A Garganta da Serpente

Rafael Falcón

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O Primeiro Poste

(Rafael Falcón)

As ruas costumam tornar-se menos perigosas e minóicas, quando anda-se por elas frequentemente. Assim era para Rafael, que já conhecia os misteriosos caminhos daquela região. Um ano inteiro de esforços dera-lhe algo para se orgulhar.

- Minóicas. - sussurrou o rapaz, como a falar com alguém - Gosto do termo, mas não é certo deixar nosso amigo confuso. Estas ruas lembram-me, com suas inúmeras saídas, o labirinto construído pelo célebre Rei Minos de Creta para seu Minotauro.

Falava sozinho, como sempre, e o leitor conformar-se-á com isso. No fim das contas, Rafael é um bom rapaz, e nunca se deverá desprezar quem aprende a perambular por aquelas ruas. Pois ele caminhava, distraído pelas luzes dos raros postes, erguendo os seus próprios postes como passatempo; teria continuado, não tivesse visto uma estranha mulher observando uma de suas obras urbanas. Gritou a moça:

- Que te mantém aqui, meu menino?

- Me mantém a inércia - respondeu Rafael, ao que retorquiu a mulher:

- Então, há um lugar a que devo levar-te!

Num piscar de olhos, tudo mudou: as luzes surgiram, ofuscantes, e os postadores também; as grandes e poderosas lâmpadas enchiam a rua, e foi mais do que simples compreender. O jovem postador sabia que, naquela hora, tinha a chance de fazer algo para ser visto. Algo grandioso, que seria examinado e julgado. Olhou nos olhos de sua guia, e assim mais se espantou e apaixonou; duas opalas amarelas mostraram-lhe que chegara num verdadeiro ninho de cobras.

Na garganta da serpente, Rafael não era só uma presa. Viu-se engolido, é bem verdade, por mais aquela rua de sua cidade (perdoai as rimas, mania de poeta); no reino dos ofídios, entretanto, tornou-se parte do que via. Restava, somente, planejar e construir aquele que seria seu primeiro marco no novo domínio: o poste inicial. Nada avançado demais, que se muito se empolgasse estragaria tudo; não seria também algo que prometesse grandes evoluções, ou arriscava-se a perder o ritmo e decepcionar os novos colegas. Giraram ideias e fantasias ao redor da pobre cabeça do novo morador, que depois de biliões de milhões de minutos, decidiu: faria um dos seus postes contados. O que é exatamente um poste contado, não vem ao caso; o que vem ao caso é que, no momento da decisão, Rafael gritou, entusiasmado e ao mesmo tempo parecendo sentir raiva:

- Tudo vem ao caso, tudo! Explicar-vos-ei: um poste contado é, simplesmente, um que possui um filtro de energia próximo à lâmpada. Ele não permite que a luz se disperse com toda a força; ao invés disso, emana gradualmente a energia, fazendo com que o poste brilhe por mais tempo e, algumas vezes, libere uma grande explosão luminosa no momento chamado clímax pelos postadores. Por racionar, contar, a energia, este poste é chamado de contado. Outros ainda arriscam dizer que é um poste conto.

E Rafael, desta forma, aproveitou um momento em que todos se esqueceram de sua existência - pois todos temos esses momentos e quase nunca aproveitamos - e começou a planejar seu primeiro trabalho naquela urbe. Foram muitos minutos de receios mistos a entusiasmo, mas como tudo na vida, o plano do poste chegou ao fim.

- Porque esqueceste de citar - murmurou o jovem postador - que os postes são projetados um pouco antes de serem ligados à energia, sempre. Podemos ter uma ideia, pela teoria, da qualidade do funcionamento da obra; mas só podemos ter certeza de seu efeito, de sua potência, quando a vemos trabalhar. Já vi postes que não esperava serem diferentes dos outros emanarem, de repente, a infame nova textual, e iluminarem toda a rua, em seus últimos momentos. Já vi, também, postes que eu esperava que se destacassem simplesmente apagarem e nunca mais servirem para nada. Por isso, tomei o máximo de cuidado com esta primeira impressão que os novos companheiros escamosos terão de minha capacidade.

Rafael não estava mentindo. Enquanto planejava a estrutura do poste, procurou fazer com que seus talentos se equilibrassem e seguissem, lado a lado, com as características já conhecidas do poste contado. Ao início, juntou a apresentação de um personagem, o qual foi escolhido com imenso egocentrismo; depois, procurou ampliar a luz emanada pelo poste, com o uso das meta-foras e - que ironia - do cenário sombrio e estimulante. Aquele seria um poste produzido sob medida para ser visto nas ruas escuras da garganta de uma serpente.

Quando finalmente terminou, o postador quis fazer os últimos e desnecessários retoques: depois do clarão estarrecedor que seu poste provocaria, ele deveria apagar-se lentamente, fazendo com que todos voltassem a enxergar, para no fim retomar uma luz não mais que a precisa para ajudar a iluminar a rua. Se desse certo, seria uma obra de arte. Algo para se orgulhar. O rapaz falou, mais uma vez, sozinho:

- Algo para se orgulhar. Agora lembro-me: tu disseste isso no começo do texto, sobre o modo com que eu conhecia as ruas da minha cidade. Que tipo de insinuação obscura quiseste fazer com essa repetição? Ah - continuou, depois de breve pausa - esqueço-me que nunca responderás.

Com essas palavras, Rafael segurou carinhosamente seu simbólico e, como sempre, pretensioso trabalho, preparando-se para enviá-lo às mãos da Serpente (pensai o que quiserdes) e oferecê-lo ao júri. Junto a ele, enviou um cartão, que dizia:

Àqueles que porventura não tenham qualquer termo aqui utilizado entendido, aos que ignoram o que possa ser um poste ou as ruas que percorri, é favor procurar pelos chamados web logs, onde as pessoas postam o que lhes vem à mente. É favor não esperar que eu, em minha infinita boçalidade, venha a traduzir todas as brincadeiras linguísticas de nível baixo de interpretação que faço. Exatamente por serem de nível tão baixo, ninguém precisará de minhas explicações. Com este primeiro poste contado, me apresento àqueles que suportarão minha sublime chatice literária durante muitos tempos ainda.

Grato aos que não fizerem críticas impiedosas,

Rafael


E deixou que o poste seguisse para onde lhe fosse bom.

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