A Garganta da Serpente
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Até o dia do fogo

(Ricardo Corrêa Miranda)

"As you grow up and leave the playground
Where you kissed your prince and found your frog
Remember the jester that showed you tears,
the script for tears
"
Script for a Jester's Tear, Marillion

Lembranças pueris de tardes viscosas. Sentada no balanço improvisado num galho da centenária mangueira do quintal dos fundos, o horizonte ia e vinha, alaranjando-se e arroxeando-se à medida em que o sol se punha. Os brinquedos espalhados pelo gramado, as marias-chiquinhas e as cantigas entoadas alegremente evidenciavam que a tarde fora aproveitada de maneira adequada. Mas a noite se aproximava, e com ela, o jantar, fonte de graves considerações. Fígado de novo?

Naquele dia, do alto de seu balanço, percebeu que num matagal lá quase no horizonte estava ocorrendo um incêndio. Pensou que logo começariam a cair as fitinhas pretas do céu, inúteis de tentar segurar entre os dedos pois se desfaziam mesmo ao toque mais leve. Vasculhou o ambiente ao redor procurando se o vento tinha trazido as graminhas queimadas até sua casa, mas nada, o ar estava limpo. Concluiu que devia estar muito longe do fogo. É melhor entrar então, papai já vai chegar daqui a pouco.

Banho tomado, perfumada, roupa trocada. Hora do pai chegar em casa, cansado mas nunca se esquecendo de cobrar seu beijo e seu abraço. Como foi seu dia, brincou bastante? Aproveita bem que essa é a melhor fase da vida, um dia você vai crescer e não vai ter mais tempo para brincar. Logo em seguida, a família reunida na mesa em frente à TV ligada no jornal ou na novela, sensação boa de segurança, o pai rezando e agradecendo o alimento e a saúde, e depois indo levá-la para dormir e certificar-se que nenhum monstro estava à espreita debaixo da cama. Boa noite, filhinha, dorme bem, quanto você ama o papai? Até esse dia, sempre respondera a essa pergunta da mesma maneira: "Até o céu!", mas desta vez considerou que o fogo que pegara no matagal fora tão longe que a nova homenagem soou melhor: "Até o fogo!"

****

O espelho não deixa dúvidas. Os olhos estão mais fundos e amarelos, começando mesmo a ficar opacos. A cabeça raspada com máquina zero é cuidadosamente escondida com panos enrolados, fazendo lembrar as ciganas que passavam na rua tempos atrás, e liam sua mão sem cobrar nada. Você terá uma vida muito feliz, garotinha! Mas tem alguma coisa aqui... Ah, não deve ser nada, pode voltar pro seu balanço, tá bom?

Sente os olhos marejados, mas não quer chorar. A vida sempre lhe reservara boas surpresas, não havia do que se queixar, e afinal de contas, o envelope em suas mãos podia ser anúncio de notícias melhores. Alisou-o carinhosamente, imaginando o que a esperava lá dentro, e aumentando assim a ansiedade. Mas a expectativa não era sinônimo de pressa, e resolveu caminhar até a sala para sentar-se e preparar-se para tudo.

A casa, os móveis, as coisas acumuladas. Tudo servia para lhe trazer lembranças. Nascera e crescera ali, e só saíra quando casou-se com o namorado, primo da vizinha. Onde estariam hoje em dia? Uma soube que mudou-se há anos atrás, e o outro preferia nem saber. Estava melhor ali sozinha, antes só do que mal-acompanhada. Mas ficar só também tinha seus inconvenientes, e o silêncio era o pior deles. Não suportava a casa calada daquele jeito, e por isso resolveu ir até o piano e tentar lembrar-se das músicas que seu pai lhe ensinara. Como era mesmo aquela que aprendi quando ele descobriu que eu estava namorando?

Beija, beija, beija teu paizinho,
Filhinha...

****

... Porque amanhã já não serás mais
Só minha

- Ai, pai, que coisa brega!
- Não é não, minha filha, você está crescendo, já arrumou o primeiro namorado; a vida passa rápido, quando você menos perceber já vai estar noiva e casando, e eu e sua mãe vamos ficar aqui sozinhos.
- Deixa de ser dramático, vocês sabem que eu nunca vou abandonar vocês. E além do mais falta muito tempo para isso acontecer.
- Nunca se sabe...
- Pode parar, eu ainda quero namorar muito!
- Bom, está na hora d'eu ir dormir. Dá cá um beijo de boa noite. Lembra o quê eu sempre te perguntava quando te colocava na cama antigamente?
- O quê era?
- O quanto você me amava!
- Ah, eu lembro; e o que eu respondia mesmo? Era "Até o dia do fogo", não?
- Alguma coisa assim. Sabe, gostei! Significa que a cada dia que passa você gosta mais de mim, já que o dia do fogo vai ficando cada vez mais longe!
- Então tá combinado: eu te amo até o dia do fogo.

Sorriu vendo o pai subir as escadas. Ele sabia o quanto era importante para ela. Fechou o piano, calçou as pantufas e foi até a cozinha beber um copo d'água antes de escovar os dentes, colocar o aparelho e deitar-se. As lembranças de quando era pequena e passava as tardes brincando no quintal vieram-lhe à memória. O balanço da mangueira, os brinquedos... Uma ideia passou-lhe pela cabeça e trouxe consigo um sorriso metálico. Levantou-se de repente e foi até o quarto dos pais.

- O que você quer, filha?
- Estava pensando. Como posso dormir tranquila se você não conferiu se tinha monstros debaixo da minha cama?

****

Dos sonhos infantis restam apenas bonecas empoeiradas e esquecidas no sótão da casa outrora tão grande. Os quadros nas paredes também são os mesmos, como vários dos objetos que ainda decoram a sala de estar. O piano, o abajur vermelho de porcelana que sua mãe pintara, os porta-retratos na cristaleira; tudo isso trazia uma estranha sensação de nostalgia. Mas onde ficaram os sonhos? Onde o prazer de viver, de deitar-se na rede ou sentar-se despreocupadamente no balanço e sentir as tardes e os dias arrastando-se viscosos, intermináveis? Restara-lhe uma crua sensação de realidade incompatível com as lembranças que cada canto ou objeto daquela casa lhe trazia, e que no íntimo a faziam reviver os momentos mais felizes de sua vida. Por isso era doloroso voltar a viver depois de tanto tempo na casa que fora de seus pais, tão cheia de referências e memórias acumuladas com o passar dos anos e dos sentimentos mornos conhecidos entre aquelas paredes, e que agora já não voltavam mais.

O envelope. De repente a ansiedade domina-a, não há mais motivo para esperar. Rasga a lateral e retira de dentro dele uma radiografia. Analisa-a cuidadosamente por alguns segundos. Depois levanta-se do piano, caminha até a janela. A mangueira ainda está lá, forte, imponente, com o mesmo balanço. Por um momento é capaz de ver-se criança novamente, cabelos longos presos em marias-chiquinhas, balançando-se e cantando, e as bonecas espalhadas no gramado, o horizonte indo e vindo, o fogo, o pai chegando e exigindo um abraço, aproveita bem que essa é a melhor fase da vida; tudo começa a girar, as lembranças se misturam à realidade, tudo gira e escurece, o horizonte indo e vindo, girando e escurecendo, o chão vindo de encontro ao seu rosto, tudo girando e escurecendo cada vez mais; e, lá fora, o balanço está vazio, e não existem brinquedos espalhados no gramado e nem fogo no horizonte.

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