A Garganta da Serpente
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Ente

(Ricardo Corrêa Miranda)

Ainda que tentasse, não lhe seria mais possível aparentar uma normalidade. Desde o dia em que perdera a memória, não conseguia se sentir bem, não se adaptava à realidade, às pessoas, ao ambiente.

Nos poucos fragmentos de lembranças que lhe restavam, corria desesperadamente por uma floresta, à noite, debaixo de uma chuva torrencial. No entanto, escapavam-lhe as circunstâncias que o haviam levado àquela situação. A única certeza era a de que durante essa fuga sentia um pavor sem precedentes, parecia fugir de algo maior do que a própria morte. Um pânico tão absoluto que se instalava em cada célula de seu corpo, chegando a ponto de alterar-lhe o metabolismo, fazendo-o correr como se não houvesse galhos, matos, espinhos à sua frente. Anestesiado pelo excesso de adrenalina, nem percebia quando pontas agudas de galhos lhe perfuravam a carne e faziam o sangue escorrer em fios grossos.

Aos fragmentos de imagens juntavam-se alguns de sons: predominantemente havia sua respiração ofegante, completamente no limite; e mais ao fundo, o barulho forte da chuva acertando em toda a vegetação à sua volta como se fosse um grande volume de água forçando caminho por entre a floresta. No entanto nem isso adiantava, pois não lhe dava pista alguma sobre como desencadeara aquele evento.

Lembrava também ter avistado algo semelhante a um casebre escuro ao lado de um lago, e se dirigira para lá. Não havia o menor movimento ao redor, nada que indicasse que ali seria um local onde pudesse se abrigar ou clamar por socorro. À medida que se aproximava, ainda correndo além de sua debilitada capacidade física, sentia que a consciência lhe faltava. O último lapso de consciência foi o de sentir o chão faltar-lhe debaixo dos pés, e precipitar-se sobre uma enorme vala. Após isso, apenas a escuridão.

Acordara com roupas verdes que cheiravam a amaciante. Estava sozinho, deitado no chão de um cômodo que não reconhecia. Mas não tinha certeza se seria capaz de reconhecer alguma coisa, talvez aquela fosse até sua própria casa. Examinou seu corpo, encontrando várias cicatrizes - certamente frutos daquela fuga desesperada empreendida já não sabia quando. Ontem? Mês passado? Ano passado? Há quanto tempo se encontrava ali, naquele lugar, com aquela roupa verde?

Levantou-se devagar, sentindo cada dor nova que se apresentava naquele instante. Pôs-se a examinar o quarto, as paredes brancas, o chão de lajotas vermelhas já bem ásperas; o teto rachado, com um ventilador refém das inúmeras e grossas teias de aranha poeirentas; a cama de ferro cinza, com um colchão de palha surrado; um vaso grande de barro ao lado da cama, cheio de terra preta bem seca; uma janela sem cortinas, anunciando que fazia um dia claro lá fora. E uma porta também pintada de cinza, sem maçaneta.

Um dia claro lá fora... Um dia claro... E ele ali, preso naquele quarto, naquelas roupas verdes cheirando a amaciante. Para quê amaciante se estava deitado no chão? E qual a função da cama naquele cômodo? Mas não fazia diferença deitar-se numa cama macia, numa cama dura ou no chão. Seu corpo não reclamava mais conforto além de sentir o sangue circulando quente em suas veias, em suas vísceras. E era exatamente esse o único interesse agora: escutar o som dos rios internos que irrigavam cada célula de seu corpo.

Não procurava especificamente lembrar-se do que lhe acontecera. Talvez se tentasse apenas um pouco, se fizesse um pequeno esforço de memória, seria capaz de surgir algo. Porém faltava-lhe a vontade de descobrir. Aquela noite, naquela chuva... Do que fugia? Escapara com vida, é certo, era o que se poderia definir como um sobrevivente. Mas estava mutilado, sem vontade, sem o menor resquício de algo que se assemelhasse a sentimentos. Um enorme vazio ocupava-lhe a mente. Nem motivo para caminhar até a janela e espiar o lado de fora conseguia encontrar. Deixou-se cair pesadamente no chão, e ficou ali, imóvel.

Não sabia quanto tempo tinha se passado, quando uma pessoa vestida de branco adentrou o cômodo trazendo um prato nas mãos. Começou a falar coisas que não lhe interessavam, a fazer perguntas; segurou seu pulso com firmeza, abriu seus olhos à força. Estranhamente, não considerava nada disso digno de intervenção, e apenas deixava-se manusear. Depois a pessoa de branco pegou o prato, e começou a empurrar-lhe uma sopa grossa e insossa goela abaixo. Estava quente demais, mas não reclamou. Ao contrário, até achava interessante ainda sentir alguma coisa, nem que fosse a dor da sopa quente queimando-lhe a garganta. Ficaram nesse ritual até escutar o barulho da colher batendo no fundo do prato, anunciando que a sopa acabava. Logo, a pessoa de branco levantou-se, fez um muxoxo, e saiu pela porta. Não passou por sua cabeça detê-la.

