Vagarosamente
o horizonte se revela.
Dissipa-se a névoa.
sara fazib
No monte, o templo
envolto em cobertor
de neve azulada.
A tarde já ia em seu fim. Os flocos de neve começavam a cair
com uma intensidade maior, cobrindo todo o cume do monte Hiei localizado um
pouco abaixo, não era diferente. Os monges já haviam se recolhido,
e o silêncio era quebrado apenas pelo ranger dos galhos das árvores
balançando com o vento frio que começava a soprar. Além
desse, o único movimento que se podia perceber no ambiente era a fumaça
elevando-se da cozinha. O pátio localizado entre o templo e a floresta
encontrava-se vazio, e, no chão, pegadas recentes marcavam a neve, vindas
da única trilha que ligava o templo ao mundo exterior.
Yumi entrou assim que acabou de acender os lampiões do pátio.
Parou no corredor que levava à cozinha, e ficou por um longo tempo admirando
pela janela a placidez da cena lá fora. Encolheu os braços, colocou
as mãos debaixo das axilas num gesto de satisfação por
encontrar-se protegida e aquecida, e por sentir o cheiro bom da lenha e o crepitar
do fogo na lareira. Ficou observando o pátio na penumbra, até
que teve a impressão de ter visto alguém nos degraus. Aguçou
o olhar e constatou que não estava enganada: em um dos cantos havia um
jovem sentado. Intrigada, concentrou-se para tentar descobrir quem era, contudo
a pouca luz do ambiente e a neve caindo dificultavam o reconhecimento. Mesmo
nestas condições, percebeu que as roupas dele não eram
adequadas à temperatura do lado de fora. Devia ser um peregrino recém-chegado,
os monges que lá habitavam não se arriscariam em passeios nesta
época do ano com roupas tão leves. Como estava acostumada a fazer
quando chegavam viajantes ao templo, Yumi apressou-se para receber o rapaz.
Devia estar com frio e cansado da extenuante viagem pela trilha íngreme,
e ansiando por um prato de comida quente.
Sendo aquele templo um seguidor da linhagem Rinzai, a preferida entre os samurais,
era comum aparecerem por ali guerreiros em busca de iluminação
espiritual. Por isso não se assustou quando percebeu que o jovem trazia
nas costas uma espada de madeira. Caminhou na direção dele parando
um passo à sua frente. O rapaz continuou imóvel, com o olhar compenetrado
em algum ponto além do horizonte. Mas apesar de estar de olhos abertos,
a impressão era a de que o horizonte que ele contemplava estava dentro
de si mesmo. Yumi ainda não tinha como saber, mas aquele olhar ficaria
gravado em sua memória para sempre.
Timidamente, fez uma reverência e estendeu-lhe o braço, convidando-o
a acompanhá-la; e então percebeu uma grande mancha vermelha na
neve ao redor dos pés do jovem rounin. Ele já devia estar ali
há algum tempo, pois o sangue no chão encontrava-se congelado,
os lábios estavam roxos, e os cabelos escondidos debaixo de uma camada
de neve acumulada. Yumi continuou com o braço esticado por algum tempo,
até que finalmente percebeu uma reação; o jovem olhara
na direção dela, e, num gesto rápido, levantou-se e fez
uma reverência profunda, para, em seguida, cair desfalecido no chão.
***
Folhagem de outono.
Quanto amarelo e vermelho
cabe numa tarde!
O monge Kakua parou para descansar. Já estava caminhando há horas,
e os pés começavam-lhe a acusar o esforço. Afastou-se um
pouco da trilha e sentou-se recostado a uma pedra onde o sol ainda batia. Retirou
uma flauta das dobras do quimono e começou a tocar. Uma melodia triste
invadiu a área, quebrando o silêncio da tarde precocemente fria
que caía na região do monte Hiei.
Dias atrás, Kakua encontrava-se meditando no templo quando soube da
chegada de um mensageiro do imperador. Este, de algum modo, ficara sabendo da
viagem dele à China alguns anos antes para estudar uma nova disciplina
conhecida por Zen, e gostaria de interrogá-lo sobre ela. Kakua concordou
em comparecer à importante audiência, e o mensageiro partiu na
manhã seguinte com a notícia. O monge, no entanto, ainda ia se
demorar uns dias para poder se preparar para a viagem.
