A Garganta da Serpente
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Uma noite como essa

(Ricardo Corrêa Miranda)

"Say goodbye on a night like this
If it's the last thing we ever do
You never looked as lost as this"

(A night like this, The Cure)

A tempestade caindo lá fora, as goteiras aumentando e Tânia fazendo as malas. Disfarço as lágrimas, procuro em algum canto da memória onde se deu a virada. A TV ligada num programa qualquer, mas nenhuma imagem consegue captar minha atenção. Escuto alguma coisa sobre nevascas no Rio Grande do Sul, disparam associações de memória que me fazem sofrer ainda mais e minha angústia aumenta. Clima de despedida, fim de festa, sonhos e promessas esquecidos. Tinha que ser numa noite como essa, como o dia em que nos conhecemos num inverno em Caxias do Sul. Um dia como essa noite. A camisa do Flamengo para mostrar que era carioca, a camisa transparente e molhada por causa da chuva e um esbarrão. Sundae de chocolate espalhado pelo chão, risos sem graça, a conversa de sempre, sotaque cantado, sotaque chiado, tu és do Rio?

Um trovão estala e Tânia me procura com os olhos. Já não parece ter a certeza de que quer se despedir, mas eu nunca soube direito o que se passava dentro daquela cabecinha ruiva. Até vir para o Rio nunca me dera uma pista sequer do que planejava, em nenhuma das cartas que agora jazem esquecidas em alguma caixa dentro de algum armário inacessível. Ou como agora, quando simplesmente olha pela janela, e não se sente intimidada pelo temporal que desaba sobre a zona sul do Rio de Janeiro. Ir embora justo numa noite como essa; quem diria?

A segunda vez que nos vimos também chovia. Estava chegando o Natal, e o sentimentalismo próprio da época fez com que os telefonemas e cartas já não fossem suficientes. Comprei passagem de avião, aluguei carro e apareci no trabalho dela sem avisar. Ela nem acreditava, o que estás fazendo aqui, guri? Pediu permissão ao gerente para levar o "primo" em casa, já voltava logo, e saímos pela rua, mais uma vez tomando chuva. A boca molhada, os cabelos grudados no rosto, a camisa branca do uniforme transparente, os beijos e gemidos, promessas de amor, outros carinhos mais ousados e sabe-se lá onde mais molhada.

Difícil foi ir embora depois de uma noite em claro. Descia a serra para Porto Alegre num carro que eu não conhecia, numa estrada que eu não conhecia, com uma neblina forte, um sono galopante e um limpador de pára-brisas enguiçado. Resolvi parar então num posto vazio de beira de estrada ao lado de uma máquina de refrigerantes, o vigia dormindo lá longe. Catei umas moedas enquanto deitava o banco e arrumei como companhia para o restinho de madrugada uma lata de Pepsi. O vento batendo no rosto, nenhuma referência conhecida por perto, uma sensação de liberdade quase tangível. Nunca me senti tão livre assim antes. Só mesmo numa noite como aquela.

Como a noite em que chegou no Rio me pedindo ajuda para procurar emprego e moradia. Assim, de uma hora para outra. Nunca me fez uma pergunta ou me consultou sobre as dificuldades que poderia encontrar. E de repente aparece na rodoviária, sozinha, com uma mochila e esperanças. E meu telefone, anotado num pedaço de jornal molhado da chuva que caía e alagava as ruas próximas à rodoviária. Tânia chorava mais que as nuvens, o medo do desconhecido, do ambiente opressor e dos pivetes que seguiam-na. Resgatei-a a tempo, arrumei um quarto numa pensão em Botafogo e um emprego numa loja do shopping. O futuro se abria num largo sorriso e na frase decorada com sotaque: Posso ajudar?

Depois as dificuldades apareceram. Sentia-se só, não tinha dinheiro, queria voltar. Mas a lembrança dos dias de chuva, de Tânia molhada, imagens captadas na retina e eternizadas na memória, me fizeram interferir de novo. Aluguei um quarto maior e fui morar com ela. A rotina da semana era compensada pela felicidade das tardes de domingo enroscado entre as coxas brancas e macias, o perfume cítrico, o cheiro de mulher no cio, estômagos roncando e as omeletes e os miojos. Dias felizes, vividos numa época em que o futuro não importava, o importante era curtir cada momento a sós como se fosse o último, sem nunca planejar nada além dos amanhãs.

No entanto, a partir de um determinado momento que não sou capaz de precisar, a alegria da novidade de morar junto com quem se quer tanto assim começou a se transformar em alguma coisa mais domada. E percebia isso em Tânia também, o fogo de seu olhar diminuíra, a energia de suas atitudes também já não era a mesma. A promessa de não nos tornarmos um casal padronizado que vive o ponto alto de suas semanas nos domingos à tarde quando vai passear no shopping começou a perder força, e cada vez mais nos tornávamos previsíveis e comuns. Em alguns momentos percebíamos esse processo, e voltávamos a viver como antes. Como nas idas à Guaratiba e seus restaurantes "Tias Alguma Coisa", contemplando a deslumbrante restinga enquanto desfrutávamos as delícias do rodízio de frutos do mar; e eu, alérgico a camarão deixando todos para ela, e ouvindo que não é alergia coisa nenhuma, é prova de amor mesmo. Ou como na primeira vez no Maracanã, a torcida de preto e vermelho, os gritos de guerra, ela rouca de tanto berrar, a alegria estampada em todas as nuances de seu rosto, e um charmoso riso sem graça quando vinha um coro menos publicável. Eu adorava aquilo, os cabelos rubros caídos em cima da camisa preta, a voz rouca e sensual, e eu provocando para que ela continuasse falando e gritando cada vez mais. Em momentos como esses eu a percebia próxima, decifrava seu olhar cúmplice e expressivo, e sabia como terminaríamos a noite. Noites inesquecíveis.

Tudo me passa agora pela cabeça enquanto ela arruma as malas e a chuva aumenta. O barulho dos pingos nos vidros das janelas começa a batucar forte, e sinto meu peito molhado por alguma coisa gelada. Abro os olhos, e por um longo instante não sei onde estou; descubro-me dentro do carro, a latinha de Pepsi acaba de virar em cima de mim. À minha frente, uma máquina de refrigerantes, o vigia do posto dormindo lá longe, e uma estrada que pode me levar de volta para o Rio de Janeiro, se eu descer, ou para os braços da gaúcha Tânia, se eu subir.

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