Em frente à janela os dias passavam, uns mais claros, outros mais escuros; uns mais quentes, outros mais frios, uns secos, outros molhados. Não importavam. Nunca se aproximara da janela desde o dia em que acordara ali, naquele cômodo, sem sentir falta de saber quem fora. Toda a rotina daquela nova vida já lhe era conhecida: a janela, as teias de aranha, a pessoa de branco, a sopa que já não lhe queimava mais... Achou que começava a sentir-se ansioso, impaciente. Procurou focar-se nesses sentimentos. Afinal, sentir alguma coisa já seria um avanço. Mas nada. Mesmo com toda a concentração possível, não conseguia indignar-se com sua resignação diante daquele novo mundo que lhe impunham. Um mundo tão pequeno, emoldurado por aquelas paredes brancas, tão vazio de estímulos, e nem assim ele conseguia motivos para se rebelar. Era um prisioneiro de si mesmo. Por mais que pensasse, tentasse se esforçar, não conseguia sair daquele estado de inércia. Até mesmo seus sonhos pareciam ter se perdido. Não tinha mais a capacidade de sonhar, dormir era como se fosse uma pequena morte que se lhe acometia. Sono pesado, retilíneo, sem fases. Direto do momento de dormir até o momento de acordar.

Um dia acordou agitado. Seus batimentos cardíacos estavam acelerados além do normal, e algumas gotas de suor escorriam de suas têmporas. Provavelmente sonhara com algo inquietante, mas não se lembrava de nada. Então, concentrou-se profundamente para tentar recuperar o sonho perdido. Seria alguma pista do que o levara até ali? Do que o assustara naquela noite, levando-o a correr feito um alucinado pela floresta durante uma tempestade? Estimulou-se com a possibilidade de descobrir algo que fizesse algum sentido, uma resposta para as angústias que teria se não estivesse tão oco. Fazia força para concentrar-se, para recordar o sonho... Queria saber como estimular seus neurônios, como provocar mais sinapses que revelassem alguma novidade... Porém todo o esforço mostrava-se inútil. Nada vinha à mente, a não ser a certeza de que toda a rotina do cômodo iria se repetir mais uma vez.

Passou a tentar dormir o mais que pudesse, esperando para ver se o sonho retornaria. E com surpresa constatou: as pequenas mortes não eram de todo estéreis. Algumas imagens foram se formando, talvez fragmentos de lembranças de um passado remoto. Durante muito tempo não conseguia captar a plenitude das imagens, mas aos poucos algo foi sobressaindo... Uma mulher? Sim, uma mulher ruiva, olhos verdes, pequenas sardas espalhadas pouco abaixo dos olhos, expressão séria. Quem seria aquela mulher? Alguém que conhecera? Alguém que amara? Alguém que o traíra?

Gostava de pensar que a lembrança daquela mulher era a chave que desvendaria seu enigma. Entretanto não fazia a menor ideia de quem era ela. Podia simplesmente ser uma imagem sem significado, apenas um fruto de suas fantasias, um clichê. Mas os olhos verdes daquela mulher pareciam querer revelar algo. Continham uma tristeza profunda, conferindo-lhes uma aura de mistério ainda maior, instigante. Concluiu, então, que aqueles olhos obviamente eram portais para um outro tempo, onde certamente residia a verdade. Finalmente encontrara algo para se apoiar, algo que o estimulava a se esforçar de alguma maneira. Por isso, fixava-se naqueles olhos, penetrava-lhes, tentava desvendar o segredo que escondiam. Pareciam facilmente devassáveis, e no entanto mantinham-se inexpugnados tentativa após tentativa. O verde dos olhos misturava-se com a floresta daquela noite primordial, com a roupa de agora. Olhos, floresta, roupa: Verde remoto, verde passado, verde presente. Em sua mente, um redemoinho de tons se formava sem trazer uma mísera resposta, uma pista sequer. Cada vez mais confuso, sentia-se num transe, um estado mental diferente, nunca antes experimentado, cujas fronteiras iam muito além de sua capacidade de abstração.

E o tempo foi passando sem que conseguisse avançar além deste ponto. A imagem da ruiva continuava a lhe ocupar os sonhos como uma esfinge, mas invariavelmente terminava devorado. E assim, a força da rotina mais uma vez começou a se manifestar, até que nem mesmo mais a figura da ruiva conseguia lhe provocar algum estímulo. Acostumara-se a ela, a ser desafiado por ela todas as noites, até que desistiu de decifrá-la. Parecia que a única chance que tinha de se humanizar novamente diluía-se na contagem implacável dos dias que se sucediam iguais, e ia sendo devorado, noite após noite, morte após morte.

Começou a reparar em algumas mudanças em seu corpo. Sua pele parecia mais escurecida, mais rija. Seu cabelo crescera, e já caía volumoso em sua face e em suas costas. Suas articulações já não dobravam sem provocar dor, e então mexia-se pouco, preferindo ficar a maior parte do tempo imóvel. Aprendera a adaptar seus raros e mínimos movimentos a uma nova realidade, como se não tivesse mais pulsos, cotovelos, joelhos ou tornozelos. Sentia apenas sede de vez em quando, e as chuvas e a luz presenciadas da janela estranhamente o atraíam, levando-lhe algum alento, incutindo-lhe um estranho instinto de sobrevivência. Começava a optar apenas por existir, em detrimento de ser.



Ali, naquele cômodo, sabia que cedo ou tarde a morte definitiva o encontraria; então já não precisava correr, não tinha por quê fugir. Mas agora não se assustava mais, ele que vivera uma experiência muito mais intensa e aterradora do que o fim da vida. Restava-lhe apenas a monotonia dos dias iguais, da roupa verde, de seus rios internos, das pequenas mortes de todas as noites. E surgia a necessidade de ser regado, e seus pés já se enterravam no vaso cheio de terra negra ao lado da cama, raízes de uma planta que não tinha escolha a não ser esperar.

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