Nos dias que se seguiram à partida do mensageiro, Kakua pôs-se
a caminhar pelo bosque ao redor do templo, sempre acompanhado da flauta. Levava
horas contemplando uma flor, outras vezes parecia extasiar-se com o canto de
um pássaro.
Os outros monges e os aprendizes não conseguiam entender que espécie
de preparativos eram aqueles, apesar disso permaneciam calados em uma distante
admiração. E assim os dias foram passando, até que em uma
manhã deram pela falta de Kakua. Partira cedo, sem avisar, e sem preparar
uma sacola com roupas e mantimentos. Ganhara a estrada apenas com seu hábito
e a inseparável companheira, a flauta.
Enquanto tocava flauta e o conforto provocado pelos últimos raios de
sol ia diminuindo, Kakua pensava sobre o rumo que tomaria na bifurcação
que se abria à sua frente. Foi interrompido pelo som de vozes: pela estrada,
vinham caminhando um velho e uma jovem. Ele na casa de seus sessenta anos, caminhando
com uma certa dificuldade, utilizando um bastão de madeira como apoio;
ela, uma jovem que ainda não completara quinze. Ambos pareciam cansados,
e o velho alertava para a necessidade de procurarem um abrigo para pernoitar
e se protegerem do frio. Kakua pensou que seria uma boa oportunidade para ter
companhia, e resolveu ir ter com eles. Guardou a flauta e caminhou de volta
até a trilha.
- O inverno chegou cedo mesmo este ano, não foi?, disse Kakua após
uma longa reverência.
- Sim, chegou, respondeu o velho tranquilamente, também fazendo
uma reverência. Estamos procurando abrigo para esta noite. Conheces algum
por aqui?
- Sim, um pouco mais adiante existe uma cabana para os viajantes. Eu estava
mesmo pensando em passar a noite lá. Posso acompanhá-los?
- Sim, ter a companhia de um monge por algum tempo será interessante.
Eu me chamo Kubota Hisashi, e esta jovem é minha neta, Sayako.
- E o que fazem na estrada nesta época do ano? Estão indo para
a capital?
- Sim, estamos; Sayako irá estudar o Shô, a arte da caligrafia.
É uma tradição em nossa família. Como hoje em dia
o melhor mestre, Moka, vive na capital, estamos indo para lá pedir-lhe
que a aceite como discípula.
Kakua assentiu com um gesto, como se concordasse com a opinião do velho
a respeito do mestre Moka. Seus olhos se perderam, e por um momento parecia
estar sendo assaltado por velhas lembranças. Com um sorriso quase imperceptível,
deu meia volta e seguiu na direção da cabana. O velho e a neta
foram logo atrás.
Caminharam por pouco mais de uma hora, quando finalmente avistaram a cabana.
Era um pequeno abrigo de madeira, contudo daria para os três dormirem
confortavelmente, protegidos do frio que chegaria com a noite. Muitos viajantes
faziam uso desta cabana, entretanto deram sorte desta vez: não havia
ninguém lá. Puderam entrar e se instalar à vontade.
Apesar de muito cansado, Hisashi providenciou uns gravetos para acender uma
fogueira. Os três reuniram-se ao redor dela, e enquanto preparavam o chá,
Kakua retirou a flauta das dobras do quimono e pôs-se a tocar uma alegre
canção. Tanto Hisashi como Sayako pareceram gostar, pois abriram
largos sorrisos. Ficaram ouvindo extasiados, e, ao fim da música, se
curvaram, agradecendo. Kakua parecia radiante também, e por isso resolveu
propor-lhes um kôan.
- Mas o que vem a ser um kôan, mestre Kakua?
- Uma espécie de jogo. Vou dar-lhes algo para pensarem a respeito, e
talvez os caminhos por onde vossa mente passear em busca de uma resposta acabarão
fazendo com que experimentem o satori. Posso continuar?
Sayako olhou para o avô com os olhos mais carentes que podia ter; este
percebeu a curiosidade da neta, e assentiu com a cabeça para que Kakua
continuasse. Estavam ambos ansiando por aquela novidade, embora não quisessem
demonstrar.
- Qual o som de uma só mão batendo palmas?, disse Kakua, enquanto
se ajeitava na esteira estendida no chão. Hisashi e Sayako entreolharam-se,
atônitos.
****
Inverno rigoroso.
O rubor aquece a face
da minha amada.
Yumi descansava sentada no tatami quando ouviu uns resmungos vindos da direção
de onde estava o jovem rounin ferido. Levantou-se rapidamente e foi até
ele.
