"Se não eu, quem vai fazer você feliz,
Se não eu, quem vai fazer você feliz?"
Charlie Brown, Proibida pra mim
Foi a décima tentativa da noite, e o décimo tombo. Dessa vez, não 
conseguira levantar muito o bico do skate para realizar o difícil noseslide 
na borda da mureta do Chafariz do Valentim, na Praça XV em frente ao Arco 
do Telles, e se esborrachara na grama do interior do monumento. Ela ainda não 
sabia, mas pretendia impressioná-la quando passasse mais uma vez com sua 
pinta de patricinha de Icaraí rumo às barcas. Uma mulher dessas 
nunca vai olhar pra mim, por que estou me iludindo?, mas volta a tentar, e a cair 
mais uma vez. A dor no joelho não é nada em comparação 
à dor do desprezo que sentiu na pele quando a viu pela primeira vez saindo 
do happy hour do Arco do Telles, e tentou puxar papo lembrando a música 
do Charlie Brown: "Eu vou fazer de tudo que eu puder, Eu vou roubar essa 
mulher pra mim, Eu posso te ligar à qualquer hora, Mas eu nem sei seu nome!"
Nem vai saber, seu desajustado!, foi tudo o que bastou para sentir o tapa mais 
doído que existe, o tapa do preconceito, da diferença social. É 
foda ser chamado de desajustado, o que aquela patricinha sabe sobre isso? Sabia 
que não tinha as mesmas condições que ela, ela devia estar 
estudando em alguma universidade e ele tinha que dar calote nos ônibus às 
vezes porque nem dinheiro pra voltar pra casa tinha. Mas sua beleza era tão 
delicada, os cabelos lisinhos, o rosto fino, magrinha, era tudo o que sonhava, 
era a personificação da manobra mais perfeita do Criador. A atração 
foi tanta que resolveu tentar a sorte. Antes não tivesse, seria melhor 
nem tê-la visto, mas agora com o orgulho ferido, ia tentar e tentar, como 
os seguidos tombos que levava naquele chafariz. Se não havia manobra que 
não saísse perfeita depois de inúmeras tentativas, por que 
não conseguiria também conversar com ela?, era só isso que 
pedia, uns minutinhos de atenção. Ela haveria de perceber o quanto 
gostava dela, era a musa que o inspirava dia após dia a seguir tentando. 
Isso com certeza a sensibilizaria, e assim talvez fosse possível superar 
a barreira que os separava, seria o aerial mais festejado de sua vida de skatista.
A noite avança, ela já deve ter partido pra casa, as barcas já 
estão acabando. Logo é hora de sair dali também, senão 
só chega em casa de madrugada e nem dá tempo de dormir direito. 
Mas nem isso conseguia, ficava rolando na cama desde que a vira e levara aquele 
fora, só pensando em impressioná-la com sua arte: a manobra mais 
radical, realizada à perfeição, pois era isso que ela merecia. 
Uma obra de arte perfeita merece outra obra de arte perfeita. E não ia 
desistir nunca, até que ela percebesse que ele era capaz de produzir algo 
digno de sua admiração. Mais uma tentativa, mais uma queda, o joelho 
doeu mais agora, é melhor parar, mas não, pode ser que amanhã 
ela me veja aqui e tudo tem que sair perfeito, então tenho que conseguir, 
tenho que conseguir, mais uma tentativa, dessa vez nem saio do chão direito, 
um estalo no joelho, e tudo fica escuro.
Na rodinha que se fez em volta do rapaz berrando de dor no chão, uma voz 
pede passagem, eu sou fisioterapeuta, dá licença, eu vou ajudar. 
O coração acelerou ainda mais, não podia acreditar, logo 
agora que estava caído no chão, humilhado, derrotado, o destino 
os colocava frente a frente? Tentou levantar, está tudo bem, fez um esforço 
sobre-humano, e a última coisa que viu antes de cair desacordado no chão 
foi a ponta do osso da perna rasgando a carne e apontando do lado de fora.
Abriu os olhos dentro da ambulância. Sentiu a dor aguda logo abaixo do joelho 
esquerdo, tentou se levantar, mas o enfermeiro o segurou; não tinha como 
prender a maca em lugar nenhum, e as curvas fechadas que o motorista fazia já 
eram suficientes para fazer a maca rolar de um lado pro outro perigosamente. Mas 
a dor maior foi a ausência dela. Onde ela estava, por que não o acompanhara? 
