois, com um gesto que até lhe assustou, ele apoiou a cabeça
nas mãos, olhando o chão como se fosse um abismo:
- ...sou um homem aniquilado.
Aquilo já durava quase um ano. Ninguém lhe dava emprego, meu Deus.
- Tenho quarenta e cinco anos e morri pro mundo. Ninguém neste país
quer saber de quem tem mais de quarenta.
Ele tinha quarenta e cinco, ela quarenta, e sabia fazer nhoques.
Lembrara quando ele, no dia do noivado, lhe pedira para deixar o curso de Biologia.
Ele dizia: você, em vez de estudar, poderia se interessar por coisas mais...
mais "domésticas"...
- Domésticas?
- Ser uma boa dona de casa, cozinhar, fazer nhoques, sei lá...
- Nhoques?
- Ser uma mulher de verdade, entende? Acordar, supervisionar a casa, ter seu
marido e filhos para cuidar, entende?
Nhoques...
Agora sabia de cor a receita. É assim:
Ah não importa.
Sentia-se culpada por algo. A "felix culpa" como ensinavam as freiras?
Mas que culpa feliz é essa? Como alguém em sã consciência
pode ser feliz culpado? Isto lhe custou muitos anos de reflexão e muitos
nhoques.
A fábrica do marido faliu e as dívidas dos empréstimos
bancários abarcaram todo o patrimônio da família. E ninguém
agora lhe dava emprego.
Lembra de um dos jantares pós-falência - inúmeros jantares
onde o marido a carregava para "fazer contatos" com amigos(?), ex-fornecedores,
ex-parceiros de negócios. Entre sorrisos e salmões, a tentativa
de fazer-se lembrado, de não o jogarem na lata de lixo do esquecimento.
O casal que frequentara um dia a casa deles ria como se desgraça
fosse algo digerível na sobremesa. Margot ostentava um colar de pérolas
de três voltas com brincos combinando. Celso pediu um bordeaux indicado
pelo maitre. Safra 1959. Um jantar milionário. Sem nhoques, sem emprego.
Margot e Celso continuaram a sair nas colunas sociais, e ela e o marido deslocavam-se
para a retaguarda. Coluna social não é obra de caridade, não
há espaço para os falidos.
Olhou para o luxo do apartamento, onde o marido estava incluído como...
como "um aniquilado". Pensou tão baixo que mal ouviu a si mesma.
Aquilo poderia piorar e eles obrigados a vender tudo e ir morar no subúrbio.
Só não passavam fome porque restaram três salas comerciais,
alugadas. A sogra, viúva de desembargador, pagava a escola dos dois filhos.
E quando entrarem para a universidade?
Perdera as esperanças de reaver as joias empenhadas. Semana passada
deixou mais quatros vestidos no brechó das "novas pobres".
Lá se podia encontrar Valentino e Dior de ex-divas, ex-As 10 Mais Bem
Vestidas, ex-ricas, ex-madames. A dona da loja tinha a delicadeza de mandar
pegar os vestidos e acessórios nas casas das freguesas. Afinal, em sociedade
tudo se sabe.
Suspirou.
Na testa dele pequenas gotas de suor. O medo. O medo de recomeçar e quem
sabe de novo perder.
Que palavras devem ser ditas para um homem de quarenta e cinco anos desempregado
e aniquilado? As mesmas que se diz quando, no sexo, ele não funciona?
Não se preocupe, da próxima vez será melhor.
Aproximou-se e afagou-lhe o restante dos cabelos:
- Não se preocupe, amanhã será outro dia...
Ele teve vontade de vomitar. O desespero há muito tinha se transformado
em náusea. Até ela, a mulher, lhe causava repugnância.
E ela, por sua vez, tinha um medo atroz que a deixava sem identidade, anêmica.
Tinha medo que todos da família entrassem para o exército dos
fracassados, essa enorme massa de seres que poderia povoar mais duas Terras.
E os vizinhos? Os vizinhos agora davam bom-dia desconfiados. Tinham que manter
a farsa até quando? Quando descobrirem que ele está aniq, desempregado,
continuarão a dar bom-dia ou abaixarão as cabeças com a
felix culpa a pulsar-lhes no peito?
O que poderia fazer? O telefone pouco toca, convites para casamentos não
chegam mais e lavar panelas era horrível. No momento só podiam
manter uma faxineira duas vezes por semana.
Olhou também para o chão como se ele fosse um abismo.
Era incrível como a pobreza cintila até num vaso de cristal, pensou.
A pobreza é um halo bolorento. Ali estavam grandes tapetes, opalinas,
almofadas de cetim, quadros. Paralisados numa existência que não
mais lhes pertenciam. Gangrenados num momento de esplendor.
Alguém muito sensível poderia captar que a Pobreza agora sentava-se
naqueles sofás e contemplava-se fascinada nas baixelas de prata.
Segurou a mão do marido. O nojo que ele sentia tinha passado. Juntos
contemplavam o vazio. O vazio dividido em dois e ao mesmo tempo um.
Ela pensou que gastara tempo demais comandando empregados e fazendo nhoques.
Ele sofria porque teria muito tempo ainda, a vida é longa (apesar de
já terem assinado seu óbito) e ao mesmo tempo curta (pois já
se passaram quarenta e cinco anos).