- Ah, finalmente acordou!, disse Yumi. Está se sentindo melhor?
- Mestre Kakua... preciso vê-lo!, respondeu o rounin, sem disfarçar
a ansiedade que tomava conta de si.
- Temo que tenha chegado tarde. Kakua partiu no final do outono para a capital.
- Preciso vê-lo!, repetiu, ao mesmo tempo em que tentava se levantar e
desistia com uma expressão de dor.
- Você ainda não está em condições de ir embora;
nos últimos três dias teve convulsões e febre alta. O corte
em sua perna foi profundo, perdeu muito sangue. Vai ter que repousar por um
bom tempo ainda.
Após dizer isso, Yumi levantou-se e saiu do aposento onde instalara
o rapaz. Voltou logo em seguida trazendo uma bandeja com chá quente e
alguns bolinhos. Ajoelhou-se ao seu lado e depositou a bandeja no chão
com cuidado.
- Coma, vai lhe fazer bem.
Neste momento Yumi fez menção de se levantar, porém foi
contida: o rapaz segurou-lhe a mão e olhou-a nos olhos. Durante algum
tempo ficaram mudos, sem saber o que dizer.
- Obrigado... Acho que ainda não nos apresentamos, não é?
Yumi não respondeu nada. Apenas abaixou os olhos, desviando-os daquele
olhar que, por algum motivo, tanto a incomodava.
- Eu me chamo Nishimura Iori. E você?
- Kishida Yumi.
- Obrigado por me acolher.
Yumi livrou sua mão, levantou-se e saiu apressada. Já no final
do corredor não aguentou e começou a correr. Sentia o rosto
queimar, e cobriu as bochechas com as mãos para que os monges não
reparassem no quanto deviam estar vermelhas. Foi para seus aposentos, e não
saiu de lá até a manhã seguinte.
Iori acordou bem disposto. As dores estavam mais suportáveis, e sentia-se
mais forte após uma noite bem dormida e da refeição quente
levada para ele por Yumi. Onde estaria ela agora? Enquanto pensava se a tinha
assustado, um noviço apareceu no quarto.
- Está um dia claro e frio, Iori-sama. Este inverno será rigoroso,
não acha?
- Sim.
- Eu soube que você está à procura de Mestre Kakua. Infelizmente,
ele teve que partir para o Palácio Imperial, o imperador quer interrogá-lo
a respeito de seus estudos no período em que esteve na China. Bom, acho
melhor deixá-lo descansar mais. Daqui a pouco Yumi trará chá.
Com licença.
Iori ficou pensando no que o tinha trazido até aquele templo: a necessidade
de conversar com Kakua. Alguns anos atrás, era ainda um adolescente vivendo
no campo e pensando sempre em como fazer o pai se orgulhar dele. O avô
tinha sido um respeitado samurai, todavia o pai não pôde seguir-lhe
os passos. Os tempos estavam se tornando difíceis, encontrar um daimyo
que pagasse um estipêndio era coisa rara para jovens espadachins. Ainda
mais depois que conhecera sua mãe e esta engravidara. Precisava sustentar
a nova família, e não poderia ficar muito tempo sem um ofício.
Resolveu ir para o campo, e decidiu que não tinha mais honra para usar
o nome paterno. Seus descendentes só poderiam voltar a usar o nome da
família Nishimura quando voltassem a seguir o bushido, o caminho da espada.
Enquanto fossem camponeses, atenderiam por Tosaka.
Por isso, enquanto esteve vivendo no campo, Iori acostumou-se a ser chamado
de Iori Tosaka. No entanto a vontade de seguir os passos do avô samurai,
e de assim ser um motivo de orgulho para seu próprio pai começou
a falar mais alto quando ganhou a primeira espada de madeira. Andava de um lado
para o outro com a espada às costas, disposto a desafiar qualquer um.
Só que esta disposição começou a se tornar uma fonte
de encrencas. Por várias vezes envolveu-se em brigas, e teve seu nome
ligado com uma turma de jovens desajustados e marginalizados.
O pai não podia aceitar o rumo que o filho estava tomando, e decidiu
procurar alguém para orientá-lo. Foi até o templo da região,
e soube que lá havia um monge de partida para a China, onde estudaria
novas disciplinas. Seu nome era Kakua. Conversou com ele, e pediu que aconselhasse
o jovem Iori antes de viajar.