Se ela teve o cuidado de tentar ajudar enquanto estava lá caído... 
Será possível que tenha desistido depois que viu a fratura exposta? 
Essa dor o incomodava mais do que a perna, a dor do desprezo, do pouco-caso, isso 
não se faz com quem a admira e a ama tanto... E ainda a incapacidade de 
assinar a obra de arte que idealizara para ela, seu único talento manifesto 
não lhe serviu de nada, pelo contrário, só o fez passar ainda 
mais vergonha. Um inútil, um inválido, caído dentro de um 
chafariz antigo da Praça XV com o osso pra fora. E ela a caminho das barcas, 
parando pra ajudar, e dando as costas quando era mais necessária.
Um médico magrelo e de olheiras escuras o atendeu, tirou radiografia, deu 
uma anestesia local e chamou uns ajudantes para recolocar o osso no lugar. A dor 
foi tanta que desmaiou de novo, e acordou já pronto para ir embora, de 
perna engessada, com a recomendação expressa de não colocar 
o pé no chão por pelo menos um mês. Próximo!
Onde estava ela agora? Queria mostrar o herói ferido, que se arrisca para 
conseguir um tantinho de admiração da amada, o melhor tipo de herói 
que pode existir. O gesso na perna era um troféu, o monumento ao soldado 
desconhecido, que dá a vida por um ideal nobre sem exigir reconhecimento. 
Prova de amor suprema, mas sem testemunha. A vida era uma merda.
De repente, correria, gritos, choros, desespero: um tiroteio ali perto tinha feito 
algumas vítimas, e as ambulâncias começavam a chegar. Tentou 
sair sem incomodar, mas ouviu que o tiroteio fôra nas barcas. Um arrepio 
percorreu seu corpo, e desceu o mais depressa que pôde para a entrada da 
hospital. E de dentro de uma ambulância viu seu pesadelo materializado: 
uma maca com uma garota deitada, muito sangue em sua roupa, os médicos 
e enfermeiros correndo desesperadamente. Não dava pra ver direito, não 
podia ser ela, aquele cabelo era o dela, aquelas mãos eram dela, aquele 
sangue ERA ELA! Não se mexia, a cabeça totalmente vermelha pendia 
para um lado: levaram-na para dentro em meio a gritos histéricos, choros 
convulsivos, e pelo menos uma lágrima da dor mais profunda, mas imperceptível 
em meio ao caos geral. Viu uma garota de branco saindo de dentro da ambulância 
com uma expressão vazia, os olhos no infinito. Foi até ela, e perguntou 
com um fiapo de voz, sem coragem de encará-la, sentindo-se culpado, quem 
era a garota baleada. A resposta, uma amiga da faculdade de fisioterapia, foi 
um soco no estômago. Na cara. Na boca. Nocaute. Lona sem precisar abrir 
contagem. E a menina ainda perdida desandou a falar, estavam voltando pra casa 
ela, a irmã e uma amiga, e pararam para socorrer um skatista na Praça 
XV que tinha quebrado a perna, e se não fosse por aquilo elas não 
teriam perdido a penúltima barca; tiveram que esperar a última, 
e não podia ser azar maior do que aquele, o tiroteio começou justamente 
ao lado delas quando um policial entrou na estação, e sua amiga 
caiu em seu colo molhada, quente, sem se mexer. A bala perdida encontrou o olho 
da amiga, não tinha muita esperança, ainda bem que a irmã 
dela tinha ido ao banheiro na hora. Cadê aquele garoto que perguntou? Foi 
o mesmo que a irmã fez questão de parar para ajudar?
****
Saindo do Arco do Telles, a garota parou junto ao grupo de skatistas que fica 
  todos os dias no Chafariz do Valentim, e perguntou pelo rapaz que tinha quebrado 
  a perna na semana anterior; queria saber como ele estava, e perguntar se ele 
  a havia reconhecido do dia em que perguntara seu nome com a música do 
  Charlie Brown.
  
  - Ele morreu, moça; se suicidou naquele dia mesmo de madrugada. Deixou 
  um bilhete dizendo que aquela era a única obra de arte que tinha restado, 
  a única em que podia atingir a perfeição. Acho que endoidou.