A sala estava encharcada de sangue e na medida em que o garoto andava pelo 
  aposento velho e mal-cheiroso, sentia seus sapatos grudarem no líquido 
  já coagulando. Não lembrava de como entrara ali e nem o porquê 
  de estar segurando um machado com as mãos ensanguentadas. 
  Sentia uma forte dor no lado direito de sua cabeça. Levou a mão 
  até onde doía e não se surpreendeu ao encontrar um ferimento 
  aberto e um naco de pele pendurado. Com a ponta dos dedos sentiu o que seria 
  o osso do crânio, uma superfície lisa e doentia. A dor era como 
  fogo, ou como álcool derramado em uma ferida aberta. A penumbra do lugar 
  estava nauseando-o. Percebeu que as paredes eram de madeira, assim como o forro 
  e o assoalho. Era uma casa desconhecida. Um pouco de claridade entrava através 
  das frestas da veneziana escura. Olhou para o chão. Um braço decepado.
  As lembranças começaram a invadir sua mente perturbada, porém 
  vinham em um fluxo lento, como se algo estivesse obstruindo a passagem dos pensamentos. 
  E, por Deus, ele não tinha certeza de que gostaria de saber.
  Em seus quinze anos de idade nunca tinha visto nada igual. Sua tia o chamou 
  para aquela pequena reunião em uma casa desconhecida. Cinco pessoas, 
  quatro já velhas e uma moça de trinta anos... e mais os dois, 
  ele a tia, que não era tão moça assim. Contudo, o garoto 
  a achava atraente. Fantasiara algumas vezes com o corpo da tia, mas sempre se 
  sentia imundo depois que esses pensamentos invadiam seu consciente. Afinal, 
  era a sua tia, irmã de seu pai...
  Sete pessoas reunidas em uma casa... onde diabos ficava essa casa?
  Largou o machado e seguiu em direção à veneziana. O sangue 
  deixava um cheiro metálico no ar e os seus passos eram entrecortados 
  com um ruído característico, algo como uma substância melada 
  e quase seca, um crec crec desagradável e vertiginoso. Bateu a 
  perna esquerda em uma cadeira. Tinha algo ali, um emaranhado de fios brancos 
  que podia distinguir na penumbra. Uma cabeça de velha, decepada e obscenamente 
  colocada ali naquela cadeira, como que zombando dele, ali sozinho e confuso. 
  
  Tentou a fechadura da veneziana, mas seus dedos escorregaram pelo metal. Limpou-os 
  na camisa e tentou de novo. O sangue é repulsivo quando começa 
  a coagular. Abriu.
  A claridade inundou o ambiente e pôde ter um vislumbre do matadouro. Na 
  mesa redonda, quatro cadáveres de velhos o fitavam com olhos opacos. 
  Um deles estava com a cabeça rachada e a massa encefálica escorria 
  pelo seu rosto disforme e pálido. Uma senhora com a garganta aberta; 
  a cabeça estava em um ângulo curioso para a esquerda, pendurada 
  somente por tendões e artérias. O terceiro corpo era também 
  de um idoso, sem os braços. Algo (certamente aquele maldito machado) 
  tinha arrancado a sua mandíbula inferior, fazendo parecer como se estivesse 
  dando uma gargalhada mortal e eterna. E o quarto corpo, uma velha gorda com 
  um vestido lilás, estava sem a cabeça. Mas o garoto já 
  sabia onde a parte faltante estava.
  O chão era um mar de sangue e entranhas. O cheiro de podridão 
  e excrementos era tão forte que chegava a lacrimejar os olhos do garoto. 
  As primeiras moscas entraram pela janela aberta. 
  Lá fora, na rua, parecia tudo normal. O bairro era desconhecido para 
  ele, assim como seu próprio nome e suas atitudes.
  No canto esquerdo do local, uma mulher nua. Era sua tia.
  Os cabelos loiros estavam manchados de sangue, assim como seu corpo todo. De 
  quatro, engatinhando como uma criança, lambia o sangue coagulado do chão. 
  A mulher virou-se de costas para o garoto e urinou. Depois disso, voltou a lamber 
  o sangue.
  Estava louca.
  Seria ele o responsável pelo massacre e a loucura da tia? Por quê?
  Não se lembrava... era o inferno... queria lembrar mas não conseguia! 
  A reunião, as sete pessoas. Uma pequena prece e todos estavam de mãos 
  dadas. Uma invocação. Era isso, a tia o convidara para uma invocação. 
  Segundo ela, quinze anos já era idade suficiente. Sua tia explicou que 
  ele era muito poderoso, mas precisava trabalhar o seu dom. E agora ela estava 
  engatinhando no sangue, com a consciência em frangalhos, o sangue que 
  ele talvez tenha sido o responsável.
  Subitamente, suas energias sumiram quando surgiu a compreensão e ele 
  caiu de joelhos no chão vermelho e liso. O corpo da outra mulher que 
  estava com eles na invocação era uma massa disforme de carne e 
  órgãos. Não conseguia distinguir o que um dia foi seu rosto, 
  pois havia ali apenas um borrão com dois globos oculares e uma dúzia 
  de dentes quebrados. Era obsceno. Os intestinos estavam espalhados embaixo da 
  mesa. Moscas foram conferir o seu novo banquete. 
  Um assassino desencarnado o possuiu. Agora lembrava: estavam invocando espíritos. 
  Aquelas pessoas eram médiuns poderosos, e ele era um ótimo canalizador. 
  A experiência era para ser agradável e rápida, pois era 
  sua primeira vez. Mas algo escapou do controle.
  A alma perturbada do assassino tinha ânsia de matar novamente, percorrer 
  os dedos pelo sangue quente e pelas entranhas das estúpidas e patéticas 
  vítimas. E nada melhor do que alguém jovem para aliviar sua sede 
  de morte. Não aceitava o fato de sua desencarnação, era 
  muito orgulhoso e poderoso para isso. Queria matar novamente. O jovem de quinze 
  anos e a experiência com os espíritos naquela noite foi foram portas 
  abertas para a realização de tudo.
  O espírito possuiu o corpo do adolescente e deixou os médiuns 
  sem nenhum controle. O machado estava escondido atrás de um armário 
  naquela sala, sendo utilizado por um dos médiuns para cortar lenha inverno. 
  Era mais delicioso cortar membros... sentir a maciez da carne contra a lâmina 
  e o cheiro dos corpos abertos.
  Depois de saciar sua vontade, o espírito deixou o corpo do garoto. Ele 
  que arcasse com as consequências; já estava sofrendo muito 
  naquele limbo. 
  E agora o garoto compreendia.
  Levantou-se e caminhou até a janela. Olhou para a rua e as casas daquele 
  bairro. Pelo sol, achou que era meio da tarde, quinze horas mais ou menos. Enquanto 
  as moscas entravam com seu insuportável zumbido, a consciência 
  do garoto começou a se esvair.
  Nada mais importava.
(Março/2008)