A Garganta da Serpente
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Aterrorizado

(Rosa Mattos)

Madrugada gelada. A passos ligeiros, William atravessa o terreno baldio. Raramente cortava caminho por aquele trecho durante o dia, quanto mais ao fechar da noite, mas a urgência em chegar logo em casa o fez agir imprudentemente. Uma força contrária o impelia ao inóspito cenário de sombras e histórias misteriosas.

O terreno fora cercado com arame farpado, já rompido em alguns pontos, por onde abriram uma trilha num descampado de uns cento e cinquenta metros, até o outro lado da avenida, onde ele residia. A vegetação crescia abundante em meio ao lixo jogado e toda sorte de imundícies. Até mesmo um corpo em decomposição havia sido encontrado pela polícia, algum tempo atrás.

Mesmo sabendo disso, enveredou mato adentro. Levantou a gola da jaqueta, colocou as mãos no bolso e continuou o trajeto o mais rápido que pode. Logo estaria no calor de sua sala, em frente à lareira e junto de sua esposa Ester, por quem nutria um amor imensurável e cuja saúde frágil inspirava cuidados.

E foi mais ou menos uns cinquenta metros adiante que escutou um grito horripilante. Assustou-se de tal forma, que parou no mesmo instante. Apurou os ouvidos. Nada. O vento balançava as folhas, provocando pequenos estalos. Sentiu nos ossos a presença de algo vivo aproximando-se dele, mais e mais. Sem esperar para ver do que se tratava, correu feito um desesperado.

No entanto, sua tentativa foi frustrada. Ao longe, no seguimento da trilha, bem na direção por onde iria passar, avistou a figura. Dois olhos cárneos, como duas luzes vermelhas, brilhando frementes, rutilantes e rubras, espreitando tenebrosas. Nenhum corpo aparente, apenas aquele par de olhos sanguinolentos aguardando por ele, bem ali, na sua frente, levitando, rodeado por névoa turvejante. Apavorado, relutou em enfrentar o vulto ou recuar. Sua hesitação durou alguns segundos, tempo suficiente para a coisa se aproximar ainda mais. Que opções ele tinha? Gritar? Quem o escutaria? E se escutassem, teriam coragem de entrar naquele território de medos? Ele não queria ser também encontrado em estado de putrefação. Pensou em continuar correndo e ignorar aquela visão. Pensou também em telefonar para a polícia, pedindo ajuda. Obviamente o tempo que levariam para chegar ali seria insuficiente para salvá-lo daquela situação sinistra. Parece inverossímel, mas em questão de segundos, William pensou realmente tudo isso. E ao invés de fazer o mais sensato, gritar e telefonar pedindo socorro, irracionalmente saiu da trilha e entrou no matagal.

E este foi seu grande erro.

William abandonou a trilha e embrenhou-se instintivamente para a direita. O desvio do curso afastou-o temporariamente do perigo, arremessando-o a outro, tão nefasto quanto o par de olhos devoradores.

Sem poder retornar para o atalho, continuou em frente. Os galhos das árvores o cercaram e se enredaram em suas pernas, arrastando seu corpo para um pântano de odores fétidos. Bem que tentou gritar, mas sua voz não saía. O desespero durou uma eternidade e com muito custo desvencilhou-se daquelas garras ensandecidas e afastou-se do lamaçal movediço. Lanhado pelos espinhos e pontas de madeira, arrastou-se para o mais longe que pode. Suas roupas ficaram imundas e o sangue escorria por todas as partes de seu corpo machucado. Encolheu-se num canto menos povoado de lama e arbustos, a fim de recuperar o fôlego. Em vão, procurava uma explicação lógica para tudo aquilo.