Justamente naquela semana houve um acontecimento mais grave. Iori fora apanhado
numa séria briga que havia resultado no ferimento de dois rapazes. A
revolta da população com os jovens baderneiros estava chegando
ao limite, e resolveram amarrar Iori num local público do pequeno povoado
para servir de exemplo e de punição. O desespero de sua família
chegou ao auge, e então Kakua resolveu agir. Dirigiu-se até o
local onde o jovem havia sido amarrado, e encontrou uma pequena multidão
furiosa. O pai do rapaz defendia-o empunhando uma espada, não deixando
ninguém se aproximar.
- Mas o que este jovem fez de tão grave para merecer esta punição
toda? - gritou Kakua, silenciando a turba. Não veem que ele precisa
de orientação ao invés de punição?
Algumas vozes levantaram-se nervosas, mas aos poucos foram se acalmando, até
restar apenas um longo silêncio.
- Prestem atenção à proposta que tenho para lhes dar:
eu levarei este rapaz comigo, e o educarei. Isto é, se seus pais permitirem.
Aos poucos, alguns murmúrios de aprovação ao monge começaram
a ser ouvidos. Restava saber o que o pai de Iori diria. Neste momento, ele levantou
a espada, pedindo a palavra.
- Não me resta muita escolha. Entrego o destino de meu filho ao monge
Kakua. Que ele consiga dar um rumo à vida dele que eu não consegui.
E que volte um dia orgulhoso de seus feitos e podendo andar de cabeça
erguida entre nós.
Dito isso, pôde-se perceber a satisfação dos presentes
com a solução que se apresentava. O único que não
parecia nada feliz com a novidade era o próprio Iori. Não tinha
coragem de contestar a decisão do pai, ainda mais publicamente. Porém
sua expressão não deixava dúvidas. Lágrimas rolaram-lhe
do rosto no momento em que viu o pai indo embora sem olhar para trás,
dispersando-se no meio da multidão de desconhecidos.
Kakua imediatamente pegou a estrada acompanhado do novo discípulo. Conversavam
pouco, pois o jovem não se mostrava muito disposto a falar. De início,
sentiu ódio daquele monge que o havia tirado da família, no entanto
com o passar dos dias começou a se sentir confortável com a presença
de Kakua, mesmo apesar de todo o silêncio.
Um dia, enquanto visitavam um templo, Kakua decidiu que aquele era um bom local
para deixar Iori. Falou-lhe que precisava ir à China estudar uma nova
disciplina por alguns anos, e seria melhor que Iori continuasse no Japão.
Chamou o monge mais graduado do templo e expôs-lhe a situação.
Combinaram que Iori não sairia dos limites do mosteiro enquanto não
tivesse lido todos os livros sobre poesia, história, arte e religião
que encontrasse lá dentro. Esta estadia seria a primeira etapa de sua
formação, e caso ele resolvesse escolher qualquer outro rumo na
vida, a base já estaria pronta. Combinaram isso, e Kakua despediu-se
do jovem Iori dizendo que muito provavelmente seus caminhos ainda se cruzariam
novamente, mas em outras circunstâncias. Iori novamente odiou o monge,
por achar que estava traindo a palavra que dera a seu pai, e por estar deixando-o
dentro de um templo, enquanto ele gostaria de entrar para uma academia de esgrima
e de treinar para se tornar um samurai e resgatar o nome da família.
Um dia, após três anos de estar estudando no templo, Iori foi
chamado à presença do monge com quem Kakua havia combinado os
termos de sua reclusão. Há muito esta reclusão deixara
de ser indesejada por parte de Iori, que ultimamente vinha sentindo um prazer
imenso em estar ali, estudando tantas coisas interessantes nos livros. Seu espírito
finalmente parecia estar se acalmando, criando novas demandas que ele próprio
jamais imaginara. O monge, porém, trouxe uma notícia perturbadora.
- Iori, recebi a notícia de que seu pai não está bem de
saúde. Portanto, a partir de agora considere-se livre para fazer o que
quiser. Se preferir continuar no templo estudando, será muito bem recebido
como foi até hoje, mas se quiser (quiser) ir encontrar-se com seu pai
e dar-lhe algum conforto, não o impedirei. Acho que o propósito
de Kakua já foi cumprido, sua estadia entre nós me parece que
foi muito bem aproveitada. Está na hora de dar a você mais responsabilidade
para ver como lidará com ela.