Amparado de encontro a uma encosta de terra mais seca, sentiu uma túrbida aguilhoada intercostal e no instante em que se contorcia de dor, algo cravou em suas costas. Tomado pelo pânico, não tinha coragem de se virar e descobrir quem ou o quê o atacava impiedosamente. Ficou parado, quieto, sem se mover e quando o fato se repetiu, berrou de dor e pavor. No desespero de se livrar de seu agressor, fosse lá o que fosse, pegou uma pedra e bateu, bateu, bateu, continuou apedrejando em todas as direções, como um louco varrido, possuído, dominado, fora de si. E foi em meio a esse acesso brutal que tudo começou a girar e num ápice perdeu os sentidos.

* * *

Quando recobrou a consciência, a noite já se fora e o sol raiava em mais um dia de aparente normalidade. Ainda assustado, percorreu os olhos em torno, como quem procura um fantasma no canto da sala. Preocupado, colocou a mão no bolso e respirou aliviado - o remédio de Ester - estava intacto! O celular no chão, entre folhas e gravetos, despedaçado. Ajeitou o melhor que pode suas roupas esfarrapadas, sujas de lama e sangue, enquanto com muito esforço levantou-se do chão. Voltou para a trilha e capengou até a saída.

Entrou em casa. Fechou a porta e com o coração sobressaltado, cheio de sustos, chamou por Ester.

- Meu amor, desculpe a demora, tive uns probleminhas, mas está tudo bem agora. Trouxe seu remédio.

A casa permanecia em silêncio. Intrigado, procurou a mulher por todos os cômodos. Teria ela passado mal com a falta do remédio e chamado um táxi para ir ao hospital? Que estranho! Que noite inacreditável! Iria até o hospital à procura de Ester. Tomara que ela estivesse bem. Jamais se perdoaria se algo acontecesse a ela por causa de sua demora.

Ligou o chuveiro e deixou a água escorrer sobre sua pele castigada.

Terminou de se vestir e preparava-se para ir ao hospital, quando tocaram a campainha.

Abriu a porta e deparou-se com o oficial Ramirez, da polícia local.

- Sim? Em que posso ajudá-lo? - perguntou, pressentindo más notícias.

- Estava na viatura, do outro lado da rua e o vi chegando em casa, com as roupas ensanguentadas. Está tudo bem? Precisa de alguma coisa, senhor?

- Não. Obrigado. Eu tive uma noite ruim, apenas isso. Está tudo certo. Saí para comprar o remédio de Ester e sofri uns contratempos.

- Senhor, sua esposa Ester morreu no ano passado!

- Não!! Olhe, aqui está o remédio dela! Veja!!!

- Mas este remédio é para alucinações. Esta é uma cidade pequena e muitos sabem de sua internação e tratamento após o assassinato de sua esposa por um andarilho, quando ela atravessava o terreno aqui perto.

- Não!!!! Ester está viva, olhe as fotos dela pela casa, as roupas no armário, as coisinhas que ela mais gostava!... Entre e olhe no quarto o chinelinho dela, está bem ao lado da cama. Ela só está adoentada! Ela não morreu!! Eu não saberia viver sem ela!...

- Acalme-se. Foi um acontecimento trágico, todos nós entendemos seu desespero. Precisa aceitar o que houve e continuar o tratamento. Agora, diga-me, o que fazia no terreno? De quem era o sangue na sua roupa? O que houve?

- Eu fui perseguido por uma criatura do mal, enquanto tentava trazer o remédio de Ester. Tudo que eu queria era chegar logo em casa para ela ficar bem!

- Senhor, venha comigo, leve-me até o local.

Calmamente, William entrou na viatura e acompanhou o policial.

Quando chegaram, apontou o canto onde ficou escondido, enquanto narrava sua versão dos fatos. Descreveu a criatura maligna dos olhos de sangue e falou dos galhos que o puxaram para dentro do pântano e do golpe que o atingira e do grito espantoso que escutara e da dor lancinante e dos horrores que sentiu durante a noite naquele terreno abandonado.

O policial escutou em silêncio, olhando ao redor. Tudo que via era uma coruja despedaçada no chão, em uma poça de sangue.

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