Iori não teve dúvidas. Aprontou imediatamente uma pequena sacola
com alguns mantimentos, pegou uma velha espada de madeira no templo e partiu
de volta à terra natal. Após tanto tempo, veria de novo a família...
Será que o receberiam bem?
Ao chegar em casa foi recebido com muita alegria. Todos ansiavam por seu retorno
há muito tempo, e o pai remoía-se de culpa por tê-lo entregue
ao monge. No entanto, a sensação de todos era que a partir de
agora tudo ficaria bem, e com Iori podendo ajudar nas pesadas tarefas rurais,
a saúde do pai seria mais rapidamente restabelecida.
Tudo transcorria normalmente: Iori mostrava que aprendera a controlar seu espírito
mais selvagem trabalhando nas tarefas de casa e frequentando o templo sempre
que podia. Mostrava perante a comunidade um autocontrole insuspeito para quem
o conhecera adolescente. Além disso, a saúde do pai dava sensíveis
sinais de melhora. Até que um dia um mensageiro trouxe uma correspondência
para a família Tosaka. Viera da China, e era assinada por Kakua. Este
dizia que retornaria em breve ao Japão, e provavelmente se instalaria
por uns tempos no templo Enriaku-ji, localizado no monte Hiei. Gostaria de rever
o jovem Iori.
A esta altura, o pai de Iori já havia se recuperado. Então, disse-lhe
que era necessário que fosse visitar Kakua para transmitir-lhe os agradecimentos
da família por ter interferido de forma tão positiva em sua educação.
Iori concordou com o pai, e mais uma vez começou a preparar-se para a
longa viagem que teria pela frente. Estavam no final do verão, e seria
melhor programar-se para chegar lá antes do inverno.
- Você está se sentindo bem, Iori-sama?, perguntou Yumi, agachada
bem à frente do rosto de Iori e franzindo a testa em evidente sinal de
preocupação.
- Ah, desculpe-me; não a tinha visto.
- Já o havia chamado duas vezes antes desta. Trouxe-lhe um chá
quente. Tome, antes que esfrie.
Mais uma vez entreolharam-se. Um longo silêncio aconteceu. Yumi sentiu
a face ruborizar, as bochechas pegarem fogo. Não entendia muito bem por
quê isto estava acontecendo com ela, já que estava acostumada a
cuidar de viajantes que chegavam ao templo pedindo abrigo e nunca se sentira
assim antes. Mais uma vez, a reação dela foi levar as mãos
ao rosto e sair depressa de perto daquele jovem sem emitir mais uma palavra.
***
Cozido de nabos
e peixe recende à mesa.
Os olhos do cão rogam.
Da estrada já podiam ver a capital ao longe. O aglomerado de construções
novas, o tráfego maior de pessoas, tudo indicava que a viagem estava
chegando ao fim. Hisashi e Sayako estavam tristes por terem que se separar de
Kakua, o estranho monge que conheceram durante a viagem e que passara a os acompanhar
e divertir com a flauta e perguntas aparentemente sem sentido.
Ao entrarem na cidade, resolveram parar numa estalagem para, enfim, comer uma
refeição completa. Enquanto esperavam os bolinhos de arroz e o
cozido de peixe e legumes que o senhor lhes garantira ser o melhor da cidade,
Hisashi foi procurar informações sobre o mestre de caligrafia.
Voltou rapidamente, surpreso e satisfeito por tê-las conseguido com tanta
facilidade.
Após a refeição, devorada com enorme apetite pelos três
e dividida com o simpático e magro vira-latas que ficara rondando a mesa,
Kakua levantou-se e disse que a partir dali se separariam. Suas jornadas tomariam
rumos diferentes, mas que, em breve, poderiam tornar a se encontrar caso outros
assuntos não o atrasassem mais do que o necessário. Pediu-lhes
que enviassem as mais efusivas saudações ao mestre Moka, e que
talvez eles tornassem a se ver em breve. Ao terminar a última frase,
fez uma longa reverência, virou-se, e foi andando para fora do estabelecimento
sem olhar para trás.
Os anos passados em meditação dentro dos templos e em contato
com a natureza faziam Kakua sentir-se estranho naquele ambiente tão urbano.
A velocidade das pessoas era exagerada, pareciam não se dar conta de
que estavam perdendo um tempo precioso de suas vidas com preocupações
inúteis. Todos pareciam olhar para dentro de si mesmos, cegos ao ambiente
e incapazes de se deslumbrar com o espetáculo e a benção
de simplesmente poderem respirar e sentirem-se vivos. Tudo isso fazia Kakua
ansiar por cumprir a missão que viera realizar.
Queria solicitar logo a audiência ao imperador e poder ir embora dali.
Talvez visitasse velhos amigos depois, se sobrasse tempo. Por isso, dirigiu-se
diretamente ao palácio imperial, disposto a livrar-se daquilo o mais
rapidamente possível.
Ao chegar ao palácio e se anunciar, foi recebido por um jovem assessor
do imperador. Este parecia feliz em recebê-lo, e disse que presença
dele ali era muito aguardada. Por sorte, o imperador se encontrava no Palácio,
e poderia recebê-lo na manhã seguinte, depois do desjejum, quando
poderiam conversar tranquilamente. Kakua agradeceu a acolhida, e mostrou-se
satisfeito com tais determinações, pois assim teria tempo de livrar-se
da poeira da estrada e descansar um pouco antes do encontro.
A manhã seguinte encontrou Kakua de pé. Fora providenciada uma
farta refeição para o monge, no entanto este aceitara apenas a
xícara de chá. Logo em seguida estava sendo guiado por um ansioso
assessor através dos salões do palácio, para o local onde
o imperador o aguardava.
Enfim, o momento chegara. Além do imperador, outras pessoas aguardavam
Kakua sem disfarçar a ansiedade em torno daquele encontro. Foram feitas
as apresentações, e logo em seguida o imperador tomou a palavra
para si:
- Mestre Kakua, as notícias de tua viagem pela China, onde foste estudar
uma nova disciplina conhecida por Zen, chegaram até mim. Fui informado
também que tu és o primeiro monge japonês que adquiriu tais
ensinamentos. Portanto, a natureza de meu pedido para que viesses para esta
audiência é falar-nos do que aprendeste nestes anos de estudo no
exterior. Diz-nos, Mestre Kakua, o que vem a ser o Zen?
Neste momento, todos os olhos voltaram-se na direção de Kakua.
Este deu um passo à frente, abriu um largo sorriso e fez uma longa reverência.
***
Já é primavera -
Uma colina sem nome
Sob a névoa da manhã
Bashô
Realmente, o inverno fora rigoroso. Iori acabou ficando mais tempo no mosteiro
do monte Hiei do que imaginara. Chegara lá no início da estação,
e só agora, com a chegada da primavera, estava retornando à estrada
para tentar encontrar o monge Kakua. Esperava ter notícias dele na capital,
se fosse obrigado iria até mesmo ao palácio imperial para saber
sobre o paradeiro do monge.
Ia caminhando com o olhar fixo adiante, a mente, todavia, ainda estava em algum
lugar do templo lá atrás. Sabia o porquê disso, no entanto
preferia não pensar muito a esse respeito, e talvez um dia o destino
o colocasse de novo nesta situação. Mas no momento, o melhor era
concentrar-se em sua tarefa e, através dela, tirar as lições
mais proveitosas para seguir seu próprio caminho. Deu um suspiro de resignação,
balançou os ombros, e seguiu em frente.
Após vários dias caminhando, chegara à cidade. A primeira
providência foi procurar uma estalagem onde pudesse se recompor da viagem
com um banho e uma refeição. Como era tarde, resolveu descansar
à noite, para no dia seguinte ir ao Palácio procurar por Kakua.
Com sorte, talvez ainda estivesse lá gozando da hospitalidade do imperador.
Ao chegar no palácio, apresentou-se e perguntou por Kakua. Sentiu uma
ponta de esperança quando o levaram até um aposento e pediram
que aguardasse. A ansiedade começou a tomar conta de si quando um assessor
do imperador apareceu.
- Você é o jovem que procura por Kakua?
- Sim, sou Iori, da família Nishimura.
- Iori, nós também gostaríamos de saber do paradeiro dele.
Esteve aqui no final do outono para uma audiência com o imperador com
o objetivo de esclarecer detalhes a respeito da disciplina que estudara na China,
o zen. Quando foi arguido, Kakua simplesmente fez uma reverência,
retirou uma flauta das dobras do quimono, soprou uma única nota e retirou-se.
Não o vimos mais depois disso.
(set/2002)
haicais: sara fazib